terça-feira, agosto 30, 2005

Belos nomes

Pensando bem, são belos nomes, mesmo. Talvez por serem tão estranhos, pelo menos para quem, como eu, é de São Paulo.

Não-me-toque!

O ponto de exclamação foi colocado só pra criar um clima. É certo que não sou muito chegado a ser tocado, nem mesmo por conhecidos, quanto mais por estranhos, mas nada a ver com isso agora. Como todos devem ter deduzido, estou falando do município gaúcho.

Há muitos anos, alguns cidadãos não-me-toquenses houveram por bem fazer campanha contra esse nome e a favor de uma mudança. Queriam porque queriam Campo Real, só porque por lá se plantava muito trigo. Sinceramente, nome mais besta esse um. Não gostavam de Não-me-toque. Não deviam gostar de que se referissem a eles como não-me-toquenses. Nem lhes tiro toda a razão, afinal, usava-se dizer que algumas pessoas muito melindrosas eram cheias de não-me-toques. Isso era comum nas bocas de futuras sogras em relação a futuras noras. Não me perguntem porque, não faço idéia. Minha família dizia também, desse tipo de gente, e das gentes cheias de cerimônias, serem “cheios de nove horas”. Nunca soube o porque, mas fica registrado. Pois voltando a Não-me-toque, de onde, aliás, não saímos, os cidadãos pró-mudança tanto fizeram que conseguiram. Em dezembro de 1971, um decreto mudava o nome do município para o insípido, insosso, Campo Real.

Mas essa história não ficou assim, ah, não. Os não-me-toquenses de coração não se conformaram. E batalharam pelo retorno do nome original. Finalmente, depois de anos de luta, conseguiram realizar um plebiscito em 1976. E venceram, claro. E lá está Não-me-toque, o Jardim do Alto Jacuí.

Ah, sim, por que esse nome? Dizem que por conta dum arbusto cheio de espinhos, muito abundante na região na época da colonização e que tinha esse nome. Dizem outros que por conta de estancieiro poderoso, dono de muito gado e patrão de muita gente, que teria gritado, não sei o motivo “não me toque nessa terra!”

O Rio Grande do Sul é rico em municípios com nomes curiosos. Muitos eu tive o prazer de conhecer, como Tapes, na beira da Lagoa dos Patos, onde comi deliciosas traíras em barzinhos à beira da Lagoa que parece um mar. Tapes que não esqueço, também por conta das centenas, talvez milhares de casas de forneiros, como alguns chamam o joão-de-barro. Na estrada de Tapes para Barra do Ribeiro, cada poste tinha ao menos uma casa construída. Mas era raro uma só casa, o comum era ter duas ou três em cada poste. Sem falar dos condomínios horizontais e verticais em alguns. Coisa de louco. Nunca mais vi nada parecido em minhas andanças pela Terra de Vera Cruz.

O jornal on line de há pouco fala de Muitos Capões, município pequeno, só três mil habitantes. E desses, nada menos que 10% perderam as casas no todo ou em parte, por conta de um tornado que o que teve de rápido teve de destruidor. Agora é torcer para que não faça frio, pois, se não conheço Muitos Capões, conheço a região onde fica, no nordeste do Rio Grande do Sul, onde o frio é campeão.

E há outros: Faxinal do Soturno, Alegrete, onde sempre fui muito bem recebido por “seu” Eurico Dornelles e muito mal recebido certa madrugada por um frio de matar pingüim. Era tanto o frio que não agüentei seguir viagem. Parei na entrada “do” Alegrete e dormi no Texacão do Caverá, simpático posto à beira da estrada plantado. Quer dizer, nem dormi, fiquei deitado embaixo de dois cobertores, com roupa e tudo, lendo e tremendo de frio às vezes.

E, finalmente, Anta Gorda. Tem Poço das Antas, mas perde longe em beleza e sonoridade pra Anta Gorda. Até tive o prazer de passar por Anta Gorda duas vezes, mas nem cheguei a parar. Mesmo pequeno, Anta Gorda deu sua contribuição para a diáspora gaúcha. Certa feita, em Balsas, interior do Maranhão, terra de soja, estava de converseio com um gaúcho e o papo caiu em algo parecido com esse texto. Pois não é que quando falei em Anta Gorda o gaudério me exclama que era de lá? Ali estava eu a conversar com um anta-gordense, com pouco de anta e muito de gordo, embora fosse o caso do roto falando do rasgado.

E com tudo isso, bateu uma saudade imensa do Rio Grande.


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Pra vocês folgarem um pouco do meu linguajar e terem um pouco de satisfação, transcrevo essa pequena peça de meu amigo Barreto, natural de Catende, na Zona da Mata de Pernambuco, a coisa de uns cento e tantos quilômetros de Recife. Região bonita, plana com morrotes que surgem e sobem, todos cobertos de cana. Aqui e acolá um pouco da mata original ainda resiste.

Um pouco mais ao sul entra-se nas Alagoas. No litoral mais lindo de todo o Brasil, o litoral norte alagoano. Por ali, em l ocal incerto e pouco sabido, tem uma praia que se chama Tatuamunha. Dela, mais não digo. Fiquem com o Barreto.


SEVERINO PENA BRANDA

Roberto Barreto de Catende – 30.8.2005

Totalmente independente
Severino se considera
E trata sua galera
Um a um como inocente

Começa no Presidente
E vai descendo na escala
Defende Dirceu na mala
E Santiago evidente

Ressuscita da história
Um Gregório Fortunato
Mentor de um atentado
E prova que tem memória

Blefista exímio no jogo
Diz que Lula foi traído
Mas não revela o bandido
Dedo-duro é o Diogo

Derruba a Fernando Henrique
Ao sacar no blefe um morto
Comprador de voto torto
Para eleger nosso Príncipe

Considera um absurdo
Aquela coisa em inglês
Mas ficaria um mês
Com nepotismo e tudo

Manteria a Fazenda
Como está hoje composta
Faria a Delfim proposta
Para uma boa prebenda

Vislumbra no interior
Entre desfavorecidos
Progressos enfurecidos
Do governo Paz & Amor

Assim caminha a paternidade
De um projeto de Nação
Valei-me meu Lampião
O Coroné ‘tá na cidade


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sábado, agosto 27, 2005

Vamos ficar no céu



Tempos duros. Pela falta de grana e pela falta de liberdades. Mas isso já faz tempo, muito tempo, parece que foi em outra era. Avesso a escolas e, principalmente, às disciplinas e às tarefas obrigatórias, além de não suportar os maledeti trabalhos em grupo, precisava de um diploma. Achei que o melhor era fazer os exames de madureza. Foi dessa forma que conquistei meus diplomas de ginásio e colégio. Lamentável, mas verdadeiro. Enfim, as coisas são como são e nem sempre como a gente gostaria que fosse. Dizem, muitos, que o destino cada um molda o seu ao seu gosto, prazer e necessidade. Nem sempre, nem sempre. Os que conseguem tal feito são aqueles sobre os quais se escrevem livros e artigos e por isso ficamos sabendo de tão brilhantes e árduas conquistas. Isso soa como auto-piedade ou complacência. Pode ser, não descarto. A interpretação é livre, ao gosto e desgosto do freguês.

Aquela era uma época em que grandes exames de madureza eram realizados pelo Brasil afora. Os do Rio de Janeiro eram famosos por serem fáceis. Eram concorridos, os cursinhos supletivos, ou de madureza, montavam caravanas para o Rio. Não foi meu caso, não estava em nenhum cursinho. Iria com a cara, a coragem e meus conhecimentos. Ótimos em história e geografia. Bons em biologia. Bons em português. Redação não havia, era tudo no xis. Matemática eu não sabia. Desconhecia. Mas era e sou muito bom em aritmética. O bastante pra escapar de um vexaminoso zero. Inscrevi-me no Rio.

Dias antes da viagem encontrei com um colega que também iria. Combinamos ir juntos. Pra economizar, pegamos o Cometão na noite de sexta na Rodoviária. Era o último horário, assim chegaríamos com o dia já amanhecido e tudo aberto. Ledo engano. Quando chegamos, só vimos abertos os botecos próximos da rodoviária. Saímos zanzando, sem lugar pra ficar. Eu até conhecia algumas pessoas no Rio, gente ligada à militância política. Mas nem morto eu iria aparecer em seus apartamentos e pagar o mico de dizer que ali estava pra fazer o exame de madureza. Questão de orgulho, que, pelo menos um pouco, é bom ter. A memória me trai e não lembro quem, mas um companheiro de militância pra quem abri meu segredo escolar, recomendou – e deu um contato, um companheiro da “direção” – ir pro céu pra passar a noite.

Ir pro céu... Isso soava meio tenebroso. Ficava no Botafogo ou Flamengo, também não recordo direito.

E lá fomos nós, dois estudantes paulistas, duros, em pleno sábado carioca, olhando as praias e garotas do Rio pelas janelas dos ônibus. Sem o que fazer, e vestidos como paulistas em pleno sábado ensolarado, ir à praia ou caminhar pela calçada era um mico que nem por sonho pagaríamos. Restavam, portanto, as janelas dos ônibus, andando daqui pra lá e de lá pra cá, até a hora de ir pro exame.

Acho que aquele exame foi em Madureira. Talvez sim, talvez não, mas foi num lugar longe pra burro. O ônibus demorou uma eternidade, cheio de cariocas vindo das praias da zona sul, pelo menos era o que parecia. Lotado, o tempo todo. Quente, suarento, um Rio nada charmoso. Chegamos, entramos, fizemos o exame, saímos e voltamos pro lado charmoso do Rio de Janeiro. O jantar eu fiz questão que fosse no Beco da Fome, que já conhecia de outras viagens. E ali sempre comia lasanha. Vai entender. Mas era bastante comida pra pouco dinheiro. Bom demais. Depois sentamos num bar ali perto, tomamos alguma coisa e ficamos vendo o movimento intenso, pessoas e carros circulando o tempo todo. Gritos, risadas, buzinas, o que se poderia chamar de vida em movimento. Um tipo de vida. Interessante, uma fauna variada. Prostitutas, rufiões e uns caras esquisitos, que depois, em outras viagens, aprendi a identificar como filipinos ou malaios, que compõem, talvez, mais de 90% das tripulações de navios mercantes em todo o mundo. Travestis, poucos, também rodavam por ali. A gente olhava disfarçadamente, morrendo de medo de dar bandeira e um deles nos abordar. Felizmente, isso não aconteceu. As pessoas, travestis inclusive, eram mais recatados, mais discretos naquele tempo. Até que chegou a temida hora de ir pro céu.

