segunda-feira, julho 31, 2006

Notas de um fim-de-semana


A panela de barro, lembrança de uma das muitas viagens para o Espírito Santo, saiu do fogão a lenha e foi sem escalas para a mesa, ao lado da saladeira com rúcula italiana – uma variedade de folhas pequenas, saborosas, mais decorativas e fáceis de comer que as folhas grandes da rúcula comum –, alface e tomate. Pão italiano vindo do Bixiga, um honesto corte de pinot noir com merlot e... abra-se a panela. A retirada da tampa pesada revela um pedaço de pernil temperado com limão, alho, sal, cozido no fogão a lenha lentamente, em meio a pedaços de batata, pimentão, tomate e cebola e, detalhe importante, dentes de alho inteiros desde o primeiro momento em que a panela foi ao fogo. Visão apetitosa, aroma e sabor deliciosos, comida simples de dar água na boca, fazer bem à alma.

E assim jantamos na noite de sábado, no sítio, enquanto garoava lá fora. Uma benção, que no correr da noite e da madrugada virou chuvinha miúda, mas prolongada. Bom demais.


As novas mocinhas do Macaúbas

Demorou, mas finalmente conheci as novas meninas do Macaúbas. Na semana retrasada a Malhada pariu. Dessa vez, para minha alegria, uma fêmea. Ao vê-la, seu nome veio naturalmente: Clarinha. Grandinha, já, puxou pra mãe e pros irmãos.

Na semana passada, atendo ligação do sítio. Como não havia nada programado, fiquei até meio receoso. Mas o motivo era mais do que bom, era ótimo: a Alba e Alfa tinham parido e as duas crias eram fêmeas. Uau! E lá estavam as bezerrinhas, ao lado da Clarinha. Curiosamente, a filha da Alba, uma vaca zebu puxada pra Gir, grandona, é bem miudinha, amarronzada, com duas estrelas na testa. Já a filha da Alfa, uma Gir chitadinha e pequena, é grandinha, maior que a meia-irmã filha da Alba.

Troquei-as de piquete, passando-as para o de cima, pois no piquete de baixo a Graciosa, Estrela, Segundo e Harry Potter já estão há tempos, e, com certeza, deve haver contaminação de uma coisa ou outra por ali. No piquete de cima não há esse risco. E bezerrinhas tão novas são sensíveis, mesmo sendo mestiças. A estreladinha é muito ativa, brinca bastante, correndo dum lado pro outro com o rabo levantado. Faltam os nomes, vamos ver se no próximo fim de semana batizamos as duas.


Carroça nova

A nova carroça está em construção na oficina do Alemão. Simples, aproveitando os varais, eixo, molas e rodas da antiga. A vida sem uma carroça é muito difícil. Tem que pegar a cana cortada e levar pro curral. Tem que levar esterco pros piquetes. Agora tem dez toneladas de calcário pra esparramar. Mas o Alemão prometeu-a para essa semana. Ontem, já se preparando para a volta ao trabalho, o Brioso ganhou “sapatos” novos. Foi casqueado e ferrageado, está pronto pra pegar no batente.

Ah, claro, esqueci de contar o que já é sabido: a carroça quebrou. O comunicado oficial chegou por meio de um telefonema. Ah, os telefonemas do sítio...


Cadê a comida?

Estamos cortando a cana que deveria ser cortada só em final de setembro, isso se tivesse chovido normalmente em abril e maio. Não choveu e estamos cortando o que mais parece um capim do que uma cana. Mas é o que há para alimentar os animais. O imprevisto dos dois meses sem chuvas matou os pastos dois meses antes do tempo normal. E segurou o desenvolvimento da cana. A maioria dos vizinhos já está com problemas para alimentar o gado. E agosto só começa amanhã, ainda.

A esperança – aquela coisa que normalmente é a última a morrer – é que as chuvas de primavera cheguem junto com a estação, ainda em setembro.


