O tempo passa, algumas coisas até mudam para melhor, poucas, infelizmente, pois a maioria, todavia, muda mesmo é para pior.
Há dois anos a cidade de São Paulo era tomada por uma chuva forte. O túnel do Anhangabaú ficou cheio d’água. Carros boiaram nas águas bravias, pessoas foram resgatadas de barco, em pleno centro da maior e mais importante cidade de LatinoAmerica. E de todo o hemisfério sul desse planetinha.
Naquele momento, escrevi esse texto.
“Memórias e vivências paulistanas
Livre pensar é só pensar mesmo. O fluxo de pensamentos vem a esmo, incontrolável, onde se misturam minotauros, hárpias e paisagens, vacas e centauros, delírios vespertinos numa Paulicéia que já foi desvairada e hoje é só desafortunada. O tudo que poderia ser e o nada que é comparado ao que poderia, o muito que é comparado ao nada que deveria existir, opostos que se encontram, convivem e um anula ao outro, mas o nada que não deveria anula o tudo que precisaria ser. Tristeza.
Muita água, como se abrissem as comportas de Itaipu e as águas do Paraná descessem velozmente no rumo do Prata. Carros de cambulhada se chocando e se amontoando, uns sobre os outros, como o gado na boca do matadouro, desesperado para não entrar, antevendo o final trágico, sonhando com pastagens verdes e rotina tranqüila. Aí, o pessoal sai do ônibus ilhado, embaixo de chuva, em meio às águas, sobe pelas janelas, alpinismo urbano moderno, esporte radical da estação, podia virar esporte olímpico, e do teto do ônibus cruza as águas sobre uma escada deitada, equilibristas dum circo molhado e louco, lunático, impensável. Em meio ao vermelho marrom amarelo-sujo das águas velozes, onde coisas escuras bóiam e descem ao sabor da correnteza, homens de capas amarelas puxam e empurram um barco, num papel inverso, de acordo com a loucura dessa cidade abandonada. Outras pessoas embarcam, saem dum carro que virou aquário de águas sujas e revoltas e sobem no barco, sem remos e sem motor, os homens puxando e empurrando, cortando a correnteza célere, traiçoeira.
Enquanto as torres desabavam em Nova York as pessoas corriam, a vida imitando a arte cinematográfica catastrófica, escombros voando, nuvens escuras deixando o chão em direção ao céu. Aqui somos menos espetaculares e mais molhados. O carro ficou atrás, montado sobre outro, imitação pobre e ridícula duma cópula bovina, e o engravatado baixo executivo caminha sem sapatos em meio às águas revoltas, e sempre sujas, em busca de um abrigo improvável, nada mais improvável que um abrigo fora do nosso carro, nossa fortaleza, nosso transporte, nossa extensão, nosso membro permanente. A qualquer momento, como um touro insatisfeito, o carro acotovelado podia deixar o alto e descer para as águas, o chão perdido, escondido, e deslizar corrente abaixo em busca de seu executivo, atropelável indefeso fora e longe da couraça protetora de plástico, metal e vidro.
Ruas paulistanas ...
Há muito tempo atrás queria conhecer tudo dessa cidade, norte a sul, leste a oeste. Subia num ônibus e ia embora, cortando ruas e avenidas, bairros, vilas e jardins. De um ponto a outro, era só descer, tomar um guaraná com o dinheiro contado, fosse lá ficar perdido num fim de mundo qualquer a duas ou mais horas de ônibus da minha casa. A volta era no mesmo banco, às vezes do mesmo ônibus. Via melhor o que só entrevira na ida, vislumbres ganhavam novos contornos. E os contornos firmes da ida, agora familiares, viravam vislumbres no sentido contrário. A vida era tranqüila, na bolsa a tiracolo, moda hippie que os meninos da periferia, pobres e nada chiques, podiam usar sem medo de parecerem hippies ou boiolas, embora o termo certo naquela época fosse viado, suprema ofensa. Na verdade, para nós que não éramos chiques e enturmados, um e outro era a mesma coisa. A bolsa foi um grande acréscimo. Três ou quatro livros davam peso, volume e me faziam ter um ar de importância, um ar de intelectual metido a besta querendo ser humilde. Eu ficava importante. Naquela época eu acreditava que intelectual fosse importante. Fosse um ser importante. Com o tempo descobri que não, tudo isso nada mais era que uma coleção de abobrinhas, abóboras e bobagens, mas enquanto acreditei, sonhei em ser, também, um intelectual.
O ônibus era o melhor lugar de leitura que existia. Nada se comparava. Num banco, do lado esquerdo, com certeza, tramei e planejei a derrubada do regime militar. Muitas vezes. Sonhei com o socialismo. Aprendi a ser um marxista de livro. Aí, passei a querer ser um marxista-leninista de ação. Não cheguei a tanto, passei perto mas não cheguei lá. Que bom. A revolução perdeu um lutador que se achava implacável. E, podem não acreditar, mas o ônibus representava segurança. Não que as ruas não fossem seguras, até eram, mas os ônibus sempre eram mais seguros. Acredite se quiser.
Mudaram as ruas de São Paulo. Mudaram os bairros. Mudaram os habitantes. Tudo mudou em São Paulo e de São Paulo, até a garoa, que foi-se embora para lugares mais garoáveis, menos asfaltados, menos concretados.
Os novos paulistanos nascem cercados, vivem cercados. Por baixo, o asfalto. Dos lados, o concreto. Por cima, o cinza-poluição, pesado, denso, carregado. Écrans ocupam os cantos e paredes, martelando sempre a mesma mensagem, ocupando nichos cerebrais aos borbotões, como a água que escapa dos córregos e ocupa as ruas. E, por dentro, dentro de cada ser, o mesmo asfalto, o mesmo concreto, o mesmo cinza, recobrindo corações e mentes. Dura vida paulistana. Triste vida paulistana.
14 e 16 de fevereiro de 2002 – estação das chuvas, estação das enchentes”
Nessa semana, com a cidade já sob nova administração, a chuva voltou a cair pouca coisa acima do normal. E deu nisso:
C:\Documents and Settings\Cia Imagem & Video\Meus documentos\
Minhas figuras\enchente em sp.jpg
Não vou escrever a respeito. Não há porquê.
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