Já tínhamos passado por lá pela manhã. Daí o nosso temor e a vontade de ficar ao máximo na rua. O céu, na verdade o CEU – Casa do Estudante Universitário – era um velho prédio ainda imponente, pela arquitetura, tamanho e abandono. Já fora lindo, agora era só bonito, olhando com boa vontade e com a ajuda da imaginação. Acho que foi a antiga sede da UNE, e acho que por isso eu me lembro de estar emocionado por poder conhecer lugar tão importante. Abrigava um punhado de estudantes. Minha indicação para o companheiro da “direção” foi preciosa. Fôramos bem recebidos. Não havia quartos disponíveis, mas o pessoal da “direção” nos alojou no alto, no segundo ou terceiro andar. Era um salão grande, cheio de tranqueiras, cheio de lixo, na verdade, de todo o tipo. Felizmente, lixo seco, móveis antigos na maior parte. Entre eles, alguns colchões, guardados para quando viessem companheiros de fora. Éramos nós, companheiros de fora. De algum lugar misterioso e generoso surgiram dois lençóis. E assim, naquele moquifo, deitamos e dormimos. Eu demorei a pegar no sono. Os companheiros da “direção” recomendaram tomar cuidado com nossas coisas. Minha inseparável mochila velha virou travesseiro.

Tinha bichos-bichos variados andando por ali, dei umas esperneadas e uns tapas. A noite foi chata. Tinha cheiro de pó e tinha pó, claro. Isso aconteceu há tanto tempo que pó era somente isso: pó, aquela sujeira sobre a qual se passava o espanador. É, isso também é velho e anti-higiênico, ainda por cima. A noite foi longa.

O dia amanheceu bonito, um dia carioca, sol, céu azul, nuvens brancas, barcos no mar, garotas de biquíni... Bom, isso foi mais tarde, com o sol quente. Demos o fora do céu logo cedo, nem 7 da manhã era. Saímos em busca de uma boa padaria pra tomar café e comer. E andamos, agora na beira da praia, no calçadão. Era cedo, a rapaziada dormia. Quando as primeiras garotas começaram a chegar, a maioria acompanhada, percebemos que era hora de nos afastarmos. Tênis, jeans, camiseta e mochila, além das óbvias caras paulistanas, principalmente do meu colega, nissei, que ia ao Rio pela primeira vez, não eram bons cartões de apresentação. Quem sabe uma próxima vez?

Voltamos pra Madureira, entramos, fizemos o exame e saímos. Diretos pra rodoviária e de lá pra São Paulo. Também por isso o Rio de Janeiro é parte da minha vida.

Mas será que era Madureira? ...


P.s.: tenho, realmente, dúvidas sobre o CEU e sua localização e o que aconteceu com ele, etc; caso alguém saiba de tudo isso, aceito as novidades e também correções.

P.p.s. sim, fomos aprovados; como eu disse, os exames cariocas eram fáceis.


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quinta-feira, agosto 25, 2005

Um tempo perdido


Um tempo perdido por aí.

Parece tão distante e,
no entanto é bem presente.

Esse talvez seja um lugar,
um dos poucos que restam,
onde a vida se arrasta, igual,
dia após dia,
simplesmente se repetindo.

É preciso força para ficar

e sensibilidade para enxergar as mudanças,
as pequenas dádivas recebidas,
igualmente dia após dia.


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Expectativa & sombras




Sempre gostei das estradinhas ladeadas por grandes árvores, eucaliptos antigos, altos, sólidos.
Como que escondendo o mundo e criando a expectativa pelo que está mais à frente,
que mundo iremos descortinar depois da curva.

Essas estradas assim cercadas e

voltadas para si próprias,
estão sempre sombreadas, sempre frescas,
fazendo mais forte a diferença para o mundo lá de fora, aberto ao sol e ao calor.

Tristeza... A Velhinha se foi


O café-da-manhã de hoje não foi dos mais saborosos. Na verdade, nem lembro do que comi e bebi. Não bastasse meu espírito já meio predisposto a uma deprezinha depois do jogo de ontem à noite no Morumbi, tive o choque de ler a notícia da morte da Velhinha de Taubaté.

A Velhinha – Dona Velhinha pra rapaziada que não a conheceu no auge, faz favor – tem me acompanhado ao longo desses tempos turbulentos como um vôo São Paulo/Porto Alegre no inverno que vivemos na Terra de Vera Cruz.

Acho que sua morte encerra um ciclo. Lembro de quando ela surgiu no cenário nacional. A ditadura, que já não o era mais, esculhambada pela duração (já repararam como esculhambamos com tudo, até mesmo ditaduras?) e pela presença à sua frente de João Batista, general cujas maiores qualidades eram a paixão pelos cavalos e sua disposição em conversar com outra velhinha simpática, ainda que chatinha, a Salomé, “de Passo Fundo, tche!” O general, então cumprindo a missão passada por seus pares de comandar o governo e a república, prometia muita coisa. Democratizar o Brasil. Abrir o regime. Prender e arrebentar quem fosse contra tão nobres princípios. E outras coisas mais, coisas mais comezinhas, difíceis de serem lembradas depois de tanto tempo passado. O que importa, entretanto, é que ela acreditava no governo. Era um exemplo para um país de descrentes, muitos, talvez, até profissionais, como certos estudantes que viram avós e continuam estudando.

Ouvir suas doces palavras de fé e crença no governo brasileiro nos dava, reconheço eu o que ninguém jamais reconheceu, um certo alento. Sim, porquê a gente quer acreditar no bem, quer o melhor, mesmo quando estamos pregando o “quanto pior, melhor”. No fundo, no fundo, a gente quer acreditar em algumas coisas que os governos dizem. Que estão trabalhando para o nosso bem-estar e que seremos ricos e felizes e até mais bonitos. Eu que queria ter a cara, cabelos, corpo e etc do George Clooney ou do Sean Connery, e, principalmente, a ironia do Sean, sempre esperei por esse anúncio. Pena que nem Figueiredo ou Sarney, ou os Fernandos Afonso e Henrique e agora o Ignácio me prometeram isso. Ouvi em off que Tancredo iria prometer-me essa benesse, mas, coitado, foi-se antes de chegar e aqui permaneci, ainda sonhando com, pelo menos, a ironia. E parte dos dólares.

Temo pela jovem democracia tupiniquim. Hoje, mais que nunca, tenho profunda convicção que a verdadeira âncora de nossa estabilidade política não era o Toninho Palocci, e sim a Velhinha e sua fé inabalável no governo. Como bem lembrou Veríssimo, fé abalada várias vezes mas sempre recuperada. Disse ele que o caso mais grave foi por ocasião do episódio da compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique, mas as explicações ouvidas – com certeza do próprio e acompanhado de Dona Ruth – deixaram-na satisfeita. Ela gostava do Professor-Presidente e sua prosa convincente.

Agora, ela morreu. Ela que tanto acreditava em Ignácio e Toninho Palocci. Não o disse Luiz Fernando, digo-o eu: ela também acreditava em José Dirceu, tanto que Zé passou a ser o nome do bichano, neto do famoso Carlos Átila dos tempos figueiredianos. Acreditem, sua crença far-nos-á muita falta. Aproveito para adiantar que notícias dizendo que Marcos Valério pagava suas contas de água, luz, telefone e tv a cabo são completamente infundadas. Nem ele, nem Dona Renilda.

Fechando, pesaroso, tudo que consigo lembrar e pensar é dos muros pichados em Paris, em 1968, com as palavras de ordem gritadas nas ruas por algumas correntes do amplo movimento estudantil que abalou a República, que abalou o mundo, que ajudou a criar tudo isso que ora vivemos:

Deus morreu. O Tempo morreu. E Eu mesmo não estou me sentindo muito bem.


P.s. em 1968 eu era só uma criança; o crédito por essas lembrançãs é de Julio Cortazar, em "Ultimo Round".

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quarta-feira, agosto 24, 2005

Crise cansa



É, crise demais também cansa. Parece que estamos no momento “canseira” dessa crise. Falar nisso, alguém lembra como tudo começou? Errou quem disse que começou com a colheita de 53 milhões de votos. Isso é bobagem retórica. Sequer começou com Waldomiro, aquele da propina de 1%. Até poderia, mas não nasceu ali. A gestação foi abortada, embora tenha deixado seqüelas. A bichinha nasceu, de fato, foi com aquele sujeito, funcionário dos Correios, embolsando uma gorja de três mil reais.

Três mil reais...

Puxa, se fossem euros pelo menos ou, vá lá, dólares, mas foram reais mesmo. Não são o bastante nem pra pagar meia-garrafa de um dos vinhos dos companheiros. Pensando bem, há muita diferença até pra uma prosaica Fiat Elba, símbolo de outra crise há muito encerrada (encerrada?). Por isso eu digo que o certo mesmo nessa crise é que ela tivesse nascido com o Land Rover do Silvinho. Aí sim, aí já estaríamos num outro patamar, coisa de gente grande, gente metida a besta com razão de ser. Um Land Rover traz implícita uma certa grandeza, entendem, um ar assim de nobreza, das gentes ditas e tidas por finas.

Querem ver uma coisa? Isso é tal e qual o roubo do Banco Central em Fortaleza. Coisa de George Clooney e Brad Pitt, mais o auxílio luxuoso e maravilhoso de uma Catherine e uma Julia. Aquilo sim é roubo! Pra gente chegar em Nova York, Londres, Paris, Roma, Chicago e até Los Angeles, pátria-mãe de Hollywood (ou vice-versa?), bater no peito e gritar alto e bom som: 65 milhões de dólares, sem sangue derramado, sem alarde e sem sirenes, tudo na boa, roubados na moral, na maior limpeza. Pros desavisados ou não afeitos, esses 65 milhões de verdinhas correspondem a 160 milhões dos nossos reais. Dinheiro pra burro, né? Até pra Hollywood, afinal, a tropa que os bonitões (opinião da mulherada, só reproduzo) George e Brad reuniram, limitou-se ao roubo de ridículos 22 milhões de dólares. Coisa de pobre, definitivamente.

Curve-se, ó mundo, uma vez mais à Terra de Vera Cruz e seus tupiniquins!

Esse nosso foi um roubo pra polícias além do 1o mundo. Foi um roubo pra Bruce Willis e seu auxiliar negro de plantão. Ou Mel Gibson e Danny Glover, o Danny dos bons tempos, seu parceiro também negro. Sim, somos do 4o a caminho do 5o mundo, mas temos nossos brilhantes momentos 1o mundo. Ô, só temos! E pra ir atrás de seus autores só uma polícia com a eficiência roliudiana. Não dá pra deixar por menos.

Queria muito ver essa troupe do roubo no aeroporto de Fortaleza. Foram dez, né? E dez passagens compradas com notas de 50 ainda quentinhas do calorzinho do cofre do Banco Central. Ah, que olhar estupefato deve ter feito a menina do guichê da companhia aérea ao vender assim, de bate pronto, dez passagens e receber o pagamento em dinheiro vivo. Cash, como se diz. Coisa de cinema. Imagino o roteirista sentado em frente ao micro, como eu agora, bolando a cena e escrevendo, frisando “olhar estupefato” da atendente. E o babaca do diretor dizendo que a cena era muito absurda e que precisava ser mudada. Ora, vá se catar, senhor diretor, pois de realidade o senhor nada manja. Nós, roteiristas, sim, manjamos tudo, pois sabemos que hoje a realidade é mais fictícia que a ficção, embora seja, a realidade, bem real. E mesmo assim, nós, roteiristas, não somos páreos pros maiores gênios da absurdização da realidade, os políticos. Desde os inócuos tupiniquins até os tenebrosos bin Laden e cia.