Ipês

Ao longo da viagem as visões dos ipês-amarelos se sucederam. A gente fica como criança, procurando e, quando descobre um, apontando. Várias vezes vi um braço na minha frente, entre meu nariz e o volante, digamos, e na ponta alongada pela visão do dedo que se seguia à mão e ao braço, estava sempre um ipê florido e magnífico. Alguns, pequenos e jovens, outros, bem grandes e antigos. Mais alguns dias teremos a florada dos ipês-brancos. Com essas árvores, a natureza é exagerada, é berrante mesmo.

Mesmo aqui, na saída de casa na Granja Viana, nossos ipês – que formam uma só árvore – floresceram bem. Com o vento da madrugada de sexta para sábado, o chão amanheceu coberto pelo amarelo das flores.

Os ipês do sítio estão começando a abrir os primeiros botões somente agora. As variações entre uns e outros é explicada pela diversidade de espécies. Uma consulta rápida ao Lorenzi mostra que há várias espécies de ipês-amarelos.


Outros e outras macaubenses

Breve as Jersey começarão a parir, várias delas já estão “chegadinhas”. Seria bom que isso acontecesse mais para a frente, mas nosso planejamento não previu a seca de abril e maio. Aliás, o planejamento de ninguém. Esse é um ano que não vai deixar muitas saudades.

Os gatos ficaram felizes com a nossa chegada. A princípio não deram bola, acredito que por causa do carro diferente. Mas tão logo viram a Rosa fora do estranho bicho de rodas, correram para ela, assim como os cachorros. E lá se vai a roupa limpa...

Como o leite da Alba ainda não está “limpo”, os gatos e os cachorros tomam tudo que a bezerra deixa. Mesmo assim, ontem comeram muita comida que estava no freezer na casa da minha sogra. Foi tanta comida que desprezaram a ração e devem estar dormindo até agora. Jiboiando...

Houve momentos em que senti-me na velha Europa, aquela onde os dias eram frios e cinzentos, e jatos passavam a todo momento sobre árvores, campos, vacas e outros bichos, em intermináveis manobras da OTAN. No fim-de-semana cinzento, frio, europeu e garoento, tivemos várias vezes a barulheira dos jatos tomando conta de tudo. Eram esquadrilhas de jatos AMX voando para a AFA e de volta para lá, algumas vezes acima da camada baixa e compacta de nuvens, outras vezes abaixo, em vôos quase rasantes. Um dos aparelhos, por sinal, fez mesmo um vôo rasante. Muito de vez em quando é uma delícia e uma novidade, mas se for rotina cansa e deixa os animais nervosos e quebra a produção de tudo: leite, ovos, carne...

O barulho da chuva na madrugada foi um bálsamo bem-vindo. Mesmo assim dormi pouco, pois ficava preocupado com as bezerrinhas no piquete de cima, ou preocupado com a comida pras vacas nos próximos 3 meses, preocupado com os pastos rapados, que vão demorar mais para ficarem em boas condições de pastejo, e mais isso e mais aquilo, enfim, um sem fim de preocupações. Apesar disso tudo, foram dois dias de bom humor.

O sitio me faz bem.


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sexta-feira, julho 28, 2006

Uma manhã em Havana / Dra. Hilda Molina



Caminhava tranqüilo pelo Malecón, uma manhã fresca em Havana graças a uma frente fria vinda do distante norte. O mar estava calmo, ao contrário da véspera, quando as ondas quebravam no grande muro – o malecón – que protege a orla naquela parte de Havana e subiam alguns metros. Espetáculo bonito, mas assustador. Não gostaria de estar na ilha durante a passagem de um furacão.

A máquina fotográfica a tiracolo era meu atestado de turista, o que atraía a atenção dos cambistas, da polícia e de pessoas comuns, que olhavam para minha mulher e para mim sem pudor, sem tirar os olhos. Eu é que sempre tirava os olhos. Sou tímido.

