sábado, agosto 27, 2005

Vamos ficar no céu



Tempos duros. Pela falta de grana e pela falta de liberdades. Mas isso já faz tempo, muito tempo, parece que foi em outra era. Avesso a escolas e, principalmente, às disciplinas e às tarefas obrigatórias, além de não suportar os maledeti trabalhos em grupo, precisava de um diploma. Achei que o melhor era fazer os exames de madureza. Foi dessa forma que conquistei meus diplomas de ginásio e colégio. Lamentável, mas verdadeiro. Enfim, as coisas são como são e nem sempre como a gente gostaria que fosse. Dizem, muitos, que o destino cada um molda o seu ao seu gosto, prazer e necessidade. Nem sempre, nem sempre. Os que conseguem tal feito são aqueles sobre os quais se escrevem livros e artigos e por isso ficamos sabendo de tão brilhantes e árduas conquistas. Isso soa como auto-piedade ou complacência. Pode ser, não descarto. A interpretação é livre, ao gosto e desgosto do freguês.

Aquela era uma época em que grandes exames de madureza eram realizados pelo Brasil afora. Os do Rio de Janeiro eram famosos por serem fáceis. Eram concorridos, os cursinhos supletivos, ou de madureza, montavam caravanas para o Rio. Não foi meu caso, não estava em nenhum cursinho. Iria com a cara, a coragem e meus conhecimentos. Ótimos em história e geografia. Bons em biologia. Bons em português. Redação não havia, era tudo no xis. Matemática eu não sabia. Desconhecia. Mas era e sou muito bom em aritmética. O bastante pra escapar de um vexaminoso zero. Inscrevi-me no Rio.

Dias antes da viagem encontrei com um colega que também iria. Combinamos ir juntos. Pra economizar, pegamos o Cometão na noite de sexta na Rodoviária. Era o último horário, assim chegaríamos com o dia já amanhecido e tudo aberto. Ledo engano. Quando chegamos, só vimos abertos os botecos próximos da rodoviária. Saímos zanzando, sem lugar pra ficar. Eu até conhecia algumas pessoas no Rio, gente ligada à militância política. Mas nem morto eu iria aparecer em seus apartamentos e pagar o mico de dizer que ali estava pra fazer o exame de madureza. Questão de orgulho, que, pelo menos um pouco, é bom ter. A memória me trai e não lembro quem, mas um companheiro de militância pra quem abri meu segredo escolar, recomendou – e deu um contato, um companheiro da “direção” – ir pro céu pra passar a noite.

Ir pro céu... Isso soava meio tenebroso. Ficava no Botafogo ou Flamengo, também não recordo direito.

E lá fomos nós, dois estudantes paulistas, duros, em pleno sábado carioca, olhando as praias e garotas do Rio pelas janelas dos ônibus. Sem o que fazer, e vestidos como paulistas em pleno sábado ensolarado, ir à praia ou caminhar pela calçada era um mico que nem por sonho pagaríamos. Restavam, portanto, as janelas dos ônibus, andando daqui pra lá e de lá pra cá, até a hora de ir pro exame.

Acho que aquele exame foi em Madureira. Talvez sim, talvez não, mas foi num lugar longe pra burro. O ônibus demorou uma eternidade, cheio de cariocas vindo das praias da zona sul, pelo menos era o que parecia. Lotado, o tempo todo. Quente, suarento, um Rio nada charmoso. Chegamos, entramos, fizemos o exame, saímos e voltamos pro lado charmoso do Rio de Janeiro. O jantar eu fiz questão que fosse no Beco da Fome, que já conhecia de outras viagens. E ali sempre comia lasanha. Vai entender. Mas era bastante comida pra pouco dinheiro. Bom demais. Depois sentamos num bar ali perto, tomamos alguma coisa e ficamos vendo o movimento intenso, pessoas e carros circulando o tempo todo. Gritos, risadas, buzinas, o que se poderia chamar de vida em movimento. Um tipo de vida. Interessante, uma fauna variada. Prostitutas, rufiões e uns caras esquisitos, que depois, em outras viagens, aprendi a identificar como filipinos ou malaios, que compõem, talvez, mais de 90% das tripulações de navios mercantes em todo o mundo. Travestis, poucos, também rodavam por ali. A gente olhava disfarçadamente, morrendo de medo de dar bandeira e um deles nos abordar. Felizmente, isso não aconteceu. As pessoas, travestis inclusive, eram mais recatados, mais discretos naquele tempo. Até que chegou a temida hora de ir pro céu.