Dizem que a polícia desconfia de inside information e, pior, inside action nessa operação. Sim, alguém de dentro deve ter dito tudo sobre o cofre. E alguém de dentro, possivelmente, plantou uma empilhadeira bem na linha de mirada da câmera de vigilância. Puro gênio cinematográfico. Alô, polícia encarregada da investigação, pense nessa linha de trabalho, procure por um roteirista desempregado, talvez frustrado com algumas negativas de patrocínio oficial e, quem sabe, encontrará o autor intelectual desse script.

Bom, como nem tudo é perfeito, já teve neguinho mais afoito do bando que saiu comprando carros à vista, cash, e botando dinheiro nas latarias, como se fosse saquinhos de cocaína, heroína ou marijuana. Tsc tsc tsc... E essa bobeira, também condizente com os bons roteiros, conduzindo a um final moral, me lembra que esse texto é sobre a crise. O pior é que o texto já tá grande e da crise mesmo pouco falei.

Mais uma prova, portanto, que nem as crises são feitas hoje como eram feitas antigamente. O pior nessa de agora é que nada acontece com ninguém. Nada, absolutamente nada. Delúbio, o homem das malas, sequer expulso de seu partido foi. E nem será. Dizem que, caso isso aconteça, a República cai. Silvinho, talvez ao volante de seu Land Rover, escafedeu-se. Genoíno, coitado, vítima indefesa dos ardis delubianos criados por mestre Zé, está recluso, amargurado, atarantado, aposentado, em sua casa simples de toda a vida, talvez se preparando para a carreira de monge trapista (ele, pelo menos, nunca deu-se ao desplante de fumar Cohibas, ganhar Land Rovers ou comprar fazendas à vista e cash; e, mesmo assim, sobrou pra ele; o que me faz lembrar com propriedade de Hannibal Lecter perguntando pra Clarice Starling sobre o silêncio dos cordeiros, the silence of the lambs, indo quietos, emudecidos, conformados, para o matadouro). Gushiken sumiu, embora dê expediente no Palácio. Dizem. Zé Dirceu, bom, Zé Dirceu fez e aconteceu e agora manobra, como sempre, os cordões a partir dos bastidores. E Marcos Valério anda ocupado, reunido com advogados e processando o partido para receber os empréstimos dos quais foi avalista e tentando convencer dona Renilda que o careca nas festas brasilienses com as meninas de Mary Jeanne não era ele.

Nenhum gesto nobre. Nenhuma renúncia. Nada de nada. O presidente está inamovível. Com ele ninguém mexe, ninguém agita. Os ministros todos vão bem, obrigado, o da Fazenda inclusive. Assessores de ministros continuam passeando pra lá e pra cá. Se a gente pensa e fala em Willy Brandt, caso alguém dessa corja saiba quem foi ele e conheça sua história, dará risada e dirá que o cara foi trouxa. Imagine, renunciar por causa de um assessor que enveredou pelo caminho do mal. Ora, que bobagem.

O paradoxal nisso tudo é que o país vai bem, obrigado, embora o povo, como de hábito, vá mal, o que é um mero detalhe. E o governo que nasceu de “esquerda” funciona porquê os ministros da “direita”, Rodrigues e Furlan, seguem trabalhando e ninguém vê seus nomes em parte alguma dos cadernos de política.

Mas, cansei. Há dias nada escrevo a respeito e leio só as manchetes. Tem sido o suficiente para me manter atualizado. Tenho escrito sobre árvores e bichos. E tenho escrito sobre futebol. Ou seja, ando escrevendo sobre o que é importante. Nessa altura do campeonato, qualquer uma das minhas vaquinhas é mais importante que qualquer um dos ministros da república. É mais importante que S. Excia. Também.


Fui.

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terça-feira, agosto 23, 2005

Comentários



Fernando, tenho lembrança dessa música, sim. Mas não recordo quem cantava e o nome. Aliás, os grandes sucessos foram cantados por muitas duplas e cantores. Pra completar a vaga memória, todos meus cds de música caipira e música sertaneja foram roubados do meu carro há uns 2 anos. :o( Preciso recomprar todos.

Ana... hummmmmm... Belo filho e belo pai, oras! Caso contrário terei de gastar um monte em análise. :o)

Deletados: spam comments. Impressionante, a criatividade vai às alturas. Deletei dois. Outros virão.

E o povo continua perturbando a Tereza Cruvinel em seu blog. E o Jorge Moreno em seu blog. E o Lédio Carmona em seu blog. E o Jorge Luiz Rodrigues. E o Noblat. E até a Cora com um blog tão eclético como o InternETC. Há que ter muita paciência pra agüentar gente que só aparece pra perturbar e falar abobrinhas.

Hummmm... O César Maia tem um blog. O blog do César Maia não permite a postagem de comentários...

É esperto o César Maia.

O César Maia não sabe o que é um blog.

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Olhando do alto...


Essa é a vista que temos da saída de Santa Rita do Passa Quatro para Santa Cruz da Estrela, distrito a 17 km de distância. É na beira dessa estrada, a dez quilômetros e pouco que está localizado o Sítio das Macaúbas.

Dá pra ver bem pela foto como estamos no alto, por cima de tudo, né? Estamos na região chamada de Terras Altas Paulistas. Além da própria Santa Rita do Passa Quatro, temos São Carlos, Analândia e Brotas, e mais algumas cidades, inclusive Pirassununga e Porto Ferreira. Essa última é a cidade que se avista plano médio na foto. Mais para a esquerda fica Pirassununga. Mais para diante, no rumo do horizonte bem na direita da foto, fica Descalvado e mais além, fora já do horizonte abarcado nessa imagem, fica São Carlos. Todas elas também fazem parte das Terras Altas, embora só São Carlos esteja, de fato, bem no alto.

O sítio que aparece na beirada do “vazio” é de um casal de amigos, por sinal, com a família recém-ampliada por mais um pimpolho. Na divisa do sítio começa a descida abrupta para a parte baixa do município. Essa encosta é coberta por uma mata razoável, com uma boa população de macacos, que berram um bocado de manhã e de tarde. Esse sítio estava abandonado, nada mais era que um pedaço de pasto pouco freqüentado. Assim que eles mudaram, nos primeiros três dias, foram “visitados” por 3 ou 4 cascavéis, com certeza aborrecidas pela invasão de território. Depois dessas visitas, felizmente, não deram mais as caras por lá.

Esse não é o ponto mais alto de Santa Rita do Passa Quatro, que é o Pico do Itatiaia. Mais pra frente voltarei lá para fotografar a região. Mas será melhor fazer isso depois de uma boa chuvarada, com o horizonte limpo.


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segunda-feira, agosto 22, 2005

Ipê, simplesmente



É quase a perfeição,
que se resume a momentos fugazes,
depressa quebrados pelos ventos
fortes e secos de agosto.

Mas enquanto dura,
quanta beleza!





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Planta daninha e ipê-amarelo: uma combinação feliz

O gênero Ipomoea tem um monte de representantes nativos dessa Terra de Vera Cruz. São cipós de belas flores. Se não encontram onde subir, cobrem o chão por completo. Se dão de cara com um pé de milho ou de cana ou uma cerca, aí ficam, devem ficar, mais felizes: se engancham e sobem. Na hora da colheita, um horror. Se manual, o trabalho é multiplicado e o rendimento cai vertiginosamente, o que acontece no milho, já que a cana é queimada antes da colheita, se ela for manual. Na colheita mecânica as bonitas ‘ipoméias” são tenebrosas: em certos momentos as colheitadeiras simplesmente travam, com a ceifadeira embuchada por quilômetros de cipós. Trabalheira braba, geralmente embaixo de um gostoso sol de quarenta graus. À sombra. Um dos nomes mais comuns dessa planta é corda-de-viola. E é um bom nome pra danada.



Aqui, todavia, a corda-de-viola está bem. Tá bem na foto, literalmente. Se alastrando pelo gramado à beira da Zequinha de Abreu, faz um bonito e discreto rodapé em verde e lilás pra realçar o amarelo de mais um ipê nessa Santa Rita do Passa Quatro.

A flora brasileira é espantosa. Planta daninha pode se transformar. Como uma gata borralheira das roças e sertões.
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Jacarandá-do-campo e a Lua


Manhãzinha no Sítio das Macaúbas.

O Sol já deu as caras e a Lua ainda mostra a dela.

Tanto brilhou a noite inteira, ofuscando as estrelas que, agora cansada,
parece se retirar devagarinho, discreta, querendo que ninguém note
sua presença fora de hora.

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sexta-feira, agosto 19, 2005

Jacarandá-do-campo no poente



O Sol está se pondo no Sítio das Macaúbas.

Um resto de luz dá um tom dourado à casa nova, onde vai morar o retireiro.

O jacarandá-do-campo está num de seus melhores momentos, silhuetado. É uma árvore com jeito de árvore mesmo, copa bonita, mas irregular.
Em mais um ano os dois eucaliptos ao fundo, à direita, estarão muito altos, compondo uma nova paisagem para o poente...

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Foto-família na Libertadores


É, meio diferente essa foto, né?

Foto-família, com meu filho no Morumbi, comemorando nem lembro
qual dos gols ou o final do jogo.

Tanto faz. Comemorando, é tudo que importa.

Tava devendo alguma coisa sobre a maravilhosa noite de 14 de julho,
quando o São Paulo venceu o Atlético Paranaense por 4x0 e conquistou a
Taça Libertadores de America pela terceira vez,
o primeiro time do Brasil a atingir tal feito.

Que noite, que noite maravilhosa.

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quinta-feira, agosto 18, 2005

Beira de estrada

Se os japoneses têm suas festas das floradas das cerejeiras, nós podemos ter a nossa festa da florada dos ipês. Santa Rita do Passa Quatro, por exemplo, poderia plantar grandes renques e formar parques com ipês-amarelos, brancos e roxos. São muitas as espécies de ipês-amarelos, cada uma florescendo num momento diferente da outra. O grande ipê no quintal da Casa da Lavoura floresce tarde, com a primavera já a meio caminho do verão. A cidade ficaria muito mais bonita, charmosa e atraente. Sem falar nas sombras durante os meses quentes.

A própria Via Anhanguera já presenteia o viajante com seus muitos ipês. De repente, o cansaço ou uma certa monotonia da estrada é quebrado pela visão de um ipê carregado, uma explosão de cor na paisagem. A vista repousa nas flores, a mente descansa, os pensamentos ganham outros rumos, a vida, ainda que por momentos, torna-se mais suave, mais agradável, mais gostosa de ser vivida.

É nas pequenas estradas vicinais, todavia, e nas estradas de sítios e fazendas, que a gente consegue mais que ver, viver esse presente da natureza.