O velhinho vinha caminhando num ritmo rápido. E dava pra perceber, mesmo ao longe, que embora bem velho, estava numa forma excelente. Ao se aproximar, olhou-nos e cumprimentou com um sonoro bom-dia. A conversa com ele era inevitável e começou em seguida. Seu espanhol era um pouco diferente do que o que estávamos ouvindo, parecia mais claro, mais clássico mesmo. E existia motivo para isso: era espanhol. Deixou seu país e veio para Cuba por causa da guerra, ainda adolescente. Por causa da I Grande Guerra. Ante meu olhar surpreso, disse que já estava a caminho dos noventa anos. Nascera poucos anos depois da virada do século XIX para o XX.

A conversa estava boa, mas não lembro ao certo do que falávamos, mais ele do que eu, claro. Foi quando ele disse-nos a frase mais marcante, para mim, daquela viagem a Cuba:

- Vamos a caminar, que a la policia no les gusta que hablemos con estranjeros.

E assim seguimos caminhando, um pouco mais devagar do que ele estava acostumado a andar, para prolongar o prazer daquela conversa. Despedimo-nos defronte ao grande outdoor – ou devo dizer cartaz? – conclamando os cubanos à luta:

- Hasta la victoria siempre!

Ele se foi para continuar vivendo sua vida desconhecida. A essa altura, tantos anos passados, já deve ter partido para a tal da viagem definitiva da qual nada sabemos e muito supomos. Afinal, enquanto isso, a União Soviética se foi, a Iugoslávia acabou, como tantas outras coisas, mas Fidel permanece.

A Dra. Hilda Molina e sua mãe, já com 87 anos de idade, permanecem literalmente aprisionadas na ilha. Essa brilhante neurocirurgiã e cientista, revolucionária de primeira hora e desiludida com o regime, nada recebe do estado, e sobrevive com a pensão mínima – 8 dólares por mês – que recebe sua mãe.

E o que quer a Dra. Hilda Molina? Sair de Cuba e ir para a Argentina, onde vivem seu filho e neta. Família que ela não vê há mais de 12 anos. Mas Fidel não permite. O grande herói das massas oprimidas mantém prisioneiras em sua ilha duas senhoras, uma delas já muito idosa.

A troco de que?

Eis aqui um bom assunto para o companheiro Zé Dirceu usar suas nunca imaginadas habilidades diplomáticas.

Eis aqui um bom assunto para o grande líder e amante da democracia, lulla da Silva, conversar com seu amigo Fidel. Talvez convenha, antes, consultar o companheiro Chávez. Isso, contudo, é mero detalhe diante do sofrimento de duas mães.

Não tenho saudades de Cuba.


P.s. Na recente reunião de chefes de estado do Mercosul realizada em Córdoba, na Argentina, o presidente desse país, Néstor Kirchner, pela segunda vez desde que assumiu a presidência entregou uma carta a Fidel Castro pedindo a libertação - na prática - da Dra. Hilda e sua mãe, para que possam rever o filho e neto, e conhecer sua família. Como de hábito, Fidel não respondeu e a Dra. Hilda continua prisioneira na ilha.
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terça-feira, julho 25, 2006

...mudanças?

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança.

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro e doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto,

Que não se muda já como soía."


Estou tentando descobrir porque, uma vez mais, estou colocando aqui esse soneto de Camões.

Ele fala em mudanças, acho que deu pra perceber...


Não vejo mudanças no Líbano.

Continua tudo como dantes, como sempre.

Agora a Força Aérea Brasileira começou a trazer brasileiros de lá para cá.

Isso, sim, é uma mudança.

Aviões da FAB e da TAM vão se alternar nesse transporte.


Não vejo mudanças nas campanhas presidenciais já em curso. Um candidato segue falando abobrinhas, besteiras & promessas vazias; é sua marca registrada. Outro, meio abobalhado pelos acontecimentos, abaixa seu nível e desanda a falar besteirinhas. Tem uma candidata apocalíptica. Vai que dá uma zebra e ela vence, Cumbica urgente! Mesmo não sendo dono de indústria ou de coisa alguma que valha algo. Bom... É, tem o sítio, claro, mas com essa seca...

