terça-feira, agosto 09, 2005

A beleza da noite



A beleza das noites de inverno não me cansa. Torno-me repetitivo, falo e escrevo sempre a mesma coisa. A lua já se foi. Esteve visível no fim da tarde e começo da noite. Lua de calendário, lua nova, desenho perfeito, fino, brilhando já baixa no horizonte, indo embora.
A noite agora é só das estrelas.

Olho as bezerras, outra coisa que tampouco me cansa. As vacas estão no piquete que deveria ter sido uma lavoura de sorgo. Estão felizes, até deixaram para trás os cochos cheios de cana picada. Foram em busca de capim verde, ainda que pouco, misturado com sorgo no meio da guanxuma. Quando me viram abrir a porteira de acesso ao piquete saíram correndo. Precavido, coloquei-me atrás de um mourão. Não queria ficar na frente daquelas senhoras enormes, largas, correndo sem o menor jeito, tão desajeitadas que ficam até cheias de graça. É noite de festa em meio à carestia de pasto. Tudo vai bem, penso e digo para mim mesmo.

Ao invés de voltar para casa e para o banho reconfortante, toco adiante, a lanterna desligada balançando na mão. Em poucos segundos meus olhos se acostumam com a luz difusa das estrelas. Sigo a trilha clara feita pelo trânsito dos veículos no areião do carreador. É nessa luz que percebo como algumas árvores cresceram. A silhueta alta e esbelta do jacarandá-mimoso me impressiona. À luz do sol ela não é assim tão impressionante, fica meio perdida. As araucárias, as mungubas no meio do pasto, as mamicas-de-porca ou de cadela, ao gosto do freguês, tudo é novo, tudo me surpreende e até encanta nessa luz gostosa e suave. Luz para entrever e imaginar, mais do que para enxergar de verdade. Vejo essas árvores todos os dias em que estou no sítio, passo por elas, mas não as vejo realmente. Não me detenho para olhar com calma. Simplesmente olho passando, aquele olhar falso que nada vê e que a luz das estrelas agora corrige e amplifica.

Caminhar à noite amedronta um pouco, sim. Ainda hoje, homem barbado de há muito. Sempre irá amedrontar. Medos antigos a gente não esquece e nem perde. Quando muito, aprendemos a conviver com eles e a seguir em frente. O medo do escuro é antigo e está inserido em nosso código genético, tão grande é sua força e persistência.

Com os cachorros ao lado sinto-me seguro e despreocupado. Mas quando caminho assim, em certas noites, prefiro estar sozinho. A vivência vai ensinando que são muitos os sinais de alerta. O cricrilar dos grilos, trilha sonora sempre presente. Se ela pára é porquê alguma coisa interrompeu a grilaiada. O grito de um dos quero-queros. Não à toa eles são chamados no sul de “sentinelas dos pampas”. Passo pelo Brioso, que está no piquete ao lado da cerca. Imóvel, parece uma estátua. Devia estar dormindo, um dos estágios iniciais dos vários sonos dos cavalos. Eles se deitam apenas no estágio final e mais profundo do sono, que é muito rápido. Mesmo assim, qualquer ruído ou cheiro diferente vai despertá-los instantaneamente. Cavalos são os melhores vigias que conheço, melhores que os cachorros. Têm mais sensibilidade. É natural: cachorros já nasceram predadores na cadeia alimentar, senhores de suas vidas e das alheias, enquanto cavalos sempre foram presas. Sobreviveram e evoluíram graças aos sentidos apurados. Primeiro sentem, depois galopam, sempre na direção certa, a da fuga em segurança.

O Brioso continua quieto, as orelhas imóveis. Tudo está bem, sigo caminhando.

A escuridão da noite é falsa, uma ilusão. E é fascinante. A toda hora meu olhar desvia para o infinito, passeia pelas estrelas, leva junto minha mente. Lembro, como sempre, da tristeza que senti ao ler artigo de astrônomos americanos, canadenses e europeus num congresso qualquer, dizendo que mais de 90% das pessoas que vivem na América do Norte e Europa já não enxergam as estrelas. Esse manto de luz e beleza que olho agora é privilégio dos povos pobres. Como a vida pode ser pobre e limitada mesmo nas mais feéricas cidades!

“Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”
Fernando Pessoa

Volto para casa, volto para as luzes. Deixo, por enquanto, até a próxima noite, meu fascínio para trás. E a noite aqui, embora bela, não é tão luminosa, tão magnífica e tão bela como a noite nos grandes sertões. Por lá não há luzes ainda, nada há feito pelo homem, exceto as plantações que se estendem para o horizonte.

Por aqui vejo o brilho das luzes de Tambaú, Pirassununga, Porto Ferreira, Descalvado... Mais ao longe, bem distante, o brilho de São Carlos. Nessas Terras Altas Paulistas, a gente vê muito. E por hoje já vi demais, embora, como sempre, muito menos do que gostaria de ver.


Sítio das Macaúbas, 7 de agosto de 2005.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Privilégio uma caminhada dessas. Cheguei a sentir todos os cheiros e medos da minha infância quando tinha que andar pelo pasto sozinho a noite.