Gosto de ir para o sítio pela vicinal do Brejão, uma estradinha bonita e gostosa. Ela sai de Porto Ferreira, passa pelo Brejão, um bairro só de sítios e fazendas, e chega a Santa Cruz da Estrela. De Santa Cruz até o sítio são apenas seis quilômetros, agora pela vicinal Santa Rita/Santa Cruz. O primeiro trecho tem curvas fechadas e pequenas pontes apertadas, corta pomares e canaviais, atravessa uma mata e penetra num túnel de bambus. Na mata, já vimos macacos. É uma mata bonita, permite à imaginação projetar como devia ser nos tempos antigos. Algumas árvores ainda se destacam, altas, sobranceiras.


Depois do Brejão, já perto de Estrela, estão as Curvas dos Três Ipês.




É assim que chamo esse trecho de estrada. De um lado e outro, canaviais. Um pouco mais afastada da estrada, uma mata ainda bonita. Macaubeiras esparsas no meio do pasto vizinho. Se olhamos para trás, para a direção de Porto Ferreira, a paisagem se alonga, no horizonte distante sabemos que está São Carlos do Pinhal, hoje sem os pinhais que lhe deram o nome. Mesmo com a névoa acinzentada do inverno esmaecendo a paisagem, ela é bonita. Vale a pena a mirada.

Mas o que domina a tudo são os ipês. Mesmo agora com a maioria das flores já perdidas, é uma visão de sonho. Ao mesmo tempo mínima e grandiosa. A natureza brasileira não se presta ao minimalismo poético dos hai-kai. Já tentei cometer um – parece fácil, são apenas dezessete silabas, sendo cinco no primeiro e no terceiro versos e sete no segundo – mas quem disse que consegui? Parece pouca, mas é muita areia, inda mais pra caminhão tão pequeno como o meu.


Tento fazer um hai-kai com uma foto, mas esse amarelo tropical não se presta à discrição.




Ele é muito explosivo, muito forte, muito intenso.
Está mais para uma feijoada barulhenta e cheia de gente do que para uma cerimônia do chá.

Simplesmente paro tudo por algum tempo e contemplo as árvores, as flores, a paisagem. Talvez eu tenha uma alma em parte japonesa e não saiba.

Olhar ipês, simplesmente.

É o que pede essa alma.

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quarta-feira, agosto 17, 2005

Noites e dias livres...


Livres de insetos. Que coisa boa! Vamos e venhamos, insetos aos montes é um saco. As portas da casa tem de permanecer rigorosamente fechadas, coisa que desagrada aos cachorros e à Sophia, que gostam de sair – o que todos sabem fazer empurrando as portas teladas – e entrar conforme lhes dá na telha. As moscas são quase uma lembrança, nada mais que isto, mesmo com o curral, as vacas, o esterco todo a algumas dezenas de metros de nossa casa.

Essa ausência de insetos em profusão e as noites sem luar são duas das grandes benesses do inverno. Há outras, mas me alongaria mais que o normal se fosse falar de todas elas.

Confesso, todavia, que a próxima chegada da primavera me anima. Com ela virão as revoadas de saúvas e cupins, enchendo o ar de siriris e içás. A passarinhada toda fica alvoroçada, as galinhas se agitam e as angolas se divertem, comendo toneladas de tanajuras e aleluias. Os sapos de todos os tamanhos voltarão a fazer ponto em nossas varandas, religiosamente, se empanturrando de tudo quanto aparecer atraído pelas luzes, principalmente besouros. O que me leva a freqüentes incursões noturnas catando besouros rola-bosta aos montes e jogando-os no bezerreiro e nos pastos próximos. Lá, eles fazem uma limpeza muito boa. Enterram-se no solo, cavando galerias, e levam lá pra baixo o esterco das vacas. No esterco vão os ovos da odienta mosca-do-chifre, uma praga terrível, tenebrosa, incômoda, para as vacas. Esses ovos nunca gerarão novas moscas, contribuindo para um razoável controle das maledetas. Aqui, em parte por isso e em parte pela homeopatia, a infestação é pequena, mas mesmo assim existe e incomoda.

E os vagalumes voltarão. As noites com eles são sempre mais bonitas, mais interessantes. O curioso é que a ciência já descobriu a luciferase, enzima que, na presença de ATP (adenosina tri-fosfato) e do substrato luciferina, produz luz fria sem calor. Ou seja, descobriu tudo mas não descobriu como fazer luz fria, com pouca ou nenhuma perda para a geração de calor. De 90 a 94% da energia envolvida é transformada em luz pelos vagalumes, e somente de 6 a 10% é transformada em calor. Isso é exatamente o oposto do que nós conseguimos com nossas lâmpadas.

Alguns vagalumes emitem uma luz bastante forte. Já me flagrei assustado no sítio com uma luz cambiante vindo em minha direção pelo carreador de entrada. Ô, diabo de sensação chata! É passageira, dura se tanto dois segundos, mas deixa seqüelas. Há um intervalo, um delay, como se diz em português moderno, entre a visão da luz, a descarga de estímulos meio vexatórios e instintivos e, finalmente, o glorioso processamento daquele sinal por nosso intelecto, que em questão de nanossegundos chega à conclusão, brilhante, que é só um vagalume. Pena que o estrago já esteja feito antes disso tudo. Essa luz, que com certeza está na origem de algumas lendas, de alguns mitos, é contínua e gerada pela “lanterna” abdominal do pirilampo.

Um dos grandes espetáculos dos cerrados, ou melhor, mais na região do sudoeste goiano e leste do Mato Grosso do Sul, é a visão dos cupinzeiros luminosos. A região é rica em cupins de montículo – dos quais há um monte de espécies – e os vagalumes deixam seus ovos nos respiradouros desses montículos. As larvas que eclodem dos ovos, postam-se à entrada dos respiradouros e brilham. É esse o belo espetáculo que a gente vê. O que a gente não vê é o porquê do espetáculo: atraídos pelas luzes, insetos incautos vão de encontro a elas. Vão de encontro às goelas das larvas. Dirá alguém: por trás da beleza, o horror. Bobagem. Isso nada mais é que uma engenhosa adaptação de uma espécie ao seu ambiente.

Pois bem, logo, logo, as noites começarão a esquentar, as chuvas chegarão, os insetos voltarão. Com eles, coisas boas e coisas ruins. E paro por aqui se não vou sair citando Engels e o meio bobo “Dialética da Natureza”. E nem eu tenho mais estômago para tanto.


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terça-feira, agosto 16, 2005

Sophia... há quase um ano


Madame Sophia, quando fiz essa foto, era ainda Mademoiselle.

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Girassol, um pouco mais


Guri, criado em fazenda de café, agricultura pra mim era café. Cafezal a perder de vista e a gente perdido lá dentro, tudo parecendo igual pra qualquer lado que se olhasse. Lavoura mais chata, a única diversão era procurar ninhos de rolinha e tico-tico nos pés de café. Fora café, era um tratinho de feijão aqui, arroz nos brejos, um tanto de milho pras galinhas, pros porcos e pro fubá. Onde tinha usina, tinha cana. tirando isso, nada mais.

A soja, o milho bem plantado, profissionalmente, a cana por toda parte, os grandes laranjais, tudo isso é coisa mais moderna, mais recente, fruto de uma agricultura que evoluiu e se diversificou. Guri, girassol era aquela planta bonita de um filme água com açúcar – “Os girassóis da Rússia”. Por aqui, era planta de raros jardins. Há alguns anos, timidamente a princípio, sua cultura começou a ganhar espaço nas áreas de renovação de canaviais. Com o crescimento da classe média e com a maior ênfase à saúde e à qualidade de vida, o óleo de girassol também ganhou espaço nas gôndolas dos mercados e nas cozinhas de famílias jovens com bom nível de renda. Lentamente o girassol foi crescendo em área e importância. É pequena a área e pequena sua importância no volume total de grãos, mas em cinco ou seis anos esse quadro estará bem diferente.

Respondendo ao Fernando, eu só "plantei" girassol em bordadura (beirada) de roça de milho pra chamar a atenção das maritacas e periquitos. Esses “simpáticos” e barulhentos visitantes adoram milho! O pior é que abrem uma espiga, comem meia dúzia de grãos e vão para outra. A espiga aberta fica exposta ao ataque de fungos e insetos e o agricultor fica com um belo prejuízo. Plantando girassol nas beiradas, procurei atrair a passarinhada pra essas plantas, salvando algumas espigas. Deu certo pra eles. Tiveram dieta diversificada. Quanto a mim, bom, restou a satisfação masoquista de ver os bandos voando e gritando satisfeitos por todo o sítio.

Está em meus planos plantar girassol como lavoura de “safrinha”, ou lavoura de inverno. Normalmente, a principal lavoura é a de verão, que se inicia com as chuvas de primavera, em outubro. As lavouras de inverno como sorgo, o próprio milho-safrinha e o girassol, são plantadas logo após a colheita da lavoura de verão, entre janeiro e março, ou princípio de abril. O sorgo e o girassol são interessantes porquê suportam relativamente bem o período seco que se inicia em maio, geralmente. Quando eu plantar, entretanto, será para picar a planta inteira e ensilar, fazer silagem para o gado comer na seca.

O plantio para produção de grãos e, posteriormente, de óleo, se dá, principalmente, em algumas áreas do cerrado goiano e mineiro, em algumas regiões de São Paulo e do Paraná, bem como no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.




Essa foto mostra o campo de girassol do meu vizinho Sandro.

Curioso, o cinza do céu, as árvores desfolhadas, a própria lavoura, a paisagem ao fundo,
tudo parece indicar uma lavoura de girassol no Canadá.

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Vida dura


Essa é a Titica. Durante muito tempo nós a chamamos de “Magrela”. Mas ela encorpou bem, ficou somente magra e passamos a chamá-la da mesma forma que seus donos, nossos vizinhos de baixo: Titica.

Vida dura, né? Daqui a uma meia hora ela vai acordar e deitar ao sol. Por mais uma meia hora, pouco menos, quando voltará pra sombra.

Mas é uma vida sujeita a imprevistos. A chegada de um visitante. A Rosa passando a caminho da cozinha, local de eterno prazer com guloseimas só vistas e comidas aqui, e só quando a gente está aqui. Essas guloseimas, em formas diversas, mais o carinho direto, transferem para nós toda a sua lealdade canina durante o final de semana.

A Titica é fiel.


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Saia & Blusa


Conforme o momento, ou seja, dependendo do ângulo de incidência da luz do sol, fica visível a diferença de tons entre a vegetação mais velha e a brotação que veio depois da poda da cerca-viva de sansão-do-campo.

Um ton-sur-ton, conjuntinho saia & blusa como dizia-se muito antigamente. Sei disso porquê minha mãe era costureira e expressões ligadas a essa atividade eram comuns em casa.

Fala-se assim ainda hoje?

Essa cerca é de um dos vizinhos. A minha não foi pra frente. Vou tentar novamente tão logo comecem as chuvas.

segunda-feira, agosto 15, 2005

Gato por lebre


É uma unha-de-vaca ou pata-de-vaca. Ou deveria ser. É, na verdade, sua prima bauínia, originária da vizinha Argentina. Mas nem parece, tão bem se deu por aqui.