Não vejo mudanças no campo, onde tudo se amplia, mas sem mudar, a começar pelos sem-terra que agora começaram a invadir terras em Roraima. Impressionante! Fizeram uma bagunça terrível, pressionaram o governo por todos os meios e lados, tanto por aqui como por ali, ali e acolá em terras estrangeiras, e o governo, claro, cedeu e demarcou a reserva gigante de Raposa-Serra do Sol. Uma coisa que os próprios índios não queriam, mas foi feita. Agora, os “bravos companheiros” que tanto pressionaram pela demarcação de terras agrícolas há décadas, invadem outras terras e pleiteam-nas para si próprios.



Nem no hemisfério norte há mudanças e o calor já faz vítimas fatais na França – nada menos de 30. Já vi esse filme antes. Calor no verão do norte e calor no inverno do sul.Mas não vejo mudanças no clima. São Paulo teve o mês de julho mais quente em 50 anos, segundo manchete apelativa de um dos jornalões. O outro é mais preciso: pela primeira vez, desde 1943, a temperatura passou dos 30 graus no Mirante de Santana, na Zona Norte, Serra da Cantareira, onde o termômetro oficial marcou 30,2 graus centígrados.

Em Foz do Iguaçu as Cataratas seguem com fios de água. Dizem alguns técnicos oficiais que é a pior secar em 70 anos. Sobre as pedras sempre cobertas pelas águas revoltas do Rio Iguaçu, crescem tufos de capim. Bem que eu poderia levar minhas vacas para lá.

Não vejo mudanças nem no futebol, onde, parece, tudo continuará como dantes.

Meu reino por mudanças!

Mudanças já!

E agora, desanimado, entendo o porque do soneto de Camões de novo nessa telinha.

Tem a ver.




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quinta-feira, julho 20, 2006

Borocoxô


Borocoxô... Bonita palavra, né? Não dá para falar o mesmo de seu significado:
quem ou o que está desanimado; aborrecido. Tá no Houaiss. E eu tô assim.

Anteontem cedo recebi ligação do sítio. O primeiro pensamento é sempre o pior: o que será que aconteceu dessa vez? Dessa vez foi a comunicação de mais duas parições: Alba e Alfa pariram. Pena que a Alba pariu um macho e a Alfa uma fêmea. O inverso seria o ideal. Semana retrasada foi a Malhada que pariu uma fêmea. Que bom! Boas notícias logo cedo são animadoras. Ou seriam...

Seriam?

Pois é, seriam. Hoje mesmo, enquanto pegava o jornal em meio ao resto de neblina matinal, olhava os pés de ipê-amarelo em frente de casa, um deles já com os botões florais pronunciados. Não demora e ele floresce. No jardim e na pequena praça diante de casa as azaléias estão cheias de flores. Outros arbustos e árvores também estão coloridos, sem falar no cipó-de-são-joão. As bonitas cores do inverno paulistano e paulista. Nada disso, contudo, me deixa animado. Minha câmera está guardada, meus textos sumidos, tal e qual meu humor. Ano passado nessa mesma época, eu olhava admirado as florações de ipês-roxos e comentava, fotografava...

Pois é, ando meio borocoxô, estou assim, meio borocoxildo. Acho que clinicamente não chega a ser depressão, mas, sei lá, é capaz de passar perto. Culpa do PCC? Não, não mesmo. Culpa do lulla da Silva? Vê lá, eu, hein, que vou perder meu humor por motivo tão (ia escrever torpe, repensei, e to pensando... já já descubro uma palavra para isso)...?

Não, não, nada disso. O motivo é outro e essa foto, de ontem, dia 19 de julho de 2006, fala por si só.

Essa visão, tão assustadora quanto desoladora, mostra as Cataratas do Iguaçu, ontem, dia 19 de julho – apenas – com uma vazão de 198 metros cúbicos por segundo, equivalente a 13% da vazão normal de 1.500 metros cúbicos por segundo. Essa é a segunda pior vazão em 40 anos, de acordo com a Hidrelétrica de Itaipu. Dia 19 de julho é um dia ainda muito distante das chuvas de primavera.


(E a frase lá de cima, na qual eu dizia que não perderia o sono por conta de lulla da Silva, ficou sem um adjetivo final. Deixo a cargo de cada um a escolha. Até porque há pessoas – poucas, mas há – que vão usar um adjetivo elogioso e sem ironias. Viva a liberdade de escolhas, inclusive para adjetivos.)

