sexta-feira, agosto 05, 2005

"Libro de Manuel"


Gosto desse Cortázar. Não é o melhor dele, longe disso, mas gosto bastante. É um romance essencialmente político. Gosto da tentativa de fazer um retrato do mundo do hoje do personagem para o filho ter uma idéia, no futuro, do que foi o passado, o presente de quem recorta e cola as notícias. De sumidos nas prisões argentinas. De executados. Notícias da ausência de uma mínima justiça. Notícias de um tempo em que a revolução começou a morrer na prática da vida cotidiana, antes de vir a morrer nos corações e mentes. É uma visão triste a que o protagonista monta e deixa para seu filho. Mas é a visão de um mundo real amenizado pela ótica e técnica jornalística. Amenizado... A realidade é sempre mais brutal do que a imagem que dela é mostrada.

Às vezes me sinto tentado a montar eu mesmo o meu “Libro de Manuel”, cuting and pasting as notícias a partir da net. Mas desisto. É uma tarefa sobre-humana, a menos que eu reduza meu apetite drasticamente. Mas eu não sou um cara de dietas, longe disso. Abraço com prazer uma lauta feijoada e fujo, como o diabo da cruz, de uma singela torrada com queijo branco. Da mesma forma escrevo, da mesma forma fico tentado a colar as notícias que, na minha visão, retratam o mundo em que vivemos. Ou o país em que vivemos.

Até já fiz um pouco disso, a última vez ainda bem recentemente. Mas é cansativo. Ao procurar, tudo que se encontra é o noticiário sobre corrupção. Ou sobre desmandos. Ou sobre flagrantes injustiças, tão brutais que nos insensibilizam por completo. Não fazemos relação direta, visual, tátil, olfativa, entre o descaramento de bandidos ligados ao poder movimentarem pra lá e pra cá dezenas de milhões de reais, e crianças e velhos morrendo em filas de um instituto de seguridade falido, em busca de uma assistência médica que inexiste, dada a sua precariedade e limitação. Não enxergamos os jovens “formados” no 2o grau que não sabem escrever. Quando sabem, não conhecem gramática, não conhecem a grafia das palavras. Não têm noção do que seja Europa ou Ásia ou Estados Unidos. Claro, como poderiam se sequer noção de si próprios e de sua história e lugar no mundo possuem? Perpetuamos e aumentamos a ignorância de todos em favor de meia dúzia de privilegiados.

Não sou capaz de montar um “Libro de Manuel”. Não por incapacidade intelectual, tenho a pretensão de achar que dessa eu dou conta. Mas por incapacidade estomacal, digestiva. Algo me diz que esse sistema digestivo, que já passou por muitas e más situações por esse mundo afora, mais ainda pelos sertões do interior e das metrópoles (é, há “sertões” nas metrópoles), não tem estofo bastante para agüentar a confecção de tal colagem.



Para Ana: não é que a realidade canse, é que a mente, às vezes, precisa de outras coisas para se distrair. Tal como os manuais para usar o computador: a cada hora defronte à telinha, descanse a vista olhando para outras coisas, buscando outros focos. No horizonte, se você tiver horizonte – coisa que hoje larga parcela da humanidade não tem mais, e como está descrito no Pessoa que reproduzi ontem – ou num quadro, num vaso com planta, no céu onde passa o TAM das 09:15 no rumo do Rio ou de São Paulo, depende de onde está o observador.
Escrever sobre o sítio me afasta de CPIs e malfeitos, mas não muito, elas fazem parte de nossas vidas, gostemos ou não. Aliás, eles fazem parte, pois refiro-me às CPIs e também aos malfeitos, muitos e variados, mas todos parte de nossas vidas. Curioso é que leio manifestações de pessoas inteligentes que se dizem apolíticas. Tsc tsc tsc... O apoliticismo é uma posição política muito clara e bem definida. Válida, é óbvio, pois é a expressão da vontade de quem a manifesta. Mas é uma posição política.

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Um comentário:

Anônimo disse...

De sua capacidade intelectual não duvido. Mas concordo que é preciso cuidar do estômago, até porque tem um sapo enorme anunciando aos quatro cantos do brejo que vamos ter de engoli-lo.

Pois foi isso mesmo que eu disse: é preciso distrair o pensamento. E o fragmento do verso, Pessoa em Caeiro disse: "...a nossa única riqueza é ver." O outro diz que é "andar com a cabeça erguida". Ok, mas cego total e de cabeça erquida, inevitável quebrar a cara em algum poste.

PS: que não seja o de Manuel, mas você tem que pensar em nos brindar com seu libro.

PS2: já viu que viciei por aqui, né? Remédio? Escreva ruim ou não escreva nada. :P