sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Na quietacão do entardecer

Lembro de ler meu amigo Eduardo Almeida Reis falando no seu livro “A vaca leiteira e o animal que a cria” sobre a “quietação tranqüila do entardecer” na fazenda, confortavelmente sentado na varanda, vendo as vaquinhas pastando, aproveitando o frescor da tarde quase noite.

Durante muitos anos vivi essa cena. Mas só virtualmente, como é moda dizer hoje em dia. Por muito tempo ela foi habitante contumaz de meus pensamentos, de meus sonhos. Ora na cama, enquanto o sono não chegava, ora no trânsito, enquanto ninguém andava, ora nos momentos chatos do escritório, com os telefones tocando e a vida passando lá fora, célere, dias de sol, dias de chuva, dias de bruma, dias de vento, todos bonitos, cada um a seu jeito, e eu longe de sentar numa cadeira gostosa, daquelas de tirinhas de plástico (bregas? pode ser que sim, pro gosto de muitos, mas gostosas, isso sim, muito gostosas), e ficar ali, na quietação tranqüila do entardecer, pensando na vida e observando a natureza passar.

Quietarrão. É assim que estou agora, depois de um dia de trabalho meio puxado no Sítio das Macaúbas. Realmente, é bom demais, digo, é bão demais sentar na varanda e fazer nada. Se por um lado o sítio está exposto ao rigor dos ventos que vem do sul e sudeste, com sua frente aberta e alta, por outro, dialeticamente, temos uma linda paisagem que se estende por quilômetros. Laranjais, pastos e canaviais, um ou outro capão de mato, e uma lavoura de milho aqui e acolá. Um morrote soberano, mais alto que essas nossas alturas, das chamadas Terras Altas Paulistas, onde está Santa Rita do Passa Quatro. É bonita essa paisagem, rica, diversificada. Os altos e baixos dos morros, do preço da laranja, do preço do açúcar e do álcool e da vida mesmo, impedem que a cana tome conta de tudo. E qualquer dia, para supremo deleite, ainda vou ter uma lavoura de girassol em todo seu esplendor bem de frente para minha varanda, é só esperar. Ficar olhando essa paisagem toda na quietação tranqüila do entardecer me deixa assim, quietarrão, de bem com a vida.

E há muito mais que a paisagem. Os passarinhos fazem festa nessa hora, principalmente nas tardes de primavera e verão, cheias de siriris e içás voando por tudo quanto é lado. Senhor e senhora joão-de-barro, com sua casa no alto do poste da rede elétrica, são presenças permanentes. Os chopins-do-brejo aparecem num grande bando e somem no meio do capim e das leguminosas que preenchem o espaço entre um pé e outro de limão. Um deles fica lá no alto de um limoeiro, alerta a qualquer movimento suspeito. E, vindo de nós, humanos, o sentinela considera suspeito todo e qualquer movimento. Não posso deixar de lhe dar razão. Nessa época, as andorinhas andam por aqui, ou melhor, voam por aqui, velozes e elegantes. O tico-tico canta, os sabiás-poca fazem muita agitação, enquanto os siriris e tesourinhas caçam ... siriris e outros insetos. O siriri pássaro é um bichinho admirável e muito útil. Muitas vezes vemos o casal perseguindo um gavião até espantá-lo para bem longe de seu ninho. Bichinho bom de briga esse. E o que esse tem de valentia, tem de elegância o tesourinha, com seu rabo aberto em vê bem largo e seu vôo gracioso. E eles todos não perdem viagem: um voozinho, um inseto no papo. Santa eficiência.

Muitas vezes consigo não pensar. Apenas me deixo ficar ali, apreciando. Outras vezes penso, e direciono meu pensamento para a terra, esse organismo vivo tão maltratado, tão tratado como se fosse algo inerte, morto, como se fosse um mero pedaço de metal. E aqui o bicho homem se equivoca, pois até o pedaço de metal tem vida, afinal seus átomos movem-se incessantemente, elétrons girando loucamente em volta de seus núcleos de prótons e nêutrons e outras partículas mais das quais mal ouvi falar. E, verdade seja dita, sequer me interessam.

E penso na vida, e sua contrapartida, a morte, a outra face de uma mesma moeda. Aí desisto de pensar. Esse mistério é grande demais pra minha cabecinha. Como diz um amigo, é muita areia pro meu caminhãozinho. Mas, pensando ou não, a verdade é que a gente devagarinho vai aprendendo a ter mais e mais respeito por essa coisa maravilhosa e misteriosa.

E assim vai seguindo a tarde seu caminho, bonita, tranqüila, com seus cantos, cores, luzes e ruídos, antecipando a noite a chegar, que por sua vez trará a manhã fresca e radiosa de um novo dia. Cheia de energia.

Como a vida é. Como a vida deveria ser.


(Não tem jeito, esse negócio de falar de terra, passarinhos, plantas, acaba botando nos meus dedos uma linguagem meio carregadinha nos adjetivos e meio puxada pras filosofices. Não sou filósofo, ainda bem. Me dou melhor com as filosofices do que com a filosofia. Temos isso em comum, o gosto pelo senso comum e filosofices, mesmo que meio bestas, meio errados, o presidente e eu.)


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