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sábado, julho 15, 2006

Revendo “Fogueira das Vaidades”


O livro de Tom Wolfe e o filme dirigido por Brian de Palma, geraram muito mais expectativas do que resultados, mas um e outro não são de jogar fora. Há coisas infinitamente piores. Comprei o primeiro no lançamento e assisti ao filme também logo depois de chegar às locadoras. Tom Hanks (ainda jovem), Bruce Willis (meio jovem) e Morgan Freeman, além de Melanie Griffith no papel que mais gosta de fazer. E o único que consegue. Meio sem ter o que fazer, assisti-o novamente hoje.

Sherman McCoy é um bem sucedido yuppíe que erra uma saída da via expressa, entra num bairro pobre, habitado por negros e, assustado e fugindo do que pensa ser um assalto, atropela um garoto. Negro.

O caso ganha proporções muito grandes, enormes, alavancadas, claro, pela política. Ou políticas, num plural bem amplo. E blabblablá, blabblablá, blabblablá... Quem não viu, veja, vale a pena.

Bom, e daí? Isso aqui virou blog de crítica de cinema antigo?

Não. O motivo dessa introdução foi só situar e dar um pequeno pano de fundo para quem não conhece ou não lembra mais do filme.

No final, o juiz, interpretado por Morgan Freeman, faz um belo discurso sobre Justiça, Leis e, sobretudo, Decência.

Decência...

Temos justiça, sem dúvida. Temos um grande aparato estatal encarregado de administrar a justiça. Se funciona ou não, se é bom ou não, é outra discussão. Mas a justiça existe.

Temos leis. Ah, sim, e como temos leis! Elas não nos faltam. Temos para todos os gostos: arcaicas, atrasadas, caquéticas, como as que regulam as grandes questões de nossa vida no dia-a-dia: crimes e negócios, principalmente; e modernas, moderníssimas, exemplos para o mundo civilizado, como as leis que nascem de grupos de pressão interessados em temas específicos.

Mas não temos a Decência.

Decência...

Entre nós até seu uso como palavra e significado é restrito e mais ligado a questões simples de costumes. Entre nós ela não tem o peso moral que tem em outros paises. Não por coincidência, com certeza, associamos decência e indecência a comportamentos libidinosos, vulgares, baixos.

Não associamos decência ao comportamento ético, responsável, honesto. Porque, se o fizermos, teremos que dizer que todos nossos políticos, todos nossos seres públicos, homens e mulheres, não têm decência. Logo, são indecentes. Do mais alto ao mais baixo cargo republicano, a decência é uma fantasia, é um vazio, é um não-ser.

Somos indecentes.

Olhe ao redor e terá a prova do que escrevi.


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quinta-feira, julho 13, 2006

Segunda onda terrorista


Uma vez mais o terror encomendado ataca São Paulo. As ordens partem de dentro dos presídios, onde lideranças presas continuam comandando seus asseclas do lado de fora dos muros.

Não é a primeira onda e, sabemos todos, não será a última.

Ônibus incendiado na Vila Madalena, reduto boêmio paulistano


Há uma lógica por trás de ataques covardes, aparentemente feitos a esmo. Claro, os assassinatos de policiais, agentes carcerários e seus familiares não são obras do acaso, longe disso. Dias atrás, uma lista com os nomes e endereços dos agentes carcerários membros de sua associação classista foi roubada. A insegurança entre esses profissionais invisíveis para a mídia e para a sociedade é total. E, pior que invisíveis, mal-amados, assim como os policiais. E justamente por aqueles que fazem parte dos estratos sociais que mais se beneficiam da ação da polícia na defesa das propriedades.

Essa onda de agora já vai passar. Mas estou certo que voltará tão logo o circo eleitoral se agite. Principalmente, como parece, se o candidato oposicionista aparentar algum fôlego.

Houve uma época, mais inocente ou menos cínica que essa, em que eu acreditava em coincidências. Mas isso aconteceu há muito tempo.