Comprei a muda já bem grande, bem desenvolvida. Queria uma árvore com rapidez. Talvez ela já tenha vindo com o hóspede indesejável, talvez ele tenha entrado a bordo, ou melhor, sido introduzido, aqui no sítio. Falo de uma broca que provocou a morte da parte aérea da pequena árvore. O que a foto mostra é a rebrota.
Só na florada descobrimos que a nossa nativa unha-de-vaca era uma hermana do Mercosul ao florescer. As unhas-de-vaca têm flores brancas, e a bauínia as têm lilazes. Mas não faz mal, os beija-flores também gostam dela.

Comprei lebre e veio um gato.

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Sítio das Macaúbas II


Nesses tempos bicudos é bom a gente ver um pouco de verde e amarelo sem que por trás venha um discurso.

O campo de girassol e a barreira de eucaliptos fazem o rodapé para o Sítio das Macaúbas.

Esse inverno está com paisagens ainda bonitas.

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sexta-feira, agosto 12, 2005

Tempos difíceis à frente


Infelizmente temos tempos difíceis à frente. O processo de impeachment é basicamente político e não jurídico. Precisa de uma base jurídica, é claro, base que ainda não está clara, acima de qualquer suspeita. E precisa, sobretudo, dos votos no Congresso. E o Congresso ainda não é pró-impeachment. Muita água ainda resta por rolar.

Como, todavia, CPIs têm vida própria e se auto-alimentam com suas próprias descobertas, tudo é possível. Na hipótese de impeachment, parece mais ou menos claro que o vice também seria atingido, pois foi eleito, ou teria sido eleito, graças a maracutaias diversas armadas para a eleição da chapa: presidente e vice.

É nesse momento negro que surge, glorioso, no horizonte de nossa miséria Severino Cavalcante, presidente da Câmara dos Deputados, o rei do baixo-clero.

Semana que vem a companheirada dos "movimentos sociais" reúne-se em Brasília. Até dizem que em nome da ética na política. Sei. Seus coordenadores querem reunir-se com o companheiro-mor (o mesmo que ontem esteve reunido com Chavez), com certeza tascar-lhe-ão o boné de algum movimento fora-da-lei na cabeça, palavras toscas e agressivas contra as elites serão pronunciadas e vai sair, estou certo, a primeira ameaça: "O lulla é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo" e estará aberto o caminho para o pior dos cenários nesse país muito grande e imensamente bobo.


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Estrelas, novamente




Na verdade, fui econômico ao falar das estrelas e, principalmente, ao falar que mais de 90% dos norte-americanos e europeus não as enxergam. Então, adeus economia de palavras e vamos às explicações.

Mais de 90% dos habitantes desses continentes vivem em áreas urbanas ou bastante urbanizadas. Nessas regiões, há uma forte poluição atmosférica, deixando a atmosfera menos transparente. Associada a ela temos a luminosidade das cidades, uma verdadeira poluição luminosa, acabando de vez com a chance de ver o céu coalhado de estrelas e, principalmente, a Via Láctea.

Nas cidades, ainda avista-se alguma coisa mas só em situações excepcionais, como depois de uma tempestade com chuva e ventos, por exemplo, quando o ar fica limpo, transparente.
Devido à poluição luminosa, há diferença de magnitude entre a Via Láctea que vejo no sítio e a que vejo no sertão mato-grossense. E garanto que não é pouca. Então, é isso. Deve ser bonito o céu no Saara e no coração da “África negra”, afinal, quanto mais pobre e sem recursos modernos, mais bonito e brilhante é o céu. Na Amazônia o céu também é bonito. E isso me faz pensar que preciso ir pra Roraima, não só para ver os campos do Lavradio e as montanhas, mas também para ver o céu equatorial.

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quinta-feira, agosto 11, 2005

O fim...

Eu acho que o fim começou mesmo hoje.

Uma lágrima pelo fim das ilusões de tanta gente.

Realmente, sinto muitíssimo.
Por quem acreditou.
Por quem se esperançou.
Por quem simplesmente nasceu aqui e gosta daqui.

Uma lágrima pelo tempo perdido, pelo tempo investido, pelo tempo sonhado.

É triste, mas talvez sonhar demais seja ruim.
E é triste dizer e acreditar nisso.

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Chopim-do-brejo


Eis aí um exemplar de um dos habitantes do Sítio das Macaúbas.

Ainda não consegui uma foto decente deles lá no sítio, mas não desisti.

Obrigado, anonymous, valeu a dica.


Sobre estrelas: uma amiga muito querida que mora na California, perto de Frisco, disse que lá eles vêem, sim, as estrelas. Com certeza. O centro e o norte da California são bem civilizados, o ar é muito mais puro e as estrelas são visíveis. Bem visíveis. Se bem que ela disse uma coisa importante: as pessoas não vêem as estrelas porquê estão doidas tentando pagar suas contas.

É, tem lógica, tem muita lógica.

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quarta-feira, agosto 10, 2005

Saindo do arquivo morto

Esse é um texto antigo, escrito há pouco mais de 5 anos. Fuçando no arquivo morto de textos, encontrei-o. Não sei porquê fiquei com a sensação que ele é atual.



Aves e répteis do sítio. E do Brasil (Crônicas do sítio 4)


Às vezes, na chegada, somos recebidos pelos urubus. Os macambúzios senhores, eternamente trajados de preto - menos o rei, raro como todo rei e, como alguns reis, todo colorido - ficam perfilados, um em cada moirão da cerca, alguns com as asas abertas, quem sabe bronzeando as axilas, outros apenas quietos, dormitando, talvez. Tem quem não goste, mas não é meu caso. São bichos muito simpáticos, fora a utilidade. Se com eles já é meio ruim agüentar os maus-cheiros que abundam nesse país, sem eles, então, seria simplesmente impossível. Mas, como dizia, são simpáticos, sim. Que nem aquelas pessoas feias, muito feias, tão feias que se tornam simpáticas por obra e graça duma simpatia natural ou simplesmente por acharmos que o são.

Bom gourmet, não posso dizer que inveje o cardápio dos urubus (quem sabe os franceses e suas carnes “descansadas”?), mas invejo a capacidade deles de pairarem acima de tudo e de todos, aproveitando as correntes ascendentes de ar quente e subindo, volteando, subindo, sem fazer esforço. E lá no alto se deixam ficar por muito tempo. Dependendo de onde habitem, como os arredores de São Paulo, Rio, Brasília, sim, Brasília... devem ficar lá por cima porquê, provavelmente, nem eles agüentam o perfume podre que cerca essas nossas cidades, emanados de elites (eu disse elites?) políticas putrefatas e descaradas.

Outro dia na chegada, a atenção foi despertada por um grupinho alegre e barulhento, uns passarinhos vestidos todos com roupagem de grife: corpo amarelo vivo, peito preto, cabeça idem, dorso amarelo e escuro. Vivazes, pulavam dum pé de milho para um de goiaba, e de volta para o milho, ou outra goiabeira, gritando uns, cantando outros. Uma festa. Na verdade é um bando de chopins-do-brejo que habitam um brejo próximo, e saem nessas excursões, tipo picnic, um verdadeiro grupo de alegres farofeiros. Com uma vantagem: sem farofa e sem a pinga, logo, sem as discussões regulamentares de tais grupos e seus acompanhamentos líquidos.

O mais comum é ouvirmos as seriemas cantando. Vez que outra elas se deixam enxergar. A cada nota do canto, o longo pescoço sobe e desce. Uma cena cômica, apesar da seriedade com que uma canta daqui e a outra responde dali. Andam sempre em casal, só falta se darem as pontinhas das asas. De certa forma, ouví-las dá uma sensação de tranqüilidade. Tudo está em ordem. E, provavelmente, não veremos nem rastro de cobra nas proximidades. Diz o povo de norte a sul, leste a oeste, que elas comem as cobras. Já pesquisei sobre isso, e o máximo que vi foram referências a filhotes comidos, mas ... vox populi vox dei. A verdade é que há muito não vejo cobras por esses sertões afora. Mas emas e seriemas tenho visto de monte.

Coisa meio triste essa: sujeito vê uma cobra e desanda a procurar pedra porrete facão enxada espingarda. Os dias da pobre estão contados. Tanto faz que não seja venenosa, é cobra, logo, tem de morrer. Um bicho tão útil, e tão maravilhosamente evoluído e adaptado. O que me espanta é que essa mesma sanha assassina vingativa justiceira preventiva, não seja exercida (dentro dos limites da lei) contra os verdadeiros répteis assassinos e venenosos, que por vias diretas e indiretas, matam, espoliam, aleijam, embrutecem, poluem, saqueiam, entristecem esse pobre país.

Quanta energia mal direcionada !


(Como disse acima, há muito escrevi esse texto, pouco mais de 5 anos. A podridão mudou. Agora cheira pior. Haja urubu pra tanta carniça.)


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Sítio das Macaúbas

O Sítio das Macaúbas ocupa a área central da foto. À esquerda, está limitado pela estrada vicinal asfaltada, que faz uma curva fechada para dentro e para baixo. À direita, o limite é a pequena mata da "mina". O lado esquerdo é tomado pelo pasto, onde se pode avistar algumas macaubeiras. À direita do pasto, o bloco meio quadrado verde-escuro é o pomar de laranja-lima. O pasto mais claro imediatamente abaixo é dos meus vizinhos, os Janduzzo. É, também, meu objeto de desejo. Continuará assim por enquanto.



Essa foto é anterior à construção da "casa do asfalto", onde irá residir o retireiro que ainda irei contratar. Também não aparece o canavial em implantação na parte de baixo do pasto.

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terça-feira, agosto 09, 2005

A beleza da noite



A beleza das noites de inverno não me cansa. Torno-me repetitivo, falo e escrevo sempre a mesma coisa. A lua já se foi. Esteve visível no fim da tarde e começo da noite. Lua de calendário, lua nova, desenho perfeito, fino, brilhando já baixa no horizonte, indo embora.
A noite agora é só das estrelas.

Olho as bezerras, outra coisa que tampouco me cansa. As vacas estão no piquete que deveria ter sido uma lavoura de sorgo. Estão felizes, até deixaram para trás os cochos cheios de cana picada. Foram em busca de capim verde, ainda que pouco, misturado com sorgo no meio da guanxuma. Quando me viram abrir a porteira de acesso ao piquete saíram correndo. Precavido, coloquei-me atrás de um mourão. Não queria ficar na frente daquelas senhoras enormes, largas, correndo sem o menor jeito, tão desajeitadas que ficam até cheias de graça. É noite de festa em meio à carestia de pasto. Tudo vai bem, penso e digo para mim mesmo.

