terça-feira, agosto 02, 2005

Dia de roça III


09:15 – Antes de ir pra cidade, deixo o leite no laticínio.
No caminho, duas das búfalas que produzem o leite usado pelo Tião para as mussarelas feitas só com leite de búfala.
São muito bonitas e dóceis, embora possam parecer assustadoras.
Essas recém-saíram da ordenha. A caminho do pasto, uma pausa no riacho pra um refresco.

Problemão no laticínio: o leite tem vindo ácido. Um dia foi até recusado. O que será que tá acontecendo? Tião, dono do laticínio, vem conversar comigo. Damos tratos às bolas mas não chegamos a uma conclusão. Na dúvida, vou mandar os meninos botarem gelo direto dentro do galão de leite. Gelo temos em abundância: o freezer tá cheio de garrafas plásticas de 2 litros que são puras pedras de gelo. Também não custa um cutucão e um aperto pra melhorar a higiene. Nessa área, o melhor é estar “sempre alerta”. Deu vontade de pegar uns queijinhos e umas mussarelas, mas não vai dar. A cidade e as obrigações nos esperam.

10:00 – Na cidade. Por mera questão geográfica, a primeira parada é na lotérica. Um joguinho pra não perder o vício. Brasileiro: profissão esperança. Passo pela cooperativa pra comprar um saco de farelo de algodão com 38% de proteína. Precisar não precisa, tem no sítio, assim como farelo de soja. Mas é bom levar mais um saco. Hummmm... Vai ter leilão bom daqui uns dias. Com o preço do leite no subsolo, o preço das vacas vai despencar. Bom momento pra comprar. O diabo é conseguir comida.

Quase entrando no carro o balconista me chama: - Telefone pro senhor, é o “seu” Tião. Ué, que diabos aconteceu? Que coisa mais estranha! Pego o telefone: “Oi, Tião, que que houve?”, pergunto de saída. “Houve nada não, é que a D. tá fazendo almoço e ela precisa de 1 kg de batata. Aí eu lembrei que você tava por aí e pensei em te pedir. Dá pra vc comprar e trazer?” Mas é claro que dá, com prazer. Meus vizinhos colaboram muito mais comigo do que eu com eles. Nada como devolver um pouco. (Devolver é melhor que reciprocar, né?)

O agrônomo repassa a análise comigo. Interessante. De maneira geral a terra não está tão ruim como eu temia. Bom, muito bom. Discutimos alguns pontos e já deixo o pedido feito pro adubo. Agora é esperar encaixe em alguma carga que venha pra cá. Fui claro pro W: quero formulação com micronutrientes. A diferença de preço é pequena e os benefícios que poderemos ter com eles são grandes. Chega um, chega outro, manhã de sábado é isso. Pego a análise e vou em busca das outras tarefas e produtos. Durante a conversa o pessoal carregou 4 sacas de milho no carro. Ainda vou em outra loja comprar sal mineral pra misturar na ração. Minha mulher aproveitou e passou no mercado, pegando, entre outras coisas, as batatas pro almoço da D.

Pronto, com mais de 300 kg, meu carro se traveste de pickup. Tem milho, farelo e ração peletizada pro Brioso. Tem ungüento pras feridas das vacas e graxa pra picadeira de cana que chegou semana passada, além do sal mineral pra misturar na ração. Só falta pegar cabo de vídeo. Os que tínhamos aqui os ladrões levaram.

No caminho pra casa começo a pensar: com o carro pesado assim, pegar 5 km de terra pra levar as batatas vai ser um problema. A estrada pro laticínio é boa, batida, mas tem desníveis e mata-burros. O carro vai trepidar e ficar barulhento. Diz o bom senso pra ir primeiro em casa, descarregar e voltar. Mas aí o almoço da D vai sair muito tarde. E se tiver gente de fora? Pego a estrada de terra.

12:00 – entro no gramado que separa a casa do Tião do laticínio. Ele está sorridente. Olha o relógio e diz que fui britânico na pontualidade. Falei que chegava em uma hora e meia e, batata! Cheguei. Deixo as batatas e paro no laticínio. Peço uns queijinhos tipo “frescal”, feitos com o leite das búfalas já sem a gordura, retirada pra fazer mussarela. Pego, também, uma peça de mussarela de búfala. O Tião aparece e nos presenteia com um queijo novo, começaram a fazer agora, só com leite de vacas, das minhas, inclusive. Abastecido com queijos e mussarela, finalmente vou pra casa. Com o carro ainda mais pesado que na chegada.

Outro dia minha mulher comentou deleitada: “Adoro o sítio, cada lugar que a gente vai sempre ganha alguma coisa. As pessoas vêm em casa e trazem alguma coisa”. É verdade. Lembro que era assim antigamente, nos tempos d’eu menino. A vida no campo – coisa européia – ou na roça – mais nossa, mais tupiniquim – sempre teve disso, essa convivência marcada pelas gentilezas. Está mudando, porém. Mesmo gente que mora aqui a vida toda, já não se relaciona assim com vizinhos, amigos e parentes. A culpa disso está, em boa parte, na especialização que todos acabam sendo obrigados a abraçar, mais dia, menos dia. Quem produz leite, produz leite. Quem produz hortaliças, produz hortaliças. Aquela antiga fazenda, romântica, gostosa, meio idílica, onde se produzia tudo, ou quase tudo que se comia, pertence ao passado. Não cabe mais nos dias de hoje, com parâmetros tão diferentes e exigentes. Novos tempos que trazem consigo palavras como “parâmetro”. Nada a ver.

O meio do dia chegou e eu não cheguei, ainda, na metade do que tenho para escrever.
Como? Já vai, leitor? Fica mais um pouco... Ah, cansou. Tá certo, eu também me cansaria.


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2 comentários:

Anônimo disse...

Tô cansado não! Vou continuar.

Anônimo disse...

Olá

Cansar? De jeito nenhum.
De jeito todo, mesmo, é o arrependimento de não ter te lido antes.
Cheguei aqui pelo Drops da Fal ( melhor identificar, haja vista que ela está em mil pages agora ) e adorei o seu modo de escrever.
Vc descreve simples e docilmente seu dia a dia.
Sua escrita tem magia!
Fofo de mais ( desculpe o fofo, mas é sincero )o seu tratar a vizinhança e juro que eu achei que vc e sua esposa iriam almoçar no sítio que pediu as batatas.
Humilde e sincero o retribuir as gentilezas.
Que isso seja reintegrado ao dia a dia de todos hoje em dia.

Shirley
( svivaldini@yahoo.com.br )