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quinta-feira, julho 06, 2006

Tchau, Belinha



Essa história que agora termina começou há muito tempo. Pelo tempo dela, há 112 anos. Pelo nosso, há dezesseis. Toda uma vida, essa é a verdade. E muitos de vocês tiveram parte nessa vida, em um ou muitos momentos.

Cheguei em casa uma noite e lá estava aquela coisinha bege-clara, já serelepe. Meu filho, todo satisfeito, disse que ela estava na calçada, sozinha e abandonada. Bom, aqui em casa podemos ter vários defeitos, não que tenhamos, mas talvez tenha gente que ache, né, mas uma virtude nós temos, todos nós: somos apaixonados por animais. Sempre fomos, felizmente. E não enxergo minha vida presente ou futura sem a companhia deles. Mas naquela noite minha primeira reação, até falsa, mas necessária, foi uma bronca: “Nós acabamos de trazer a Natasha e agora você pega outro filhote? Vai complicar ter dois cachorros nessa casa.”

A essa altura eu já estava sentado no sofá, olhando pra ela e pra Natasha, uma bola gordinha e fofa de pelo. Mal terminei a frase, aquele bichinho clarinho, meio magrinho, pelo que lembro, pulou no sofá e veio pro meu colo.

Rendição total, incondicional.

A Belinha, oficialmente, passava a fazer parte da família.

Enquanto a cocker pura Natasha, aristocrata com nome aristocrático (pelo menos na Rússia tzarista), era folgada, cheinha e comilona, a Belinha era elétrica, magra e comilona, também, mas nada exagerado. O que comia, gastava em pulos e corridas.

Quem não convive com cães, gatos, vacas, cavalos e outros seres não-humanos, sequer desconfia da riqueza que é esse mundo. Cada um tem sua própria personalidade, ah, como tem. E alguns a tem muito forte, como a Belinha. Ela era mandona, autoritária, desde o começo foi a dona do pedaço, chefe incontestável. Até o poderoso Truck, meu saudoso doberman, quatro ou cinco vezes maior que ela, com uma dentição poderosíssima, nunca se atreveu a desafia-la. Respeito é bom, e ela gostava.

Morávamos ainda em São Paulo, num condomínio de casas meio pequenas, mas que davam bem pro gasto. Por conta das cachorras, tínhamos um portão que fechava o corredor lateral, um daqueles típicos portões de lanças, bem estreitas no primeiro meio metro e depois um pouco mais largas, não o bastante, porém, para a passagem de um cachorro. Bom, não era o caso da Belinha que ignorava as barras e passava por elas sempre que via algum cachorro na rua, passeando na coleira com seu dono. Numa manhã de sábado, enquanto tomávamos o café, a Belinha pulou, passou pelo portão e foi bater boca, ou coisa pior, com o cachorro de um vizinho. Depois de traze-la para dentro de casa, pedi à nossa empregada que passasse uns fios de arame pelo portão para impedir a saída dela.

Enquanto ela passava o arame, dando voltas e mais voltas, a Belinha permaneceu sentada na passagem da cozinha para o corredor, observando atentamente. Pouco depois, café tomado, fomos lá dar uma olhada e comentei que agora ela não escaparia mais. Ao voltarmos para a cozinha, a surpresa: a Belinha fizera um enorme xixi bem embaixo da mesa onde tomávamos o café. Tão grande que parecia uma lagoa. E, da entrada da cozinha, olhava para nós. Seu olhar era claro e a sua bronca conosco também. Ela nunca tinha feito aquilo e nunca tornou a fazer. Deu seu recado e sentiu-se satisfeita, afinal, ela não era cachorra de levar desafora pra casa.