Ao invés de voltar para casa e para o banho reconfortante, toco adiante, a lanterna desligada balançando na mão. Em poucos segundos meus olhos se acostumam com a luz difusa das estrelas. Sigo a trilha clara feita pelo trânsito dos veículos no areião do carreador. É nessa luz que percebo como algumas árvores cresceram. A silhueta alta e esbelta do jacarandá-mimoso me impressiona. À luz do sol ela não é assim tão impressionante, fica meio perdida. As araucárias, as mungubas no meio do pasto, as mamicas-de-porca ou de cadela, ao gosto do freguês, tudo é novo, tudo me surpreende e até encanta nessa luz gostosa e suave. Luz para entrever e imaginar, mais do que para enxergar de verdade. Vejo essas árvores todos os dias em que estou no sítio, passo por elas, mas não as vejo realmente. Não me detenho para olhar com calma. Simplesmente olho passando, aquele olhar falso que nada vê e que a luz das estrelas agora corrige e amplifica.

Caminhar à noite amedronta um pouco, sim. Ainda hoje, homem barbado de há muito. Sempre irá amedrontar. Medos antigos a gente não esquece e nem perde. Quando muito, aprendemos a conviver com eles e a seguir em frente. O medo do escuro é antigo e está inserido em nosso código genético, tão grande é sua força e persistência.

Com os cachorros ao lado sinto-me seguro e despreocupado. Mas quando caminho assim, em certas noites, prefiro estar sozinho. A vivência vai ensinando que são muitos os sinais de alerta. O cricrilar dos grilos, trilha sonora sempre presente. Se ela pára é porquê alguma coisa interrompeu a grilaiada. O grito de um dos quero-queros. Não à toa eles são chamados no sul de “sentinelas dos pampas”. Passo pelo Brioso, que está no piquete ao lado da cerca. Imóvel, parece uma estátua. Devia estar dormindo, um dos estágios iniciais dos vários sonos dos cavalos. Eles se deitam apenas no estágio final e mais profundo do sono, que é muito rápido. Mesmo assim, qualquer ruído ou cheiro diferente vai despertá-los instantaneamente. Cavalos são os melhores vigias que conheço, melhores que os cachorros. Têm mais sensibilidade. É natural: cachorros já nasceram predadores na cadeia alimentar, senhores de suas vidas e das alheias, enquanto cavalos sempre foram presas. Sobreviveram e evoluíram graças aos sentidos apurados. Primeiro sentem, depois galopam, sempre na direção certa, a da fuga em segurança.

O Brioso continua quieto, as orelhas imóveis. Tudo está bem, sigo caminhando.

A escuridão da noite é falsa, uma ilusão. E é fascinante. A toda hora meu olhar desvia para o infinito, passeia pelas estrelas, leva junto minha mente. Lembro, como sempre, da tristeza que senti ao ler artigo de astrônomos americanos, canadenses e europeus num congresso qualquer, dizendo que mais de 90% das pessoas que vivem na América do Norte e Europa já não enxergam as estrelas. Esse manto de luz e beleza que olho agora é privilégio dos povos pobres. Como a vida pode ser pobre e limitada mesmo nas mais feéricas cidades!

“Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”
Fernando Pessoa

Volto para casa, volto para as luzes. Deixo, por enquanto, até a próxima noite, meu fascínio para trás. E a noite aqui, embora bela, não é tão luminosa, tão magnífica e tão bela como a noite nos grandes sertões. Por lá não há luzes ainda, nada há feito pelo homem, exceto as plantações que se estendem para o horizonte.

Por aqui vejo o brilho das luzes de Tambaú, Pirassununga, Porto Ferreira, Descalvado... Mais ao longe, bem distante, o brilho de São Carlos. Nessas Terras Altas Paulistas, a gente vê muito. E por hoje já vi demais, embora, como sempre, muito menos do que gostaria de ver.


Sítio das Macaúbas, 7 de agosto de 2005.

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segunda-feira, agosto 08, 2005

Florada!







Alguns ipês-amarelos já estão em flor.


















Até final de setembro, começo de outubro, vamos encontrar espetáculos como esse por todo o Brasil Central.

Essa é a nossa verdadeira árvore nacional.

Agosto, mês do desgosto, mês que não tem chuva, tem calor, tem calorão, tem vento e tem ventania, vai passar.

Setembro tem um pouco a cara de agosto, mas a gente sabe que ele já traz a primavera.

Os ipês em flor são a prova e a lembrança.


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Armadilha!


Uma das coisas que gosto no sítio é a diversidade de seus habitantes não-humanos e não ligados aos humanos. Ou seja, os ditos habitantes nativos. É uma gentinha pequena de pelos, penas, escamas e até espinhos, que nada mais são que pelos metidos a bestas.

As seriemas passeiam pelo sítio e cantam à vontade de manhã. Elas, que só andam em casal, têm tudo para fazer brilhante carreira na política tupiniquim. Bom, se não tem tudo, tem o mais importante: sabem cantar aos gritos, coisa tão em moda e tão ao gosto de um monte de gente. Desconfio que as danadas, além de comerem algumas cobras e cobrinhas, quando estariam jogando no time do “bem”, estão comendo, também, alguns pintinhos. Nesse caso, inapelavelmente estão jogando no time do “mal”. Ou seja, as safadas se banqueteiam com uma cobrinha não-venenosa, inofensiva, granjeiam boa fama entre os incautos e aproveitam para deixar sem vida e sem futuro montes de pintinhos. Ora, com tais predicados tá mais que na cara que as seriemas do Macaúbas e alhures têm tudo, sim, para brilhantes carreiras nos grandes e gélidos palácios brasilienses. Quem duvidar há de?

Entusiasmei-me.

Dizia que são muitos os habitantes do sítio. Ouriços-cacheiros, daí os espinhos, macacos, gambás, teiús – eméritos comedores de ovos e, se bobear, pintainhos também – e jibóias. Tucanos sobrevoam e comem nossos coquinhos e coquinhos de macaúba. Uma festa. O nambu canta no fim da tarde, deixando mais gostoso o que já é bonito e gostoso. Saracuras berram, sabiás cantam, gaviões diversos fazem suas incursões, e às vezes são perseguidos por um casal de siriris, bichinho que o que tem de pequeno tem de valente. Temos nossos próprios “sentinelas dos pampas”, os quero-quero. Há que se precaver com eles, pois defendem bravamente o ninho com ovos ou filhotes. As corujas e morcegos são parte de nossa população. Muito útil, por sinal.

Maritacas... sim, maritacas. Palradoras, invasoras, abusadas. Há 5 anos elas vêm criando seus filhotes no forro de casa. Até aí tudo bem. O diabo é a barulheira que fazem de madrugada. E os fios que desencapam, provocando despesas e gerando riscos. Como não iria expulsa-las, tive de mudar a fiação que passava pelo teto. Ficou caro. Se plantamos milho, sorgo ou girassol, aparecem parentes de tudo quanto é canto e aparecem bandos de seus primos baixinhos, os periquitos. Deliciam-se com as espigas e os cachos e as sementes. Azar meu e das vacas.

E os passarinhos, além dos sabiás e siriris, são muitos. De sabiás, temos o poça e o laranjeira, isso que eu vi. Tem viuvinhas, tico-tico e tico-tico-rei. Tizius e coleirinhas, bem-te-vis, as elegantes, brilhantes, barulhentas e terríveis gralhas, eméritas comedoras de ovos, voltaram de viagem esses dias. A plumagem está mais bonita que nunca: o branco-creme com o azul metálico brilhante. Estão sempre em bando, ou gang, pois seu negócio é a rapina pura e simples: atraem-nas os ovos de nossas galinhas. Outra turma que prima pela elegância e beleza da “vestimenta” é o bando dos chopins-do-brejo. Um amarelo puxado pro laranja, combinando bem com um preto cerimonioso mas alegre. Os pardais, chatos e invasores, cambacicas delicadas e bonitas, mas conhecidas por um nome feio pra burro: caga-sebo. E muitos, muitos beija-flores.

Há muitos outros passarinhos e aves por lá. Falei dos que já vi, mas esqueci de citar um monte deles, outros só ouvi e nunca vi, sem falar dos muitos que nem vi e tampouco ouvi. Mas estão por lá. Nos dois pedaços de mata que sobraram, nas jabuticabeiras, nos pomares de laranja, limão, ponkan e goiaba. No pasto, comendo, cantando, criando, encantando a gente.

De repente, no meio de um trabalho, encontramos isso...



... um alçapão duplo, armado, pronto para a captura. O piso dos dois lados está meio esbranquiçado, sinal deixado pelas muitas vítimas dessa armadilha. No passado, quando guri com menos de onze ou doze anos, também tive meus alçapões. Também tive meus passarinhos em gaiolas. Até um dia... Até um dia que contarei qualquer dia desses. Não sabemos quem o colocou ali. Também não estou interessado em saber. Hoje, meu passado não contou e não fui condescendente: o alçapão foi direto do pomar para o fogo.

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sexta-feira, agosto 05, 2005

Viagem à aurora do mundo



São dez e quinze, vou ficar mais um pouco e depois vou dormir... o dia foi meio pro chato hoje... é bom que termine logo, e termine com uma boa cama, coberta quente e um livro. Antes, seriam horas de leitura e minutos de sono, hoje, felizmente, acho eu, é o inverso. Isso é bom.

Mas, bom, bom mesmo, agora, seria calçar a botina sem meia, pegar a lanterna e ir ao curral ver as vacas, sentir o friozinho da noite, ver estrelas sonhando com nuvens de chuva, fechadas e escuras... ficar desejando a chegada da chuva pra encharcar a terra, dessedentar as plantas, deixar o areião batido e gostoso de andar.

Enquanto as nuvens negras e benfazejas, ao contrário do que se diz das nuvens negras, não chegam, olho o céu, tantas estrelas, uma cadente, demorada até, devia ser grande a danada, queimou bastante, rastro luminoso no céu. Faço um desejo, sempre o mesmo velho desejo, agora com variações. Mas a essência do desejo não muda, quero mais do mesmo. A fazenda, ou o sítio melhorado, ampliado. Mais vacas e bezerros pastando indolentes, deitando pra ruminar. Cavalos brincando, sempre alertas, atentos a tudo, ainda crentes lá no fundo de seus cérebros que a qualquer momento um poderoso tigre-dente-de-sabre vai aparecer do nada e ataca-los.

Em infinitos lugares por esse universo para o qual olho, a luz que refletimos há muitos milhares ou muitos milhões de anos, está chegando somente agora. Talvez alguém por lá tenha inventado a máquina da viagem à aurora do mundo, a máquina que ia buscar na luz distante refletida da Terra, as cenas de quando tudo começou. Curioso esse pensamento, nele se misturam todos os prazeres, todos os sonhos e mistérios. Estrelas... o passado... a terra... Então, quem sabe, enquanto estou aqui a sonhar, olhando os cavalos e imaginando como era tudo quando os tigres-dente-de-sabre passeavam por aqui, os cavalos pastando calmamente, levantando as cabeças, movendo as orelhas, ao som de qualquer folha mais barulhenta farfalhando, talvez alguém tão distante esteja enxergando meu sonho num passado remoto, onde os cavalos pastam e os tigres caçam, mas eu não estou presente, eu nada sou, apenas uma projeção do futuro voltando no tempo e no espaço, acompanhado do futuro de muito, muito longe.

Para Erico Veríssimo. Seu “Viagem à aurora do mundo” me marcou para sempre, mesmo lido uma só vez, ainda guri de tudo.