Já tínhamos passado por lá pela manhã. Daí o nosso temor e a vontade de ficar ao máximo na rua. O céu, na verdade o CEU – Casa do Estudante Universitário – era um velho prédio ainda imponente, pela arquitetura, tamanho e abandono. Já fora lindo, agora era só bonito, olhando com boa vontade e com a ajuda da imaginação. Acho que foi a antiga sede da UNE, e acho que por isso eu me lembro de estar emocionado por poder conhecer lugar tão importante. Abrigava um punhado de estudantes. Minha indicação para o companheiro da “direção” foi preciosa. Fôramos bem recebidos. Não havia quartos disponíveis, mas o pessoal da “direção” nos alojou no alto, no segundo ou terceiro andar. Era um salão grande, cheio de tranqueiras, cheio de lixo, na verdade, de todo o tipo. Felizmente, lixo seco, móveis antigos na maior parte. Entre eles, alguns colchões, guardados para quando viessem companheiros de fora. Éramos nós, companheiros de fora. De algum lugar misterioso e generoso surgiram dois lençóis. E assim, naquele moquifo, deitamos e dormimos. Eu demorei a pegar no sono. Os companheiros da “direção” recomendaram tomar cuidado com nossas coisas. Minha inseparável mochila velha virou travesseiro.

Tinha bichos-bichos variados andando por ali, dei umas esperneadas e uns tapas. A noite foi chata. Tinha cheiro de pó e tinha pó, claro. Isso aconteceu há tanto tempo que pó era somente isso: pó, aquela sujeira sobre a qual se passava o espanador. É, isso também é velho e anti-higiênico, ainda por cima. A noite foi longa.

O dia amanheceu bonito, um dia carioca, sol, céu azul, nuvens brancas, barcos no mar, garotas de biquíni... Bom, isso foi mais tarde, com o sol quente. Demos o fora do céu logo cedo, nem 7 da manhã era. Saímos em busca de uma boa padaria pra tomar café e comer. E andamos, agora na beira da praia, no calçadão. Era cedo, a rapaziada dormia. Quando as primeiras garotas começaram a chegar, a maioria acompanhada, percebemos que era hora de nos afastarmos. Tênis, jeans, camiseta e mochila, além das óbvias caras paulistanas, principalmente do meu colega, nissei, que ia ao Rio pela primeira vez, não eram bons cartões de apresentação. Quem sabe uma próxima vez?

Voltamos pra Madureira, entramos, fizemos o exame e saímos. Diretos pra rodoviária e de lá pra São Paulo. Também por isso o Rio de Janeiro é parte da minha vida.

Mas será que era Madureira? ...


P.s.: tenho, realmente, dúvidas sobre o CEU e sua localização e o que aconteceu com ele, etc; caso alguém saiba de tudo isso, aceito as novidades e também correções.

P.p.s. sim, fomos aprovados; como eu disse, os exames cariocas eram fáceis.


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3 comentários:

Anônimo disse...

Emerson, o CEU era aquele que ficava naquela encosta do Morro da Viúva, de cara pro Pão de Açúcar: de inspiração neo-clássica na arquitetura e, ao que me lembre, pintura rosa descascada e decadente. Na Avenida Ruy Barbosa.

Até meados dos anos 90 ainda perdurava, virava pó, e ao final--que me corrijam os mais atualizados--fora demolido após longa contenda jurídica.

Meio Botafogo, meio Flamengo--pela geografia, digo--no mapa-memória que você insinua não é errado não.

Quanto ao Beco da Fome, era a "avenida" Prado Junior, não, em Copacabana, ali ao lado da saída do Tunel Novo.

E essa viagem foi em que ano? 1974, 75, 76, 77?

Abs
CJ Ballantyne

Emerson disse...

Ballantyne, como eu comentei lá no Lédio, essa viagem foi em 75. Sei porquê nesse ano eu já era freguês do Beco toda vez que vinha ao Rio. Eu vinha a serviço, tinha uma verbinha pra comida e taxi. Comia no Beco, andava a pé e guardava uns belos trocados. Mas ficava no Plaza, na Princesa Isabel. Era um hotelzão naquela época. Às vezes ficava no Novo Mundo, mas não gostava. Copacabana era uma coisa louca de ver prum molecão paulista. Pena que a moral marxista-leninista me segurava. :( hehehehe Mas não para sempre, felizmente.

E o Gurgel também andou dormindo em céus por aí, viu? No caso dele, em Floripa, né?

Anônimo disse...

Eu também não tive paciência para me formar feito gente; mandei o clássico às favas no primeiro ano, fui à praia e fiz o artigo 99. Era fácil mesmo... :-)