E o tempo passou, ou passamos nós pelo tempo. Ela pariu duas vezes. De sua última parição estão conosco a Branca e a Mel. Ver a Belinha cuidar dos filhotes era diversão pura. Numa tarde de domingo, fizemos um churrasco na varanda como era habitual. Trouxemos os filhotes e deixamos que ficassem por ali, participando da pequena festa que era cada churrasco. Mais pro final, abri o portão e liberei a passagem do Truck. Como ele era muito grande e adorava carne, às vezes era difícil convencê-lo que deveria contentar-se só com os pedacinhos que dávamos e que aquele grande e maravilhoso naco de picanha era exclusivo dos bípedes, vedado aos quadrúpedes. Pois bem, portão aberto, o Truck disparou no rumo da churrasq... Opa! Brecou, literalmente, no meio do caminho. Entre ele e a churrasqueira estavam os filhotes da Belinha. E ela deitada, placidamente, olhos meio abertos, meio fechados (difícil dizer qual a opção correta), do lado deles. E ali ficou o Truck, ansioso, olhando ora Paraná a churrasqueira, ora pros filhotes, ora pra Belinha. Mesmo chamando por ele, mostrando um pedaço de carne, ele não passou. Como os filhotes já estavam sonolentos, levamos todos para a área de serviço e aí o Truck sentiu-se livre e foi saborear seus merecidos pedaços de churrasco.

Ah, são muitas histórias, muitos causos, ela gostava de algumas pessoas e não ia com a cara de outras. E claro que nunca disfarçou nada disso, sempre foi honesta.

Foram pouco mais de dezesseis anos de vida em comum, quase dezessete.

Um maldito câncer tomou conta de seu corpo no final. Quando diagnosticado, achamos melhor nada fazer, pois a cirurgia seria grande e cruel, e sequer havia certeza que ela sobrevivesse à anestesia. Como não sentia dores, optamos por deixa-la viver enquanto desse. E viveu até bem. Começou a ficar pior quando surgiu outro foco no ouvido esquerdo. Esse começou a incomodá-la, levando-a a gemer muitas vezes, na tentativa inútil de coçar ou arrancar. Apesar disso e da idade, ela estava lúcida como sempre, bebendo e comendo. Ah, comendo muito bem. Aproveitou bem seus últimos dois anos de vida e só comeu do bom e do melhor. Carnes ao gosto, picadinhas, pois seus dentes, com tantos anos de uso, já eram. Hoje cedo fez sua última refeição. Devia estar gostosa, como sempre, pois comeu bem e tudo. Com a comida, dois comprimidos de um calmante forte. Adormecida, não chegou a perceber a chegada da veterinária e pouco sentiu a picada da agulha e a anestesia. Minutos depois, o remédio que levou-a embora.

A Belinha, fisicamente, deixava de fazer parte de nossa família. Só fisicamente.


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terça-feira, julho 04, 2006

As chuteiras sem pátria


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(Transcrição da crônica de hoje, do Jabor, publicada no O Estado de S. Paulo - Caderno 2. )

As chuteiras sem pátria

Arnaldo Jabor

Quando chega um fax com barulhinho de cornetas celestiais, eu já sei: é carta do Nelson Rodrigues. Não deu outra. Nelson me pedia para publicar um texto sobre a Copa, já que está sem contato nas redações: "Eu sou do tempo do Pompeu de Souza, do Prudente de Morais Neto... Não conheço esses meninos da redação..." Muito bem, aqui vai seu comentário sobre o sábado da desgraça:

"Amigos, a derrota é um grande momento de verdade. Só diante da vergonha é que entendemos nossa miséria. Num primeiro momento, queremos encontrar uma explicação para o fracasso, mas fracasso não se improvisa - é uma obra calculada, caprichada durante meses, anos até. Não adianta berrar no botequim que o Parreira é uma besta ou que o Ronaldo é um gordo perna-de-pau. Não. Nosso fracasso começou antes, porque esta seleção não foi a pátria de chuteiras; foram as chuteiras sem pátria.

Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da infância pobre, humilhada. O País virou um passado para os plásticos negões falando alemão, francês, inglês, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não; mas neles está ausente a fome nacional, a ânsia dos vira-latas querendo a salvação. O povo todo estava de chuteiras, para esquecer os mensalões e os crimes, mas nossos craques não perderam quase nada com a derrota; tiveram apenas um mau momento entre milhões de dólares e chuteiras douradas pela Nike.