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Everest

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A dream.

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Cafezinho com o Presidente em Bagé


Recebi esse “diálogo” de um amigo, que por sua vez recebeu-o de um amigo de Caxias do Sul. A gente já sabe dessas coisas, mas não custa nada relembrar ao som de Borguethinho. Divirtam-se.

"Cafezinho em Bag
é - Lourenço Cazarré

Depois de tirar foto com poncho e boina e ainda empolgado com aquele comovente discurso em que nos informou, pela primeira vez, que tem vergonha na cara, o presidente Lula foi tomar um cafezinho num bar da Sete deSetembro, a principal rua de Bagé. Lá defrontou-se com um gaúchão, já meio mamado, que puxou assunto:

- E aí, presidente, dizem que em Brasília a situação tá mais quente que frigideira sem cabo.

- O Corinthians ganhou do...
- Mas o povo, aqui em Bagé, anda mais sobressaltado que cozinheiro de hospício.

- Fique calmo. Com o companheiro Meirelles no Banco Central, não tem crise.

- Presidente, eu sei que cusco não se mete em briga de cachorro grande, mas é verdade que o senhor cortou mesmo o mensalão?

- A minha assessoria já emitiu nota oficial sobre esse assunto.

- O Roberto Jefferson disse que os deputados ficaram de boca aberta, como burro que comeu urtiga.


- Isso de mensalão não existe neste país.

- Bah, mas o Roberto Jefferson sabe das coisas! Ele é mais informado que gerente de funerária.

- Se alguém errou, tem que pagar.

- Presidente, me desculpe, eu sou mais grosso que papel de enrolar prego, mas o que o senhor fez não tem sentido. Os pobres deputados já estavam acostumados com a mesadinha. Ficaram mais atazanados que galinha agarrada pelo rabo.

- Eu estou tranqüilo! Neste país ninguém é mais ético do que eu! Estáouvindo?

- Calma, presidente! O senhor me parece mais nervoso do que potro com mosca no ouvido.

- Me respeite! Tenho um diploma do Senai que vale mais do que muito doutorado.

- Concordo. Meu irmão, que se formou na faculdade, é mais chato que chinelo de gordo. Mas, voltando à vaca fria, me diga: porque o Zé Dirceu anda mais ansioso que anão em comício?

- O companheiro Zé Dirceu está recolhido, preparando sua defesa.

- O Dirceu vivia alegre, dando ordem pra todo mundo, mas agora anda mais nervoso que velha em canoa. Não fala mais com a imprensa. Está mais calado que guri que se borrou nas bombachas.

- Fique sabendo que, doa a quem doer, eu vou cortar na minha própria...

- E o Delúbio na CPI? Estava mais escorregadio que telefone de açougueiro. É um bicho matreiro. Se fez de leitão pra mamar deitado. Simpatizei com ele, mas aquele goiano é mais falso que idade de mulher.

- Enquanto não surgirem provas, o companheiro Delúbio é inocente.

- E aquele tal de Sílvio? Falava mais rápido que enterro de bexiguento. Não entendi nada do que ele disse. Ou não disse.

- No momento oportuno, no fórum adequado, os companheiros apresentarão suas defesas.

- E o carequinha? O tal de Marcos Valério parecia mais assustado que barata atravessando galinheiro. Acho que ele estava com medo de sair de lá preso.

- O PT é o PT e o governo é o governo...

- Os jornais estão dizendo que, nos dias de pagamento, no Banco Rural, se juntavam por lá mais assessores do que urubus em carniça de vaca atolada.

- Isso é maldade dos tucanos. FH tem inveja do meu maravilhoso governo.

- Pode ser. Fernando Henrique é mais manhoso do que gato que quer pegar passarinho. Ele disse que, no se refere a tocar o governo, o senhor é mais vagaroso do que tropeiro de lesma.

- Vamos mudar de assunto. FH me deixa irritado.

- Está bem. Dizem que o senhor ficou muito amigo do Severino. Que andam juntos pra todo lado, mais grudados que cocô em tamanco de leiteiro. Éverdade?

- O companheiro Severino merece o maior respeito. É nordestino e pobre como eu.

- Estou sabendo, mas tome cuidado! O Severino é mais esperto que cavalo de contrabandista. Dizem que ele é mais ligado do que rádio de preso.

- Será que o companheiro gauchão poderia me deixar em paz?

- Mas, bah, é claro. Sei que o senhor anda sofrendo mais que joelho defreira em Semana Santa. Me desculpe, mas eu gosto de espichar assunto. Minhas conversas são mais compridas que trova de gago. Mas eu não resisti: o senhor é um homem mais conhecido do que parteira de campanha e aí, eu...

- Me dê licença. Agora, vou pegar o Aerolula. Estou em cima da hora.

- Sei como é. Todo político é apressado que nem cavalo de carteiro.

- Fui!"


É, mas nós é que ficamos por aqui a pagar as contas.


Bom, pessoal, um bom final de semana para todos. O Sítio das Macaúbas, as vacas, os cachorros, a Sophia e os abacaxis estão à minha espera.

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Elegância no meio do pasto




















É uma macaúba solitária.

Mas a solidão lhe faz bem,
permite que sua elegância
comprida seja apreciada
sem distrações.

E essa até que podia estar
com a cabeleira melhor
arrumada.

À luz do amanhecer...


Esta é a luz do amanhecer
de um dia qualquer do último
verão.
Ela penetra pela janela aberta
para o leste e ilumina a cozinha.
Conforme mudam as estações, muda o ângulo em que a luz penetra.

Só não muda a Sophia, que se aboleta sobre a mesa
aproveitando o calorzinho novo e esperando o leite morno
de toda manhã.


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Da sombra da canafístula...

"Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo..."

Não importa o tamanho de um sítio, são muitas as vistas que se pode ter.

E são diferentes a cada estação. Diferentes na alvorada e no poente.

Ou, como na hora da foto, com o sol alto e quente e a sombra gostosa de uma canafístula
dando conforto e preguiça.

A legenda é um verso de Fernando Pessoa. Pensando bem, uma aldeola portuguesa
dos tempos de Pessoa é o mesmo, quase, que um sítio.

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"Libro de Manuel"


Gosto desse Cortázar. Não é o melhor dele, longe disso, mas gosto bastante. É um romance essencialmente político. Gosto da tentativa de fazer um retrato do mundo do hoje do personagem para o filho ter uma idéia, no futuro, do que foi o passado, o presente de quem recorta e cola as notícias. De sumidos nas prisões argentinas. De executados. Notícias da ausência de uma mínima justiça. Notícias de um tempo em que a revolução começou a morrer na prática da vida cotidiana, antes de vir a morrer nos corações e mentes. É uma visão triste a que o protagonista monta e deixa para seu filho. Mas é a visão de um mundo real amenizado pela ótica e técnica jornalística. Amenizado... A realidade é sempre mais brutal do que a imagem que dela é mostrada.

Às vezes me sinto tentado a montar eu mesmo o meu “Libro de Manuel”, cuting and pasting as notícias a partir da net. Mas desisto. É uma tarefa sobre-humana, a menos que eu reduza meu apetite drasticamente. Mas eu não sou um cara de dietas, longe disso. Abraço com prazer uma lauta feijoada e fujo, como o diabo da cruz, de uma singela torrada com queijo branco. Da mesma forma escrevo, da mesma forma fico tentado a colar as notícias que, na minha visão, retratam o mundo em que vivemos. Ou o país em que vivemos.

Até já fiz um pouco disso, a última vez ainda bem recentemente. Mas é cansativo. Ao procurar, tudo que se encontra é o noticiário sobre corrupção. Ou sobre desmandos. Ou sobre flagrantes injustiças, tão brutais que nos insensibilizam por completo. Não fazemos relação direta, visual, tátil, olfativa, entre o descaramento de bandidos ligados ao poder movimentarem pra lá e pra cá dezenas de milhões de reais, e crianças e velhos morrendo em filas de um instituto de seguridade falido, em busca de uma assistência médica que inexiste, dada a sua precariedade e limitação. Não enxergamos os jovens “formados” no 2o grau que não sabem escrever. Quando sabem, não conhecem gramática, não conhecem a grafia das palavras. Não têm noção do que seja Europa ou Ásia ou Estados Unidos. Claro, como poderiam se sequer noção de si próprios e de sua história e lugar no mundo possuem? Perpetuamos e aumentamos a ignorância de todos em favor de meia dúzia de privilegiados.

Não sou capaz de montar um “Libro de Manuel”. Não por incapacidade intelectual, tenho a pretensão de achar que dessa eu dou conta. Mas por incapacidade estomacal, digestiva. Algo me diz que esse sistema digestivo, que já passou por muitas e más situações por esse mundo afora, mais ainda pelos sertões do interior e das metrópoles (é, há “sertões” nas metrópoles), não tem estofo bastante para agüentar a confecção de tal colagem.



Para Ana: não é que a realidade canse, é que a mente, às vezes, precisa de outras coisas para se distrair. Tal como os manuais para usar o computador: a cada hora defronte à telinha, descanse a vista olhando para outras coisas, buscando outros focos. No horizonte, se você tiver horizonte – coisa que hoje larga parcela da humanidade não tem mais, e como está descrito no Pessoa que reproduzi ontem – ou num quadro, num vaso com planta, no céu onde passa o TAM das 09:15 no rumo do Rio ou de São Paulo, depende de onde está o observador.
Escrever sobre o sítio me afasta de CPIs e malfeitos, mas não muito, elas fazem parte de nossas vidas, gostemos ou não. Aliás, eles fazem parte, pois refiro-me às CPIs e também aos malfeitos, muitos e variados, mas todos parte de nossas vidas. Curioso é que leio manifestações de pessoas inteligentes que se dizem apolíticas. Tsc tsc tsc... O apoliticismo é uma posição política muito clara e bem definida. Válida, é óbvio, pois é a expressão da vontade de quem a manifesta. Mas é uma posição política.

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quinta-feira, agosto 04, 2005

Lendo Pessoa



“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.”


É, Camões estava muito certo e deu uma demonstração clara de sua genialidade ao escrever o soneto do qual extraí esse verso que abre o texto. Saio de Camões e entro em Pessoa.

Adolescente, muitos de meus colegas liam Fernando Pessoa, carregavam-no enfiado nas axilas, citavam-no pras meninas e pros professores. Faziam sucesso.

Pura frescura. Ler Pessoa era frescura, ler Pessoa era perda de tempo.

Eu não lia Pessoa, eu tinha coisas mais importantes para fazer. Eu trabalhava pela revolução.

Poesia lia muito pouco, e procurava por “poesia de combate”, poesia militante, poesia de esquerda. O resto era desvio pequeno-burguês. Neruda eu lia, mas só o que era poesia política. Como ele, muitos outros. Borges também era uma leitura alienante. Cortazar passava, tinha lá seu quê militante.

O tempo passou, o mundo mudou, eu mudei.