Isto me faz lembrar o grande Nenen Prancha do Botafogo: "Temos de ir na bola como num prato de comida!..." Que frase profunda, esquecida hoje... Nosso time come bem e nem os jogadores, nem os técnicos, nem os roupeiros e massagistas viram o óbvio, ali, uivando, ululando nos vestiários: o time estava sem conjunto, os jogadores estavam presos a um esquema tático que contrariava suas vocações. Só o povo berrava: "Ronaldo está gordo, Ronaldinho tem de atuar mais livre, os jovens têm de jogar mais!" E, quanto mais o óbvio se repetia, mais o Parreira se obstinava em sua lívida teimosia... Por quê? Porque o técnico é sempre contra a opinião geral. Em vez de orientar as vocações dos rapazes, ensinando-lhes a liberdade, a coragem e o improviso, o Parreira achou que todos têm de caber em sua estratégia. O pior cego é o surdo. E jogador brasileiro não gosta de lei nem de planejamentos; quer inventar sozinho. O técnico devia ser um reles treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas, o Parreira parecia um "Mussolini" de capacete e penacho. Teve vários sinais de tirania: só dava a escalação no vestiário, com os jogadores desamparados, na insônia da dúvida da convocação, não teve coragem de barrar as estrelas, como se isso fosse uma afronta ao passado e às multinacionais. Ronaldo fez gols, tudo bem, mas foi uma âncora pesada desde o início, em torno do qual os problemas giraram. Parreira ficou com medo dos jovens e eu via em seus rostos o desespero do banco. Robinho arfava de rancor e só entrava quando era tarde demais. Robinho foi o único que chorou no final, ainda menino e puro. Quem teve a mãe seqüestrada sabe o que é tragédia. E, para escândalo do País, Robinho ficou de castigo. Ao final de tudo, Parreira disse a frase suicida: "Não estávamos preparados para perder!..." Isso é a morte súbita, isso é a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para a revanche, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias esmagadoras, pois nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem ave-marias. Mas, Parreira ignorou a divindade e acreditou em si mesmo, com a torva vaidade de uma prima-dona gagá, com pelancas e varizes.

Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Por exemplo, por que começamos o jogo como um corpo de bailarinos eufóricos e, 15 minutos depois, ficamos paralíticos como sapos diante de cascavéis, com o Zidane dando chapéus até no Ronaldo? Será que diante da Marselha sofremos um pavor reverencial? Em 98, Ronaldo caiu em convulsões de cachorro atropelado no vestiário. E agora? Creio que no sábado não estávamos com medo da França, não; o que tivemos foi medo de nós mesmos, voltou-nos o complexo de vira-latas, inibidos como vassalos diante do Luís 14, de sapato alto e peruca empoada. Foi assim em 98 e agora. A França é muito chique para filhos do Capão Redondo e de Bento Ribeiro.

Mas, todos sabem que quem ganha e perde as partidas é a alma. E a nossa estava dividida entre o match e a linha de passe, entre o show e a vitória. Houve o episódio da meia do Roberto Carlos, que um segundo antes do gol da França, estava ajeitando a liga como uma madame Pompadour. Pelé notou o descuido frívolo e trágico, pois guerreiro furioso não conserta a roupa na batalha. Esse pequeno gesto revelou bastidores de equívocos fatais, teorias e teimosias.

Outra coisa que nos matou foi a torcida. Nunca houve uma torcida tão desesperada por uns minutos de paraíso, de brilho. Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o País. Agora, tentávamos limpar nosso presente. Explico: há um ano, somos uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o País é dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e pelos traficantes. Por isso, a população queria que o scratch fizesse tudo que o Lula não fez. Mas, era peso demais para os rapazes. A 10 mil quilômetros, os jogadores ouviam os gemidos ansiosos das multidões de verde-e-amarelo, como uma asma patriótica. Não esperávamos uma vitória, mas uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona brasileira, a seleção era nossa única chance de felicidade. Queríamos a taça para berrar ao mundo e a nós mesmos: " Viram? Nós brasileiros somos maravilhosos!"

Mas, não deu. É só."


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