Hoje leio Fernando Pessoa. E gosto, me faz bem. Há pouco tempo, numa manhã de sábado, encasquetei que tinha porquê tinha de comprar a edição da Nova Aguilar com toda sua obra. Fui à luta, achei, comprei e me deleito com ela. A melhor coisa que comprei esse ano, disparado. Nada se lhe compara.

Encontro em Fernando Pessoa uma sensibilidade, um olhar, um perceber da realidade que me encanta. Atrevo-me a dizer que meu sítio é minha aldeia e meu mundo, que o Rio Claro que passa lá embaixo é o mais bonito rio do mundo, apesar do Tejo, apesar do Amazonas, apesar do Tapajós que aprendi a amar tão depressa, apesar do Tibiriçá querido da minha infância.

Ler Fernando Pessoa é um exercício de puro prazer. Ler a esmo, sem ordem, sem método. Leitura randômica, como agora já virou moda dizer. A cada leitura uma descoberta. E, vez ou outra, até redescobertas.


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"Nas cidades a vida é mais pequena"

"Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver."

“Ficções do Interlúdio” – Poemas Completos de A. Caeiro – Fernando Pessoa

Doce Cuba I



Fui para Cuba quando a finada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas era viva. Fui como turista, num dos primeiros vôos que abriram Cuba para nós. Nessa época já estava fora do Partido há 4 anos, o que não impediu de fotografar-me na porta de um CDR – Comité de Defensa de la Revolución. Lá estou eu, de barba, como os compañeros, óculos escuros, jeans, camiseta pólo, tênis. Mais turista impossível.

Fiquei fora de 90% dos programas oficiais da viagem. Andei a pé por boa parte de Havana. Por bairros mais pobres e por bairros mais ricos. Sim, existem. Impressionei-me com as filas. Certa manhã vi uma fila com umas cem pessoas. Entravam por uma pequena porta de madeira, numa casa velha, meio caindo aos pedaços. Era uma panadería e a fila era para comprar pão, racionado, como de resto quase tudo. A compra era feita a partir dos cupons que cada família recebia. Naturalmente a culpa era dos Estados Unidos, mas não era bem assim. Dois dos maiores produtores de trigo do mundo, Canadá e Argentina, negociavam regular e tranqüilamente com Cuba. Comprar mais trigo não dependia de bloqueio ianque ou coisa que o valha.

Gostava de passear pelo Malecón logo cedo ou no fim da tarde. É um calçadão entre a avenida e o mar, e a água na maré alta recobre a areia e as pedras dois ou três metros abaixo do passeio - em dias de tempestade ela se projeta sobre o calçadão e a pista. 


Por ali conversei com algumas pessoas. A que mais me marcou foi um homem bem velho, magrinho, mirrado de tão magro, já um pouco encurvado pelo peso dos anos. Extremamente vivo, porém. E veloz! Como caminhava rápido aquele velho. Sorte minha estar em forma melhor que a de hoje, ou teria feito feio com os meus 35 ou 36 anos. Espanhol, viera para Cuba fugindo da Guerra Civil. Já estava com mais de oitenta anos a figurinha. Conversávamos, talvez há uns dois minutos, parados na calçada, quando ele convidou-nos (Rosa, minha mulher, estava junto) para caminhar com uma justificativa inolvidable

“A la policía no les gusta que hablemos con extranjeros.” 

 Essa frase me marcou naquele instante, me marca hoje, me marcou sempre.

E assim caminhamos. Passamos pelo grande mural “Hasta la Victoria! Siempre!” y seguimos adelante por el Malecón, charlando sobre Cuba, sobre España y sobre Brasil. A princípio, ele como quase todos os outros cubanos, tomou-me por mexicano. A vida em Cuba não era má, mas tampouco era boa. Faltava muita coisa, tudo culpa dos ianques. Todos tinham escola e todos tinham saúde. É, isso não dava pra negar. E sí, com Batista era muito ruim, muito pior. Pouco depois nos despedimos. Ele seguiu sua vida, entrando numa pequena rua, e nós voltamos para o hotel, seguindo o mesmo percurso, agora de volta. A cerca de 360 km à nordeste estava Miami e o sonho americano (ou pouco mais de 150 km até a primeira das Key West). Que não senti presente no velho espanhol, mas senti presente, muito vivo, com outras pessoas com quem conversei informalmente.

Isso ficou claro ao encontrar um grupo de jovens, estudantes, quatro garotas e dois rapazes. Esses não pararam, seguiram em frente e deixaram as gurias conversando conosco. As perguntas eram sobre o Brasil e o mundo. Sempre entremeadas de elogios ao país e à vida em Cuba. Tenho pouca lembrança do que falamos, do que ouvimos, mas tenho uma boa lembrança do sentimento que nos dominou quando nos afastamos com a chegada de uma viatura da policía: o medo e a falta de perspectiva para o futuro, a ausência de esperança de sair e conhecer o mundo e suas coisas, suas pessoas. É bem verdade que nem todos nós fazemos isso, mas não há barreiras, exceto as econômicas, se o quisermos fazer. 


Nessas horas a gente sente o peso e o valor da liberdade. 

É uma liberdade relativa, dirão muitos, uma liberdade limitada pela inexistência de condições econômicas para poder fazer o que quisermos. Sim, concordo em parte. Mas as limitações financeiras a gente sobrepuja, mesmo que demore uma vida. 

Já a limitação da liberdade – e não há liberdade limitada: ou ela é liberdade ou não é – não é tão simples assim de ser vencida.

Passei dias interessantes em Cuba. Agora tenho vontade de escrever a respeito, de lembrar, relembrar o que vi, senti, vivi naquele país. 

Dos almoços com grape-fruit de monte no prato pra comida oleosa ser bem digerida, aos mergulhos maravilhosos em Havana, Cayo Largo e Varadero. 
O primeiro top less que vi na vida, ao vivo e em cores – quem diria, em plena Cuba. 
Voando pela Cubana de Aviación, a casa de Hemingway, um pouco do interior, pegando os áuas pra cima e pra baixo. 

Quer conhecer uma cidade? Caminhe, ande de ônibus e metrô, caminhe muito, em todas as horas. Não fuja da hora do rush, integre-se. A vida é sempre diferente daquela que a gente vê das janelas panorâmicas dos ônibus com ar condicionado.

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quarta-feira, agosto 03, 2005

Não-memórias de uma caçada

Passeando pelo arquivo de textos não publicados (todos) e/ou não enviados (um monte), deparo com um que escrevi há tão somente 14 meses. Nada mais que 14 meses. Um nadica de tempo, não é mesmo? O interessante nesse texto é fazer sua leitura hoje. Ele parece ter sido escrito em outra era, em outra dimensão, em outra terra, em outra qualquer coisa, menos aqui, no Brasil, há apenas 14 meses.

Puxa, 14 meses...


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Adeus, fui à caça


Prezados amigos,

...dependendo do desenrolar de certas coisas nos próximos dias, este será, para alívio de muitos, meu último texto.

Sim, é verdade, talvez vocês estejam lendo meu último texto.

Desde já sou muito grato a todos que me elogiaram e, mais ainda, aos raros que me criticaram (mas que ingratidão, né?).

O que me leva a isto é minha mais nova empreitada. Aliás, se for este meu último texto, terei feito dias atrás minha última visita ao meu querido Sítio das Macaúbas e às minhas vaquinhas (falando nisso, a Ally está pra parir hoje ou amanhã).

Calma, gente, calma, nada de morte no horizonte, cruz credo!

Toc toc toc...

Depois de amanhã, quarta-feira, dia de São Patrício e Santo Aquiles, segundo meu amigo e fonte Roberto Barreto de Catende, o Dr. Paulo vai tornar pública e legal sua doação de todo e qualquer dinheiro encontrado em conta sua no exterior. Ora, sabedor pela revista Veja desde a tarde de sábado que só em uma das contas repousou a nada módica quantia de 345 milhões de dólares, resolvi lançar-me à empreitada. Sigo em busca do dinheiro perdido.

Para alguma coisa há de me valer agora a leitura atenta dos trocentos livros do Paul Erdman e outros autores de thrillers financeiros – que corri a tirar do meu sebo virtual - e dos trocentos mil livros do Rex Stout, Agatha Christie, P D James e outros autores menos votados da nobre literatura policial, inclusive o patrício Ivan Santana.

É recheado com essa cultura ímpar, por muitos tida como inútil, que vou à caça.

Estou, desde já, preocupado com o fisco tupiniquim. Apesar de nutrir nobilíssimas intenções, tipo doar metade para instituições de caridade, criar um lar para os cavalos desamparados, outro para os cachorros e gatos abandonados, e nada para os companheiros sem-terra, pois minha babaquice não chega a tanto, estou pensando seriamente na possibilidade de vir a ser vizinho dos pilotos de F 1 e dos tenistas nível Grand Slam, morando no aprazível Principado de Mônaco. Sorry, mas ver o fisco me tomar 172,5 milhões dos 345 é dose! Sem falar que nada impede que um desses procuradores do MP louco por uma manchete, quiçá o próprio Luiz Francisco (inda mais se este um vier a saber que sempre fui eleitor do PSDB), venha pra cima de mim com um processo alegando origem ilegal do dinheiro e resolva confiscar tudo! É ruim, hein! Depois de tanta trabalheira entregar tudo de mão beijada ao fisco é de doer. Diante disso, é isso: penso em morar em Mônaco. Quem sabe eu compre uma fazendinha na Suíça? Estou certo que, como um digno produtor de leite local, serei devidamente protegido pelas autoridades do cantão de minha escolha, livrando-me do risco da extradição, eu e os meus, digo, os dólares do Dr. Paulo.

Vai ser chato deixar meu sítio pra trás, mas... fala sério, pô! 345 milhões de dólares! Dá pra eu comprar um apartamento de frente pro Central Park, a meros 100 ou 200 metros do Metropolitan. Com direito a mordomo inglês. Uma fazenda em Vermont – posso até levar minhas vacas pra lá, de avião. Um G IV usado (sou modesto, aceito um usado mas bem decorado) (ok, ok, desculpem, G IV é o Gulfstream IV, que já foi o top dos jatos executivos... mas, como eu disse, sou modesto, me contento com ele). Uma Ferrari, claro, Testarossa. Vai ficar na casa de Baden-Baden, e de lá poderei voar baixo pela autobahn pra Munique ou Berlim. Posso ir a um leilão da Sotheby´s, em Londres, mas só pra assistir. Não me vejo gastando um terço do meu, digo, do dinheiro do Dr. Paulo pra comprar um Picasso. Não sou esse tipo de rico, entendem? Quero dizer, não serei. Até porque, bonzinho e diferente que sou, iria tratar de doá-lo ainda em vida pro MASP. Não, não, não... não vou a leilão nenhum.

Agora com licença que estou relendo toda a obra do Paul Erdman. Estou certo que lá, no meio das aventuras financeiras dos grandes escroques e trambiqueiros, hei de achar a pista pra me levar aos 345.

Fui.


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Escrevi esso sonho duma noite de outono ha apenas 14 meses.
Alguém lembra que Dr. Paulo é esse?
Maluf, Dr. Paulo Maluf, lembraram agora?
Pois é.

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