quinta-feira, novembro 24, 2005

Imigrantes de sucesso


O Brasil é bem um país da América, uma terra que sempre acolheu bem aos imigrantes. Não tão bem assim, se pensarmos que muitos vieram para cá contra suas vontades, aprisionados e separados de suas famílias e terras na África. Outros, como meus bisavós maternos, vieram por vontade própria, deixando para trás a paupérrima Calábria - hoje não mais paupérrima, apenas pobre – e pegando o cabo da enxada nos cafezais do interior, numa vida dura e, à época, com poucas perspectivas. Da Terra do Sol Nascente veio muita gente, também, numa viagem ainda mais longa, verdadeira odisséia, gente com uma cultura em tudo e por tudo diferente da cultura dominante na nova terra. É, aquele pessoal de outrora tinha coragem, não se pode negar.

Nem só gente veio de fora e por aqui se deu bem. Muitos outros imigrantes aqui aportaram, estabeleceram-se e cresceram. Vou falar de alguns deles.

Há alguns meses, indo levar o leite pro laticínio num horário tardio, o sol já muito alto e velho no céu, deixei de fotografar uma cena muito interessante. Claro que, desde então, venho perseguindo essa bucólica cena em vão. Nela, eu tinha um bando de imigrantes bem sucedidos nas terras, águas e ares tupiniquins: búfalos asiáticos, garça africana e planta asiática, todos juntos, usufruindo harmonicamente das águas do córrego que cruza a fazenda do Tião, entra na Fazenda Pantanal e deságua no Rio Clarinho, que, por sua vez, vai desaguar na represa formada no Rio Claro.

Segundo muitos especialistas, a pequena garça branca que vemos atrás das vacas por toda parte hoje em dia, veio da África para a América do Sul. Não dizem como, mas tudo indica que isso, de fato, ocorreu. Elas andam atrás das vacas, cavalos e também búfalos, para comer os insetos que os quadrúpedes espantam enquanto pastam e, também, para saborear as gordas e nutritivas carrapatas cheias de sangue e ovos, penduradas, prestes a se soltarem para cair no chão, e ali prosseguir seu ciclo de vida, quando, cada fêmea, conforme a espécie, bota de três a cinco mil ovos que originarão igual quantidade de micuins. Santas garças!


Nessa foto, falta a garcinha. Mas estão presentes os outros dois imigrantes de sucesso: o búfalo e o lírio-do-brejo. Pena que esses exemplares da foto não tenham mais as bonitas flores brancas que fazem um belo visual às beiras dos córregos por boa parte do Brasil.

O lírio-do-brejo é interessante. Tanto já vi essa planta por todo o Brasil, que nunca, em nenhum momento, imaginei que ela não fosse nativa. Foi com surpresa que descobri, no Lorenzi (“Plantas Ornamentais no Brasil”), que sua terra de origem é a Ásia. Como ela veio parar aqui? Talvez trazida por algum funcionário da Metrópole, transferido quem sabe de Goa para o Rio de Janeiro e que trouxe na bagagem semente ou muda da planta que achava tão bonita nos rios da Índia? É possível, provável, até. Seja como for, introduzida em algum jardim ou chácara nos arredores do Rio de Janeiro ou Salvador, ela expandiu-se velozmente e hoje é difícil a gente ver um trecho de beira-rio meio puxado pro brejo sem a presença maciça, bonita e cheirosa dos lírios-do-brejo, um imigrante de sucesso.

(Há uma outra espécie, de porte um pouco menor e flor também menor, originário da Europa e Ásia, mas não tão difundido pelo Brasil como o primeiro, que chega a ser, em algumas áreas, uma verdadeira praga, pela agressividade com que invade áreas destinadas ao cultivo.)

Essas simpáticas senhoras, apesar da cara e do olhar assustador, são, também, asiáticas de origem. Em boa parte da Ásia elas são, ou eram – a Ásia mudou muito – parte das famílias que as criam, ou que elas na verdade criam, seria mais apropriado dizer, já que fornecem o leite para o dia-a-dia e o trabalho pesado nas lavouras de arroz, numa condição de clima absurdamente quente e úmido que somente esses animais conseguem suportar. A cara feia assusta, mas o coração é grande e generoso.

Suas primas mais claras e de caras mais simpáticas – e não tirem disso nenhuma ilação outra, por favor – são as búfalas-do-Mediterrâneo, responsáveis pela maravilhosa mussarela de Parma e, por extensão, dos mais fantásticos e deliciosos pratos já inventados pelo gênio humano, como o bife à parmegiana e a lasanha (a lasanha, sim, afinal, o que é uma grande lasanha senão um bom bocado de mussarela derretida envolvida por massa e molho?).

Para cá, vieram representantes das três raças asiáticas: Murrah, Jaffarabadi e Carabao. O grosso, porém, é das duas primeiras. Deram-se tão bem por aqui que parecem donas da terra desde sempre, como em Marajó e, principalmente, numa área no sudoeste de Rondônia, onde alguns animais abandonados há menos de um século, cresceram e multiplicaram-se nas ricas várzeas do Guaporé e afluentes, a ponto do governo ter permitido e estimulado o abate de animais para reduzir seu número. Sim, porque, por aqui, o único predador do búfalo é o homem. E olhe lá. A onça nem perto chega de uma fêmea adulta ou de um macho. Na Ásia, seus predadores são os tigres, principalmente, e crocodilos, em alguns casos. Mas nossos jacarés estão mais para calangos do que para crocodilos, se comparados com seus primos de África e Ásia. Assim como uma portentosa pintada é um gatinho perto de um tigre-de-bengala ou um tigre-de-Sumatra (dizem que ainda existem tigres-de-Sumatra na natureza;dizem).


Essa senhora e sua parceira da outra foto fazem parte do rebanho do Tião. É para ele que entrego o leite das minhas “jersinhas”, pois seu laticínio produz, também, mussarela mista e queijos diversos. Vira e mexe eu deixo o leite e passo a mão numa peça de mussarela e em alguns queijos. “Põe na conta, Mineiro!” Parte da minha produção, portanto, eu comercializo via escambo.

Elas gostam de água e barro. Pode não parecer, mas sua pele é sensível ao sol e à radiação solar inclemente dos trópicos. Elas, com toda certeza, já sabiam dos malefícios dos raios ultravioleta ainda antes da gente sair das cavernas e fazer a primeira choupana coberta de sapé ou similar. O barro em que se reviram tem o papel de protege-las dos pequenos piolhos que são seu tormento. Carrapatos, bernes e mosca-do-chifre passam longe ou pouco incomodam, mas os piolhinhos são terríveis. Para sorte delas, contudo, um bom banho diário e um bocado de lama é o bastante para manter as pequenas pragas sob controle.

O leite de búfala é branco, incrivelmente branco e gordo. Seu rendimento industrial é excepcional, e faz-se um quilo de mussarela com, praticamente, a metade do que se precisaria se fosse leite de vaca. Mesmo o rico e saboroso leite das minhas Jersey não é páreo pro leite das búfalas nesse quesito. Mas ganha no sabor, posso garantir. Outra coisa boa no leite de búfala é que seu teor de colesterol bom é maior que no leite de vaca, mas isso é um mero detalhe. Afinal, com um bocado de fibras e alguma atividade física, a gente controla bem esse trem assassino. E isso só passa a pesar na balança depois da puberdade. E, passada a puberdade, quem é que toma mais de um litro de leite por dia? Bom, meu amigo César... Mas também, pudera, o cara é um bezerrão não-desmamado. E como trabalha todo dia feito um burro de carga, apesar de proprietário de terra, um litro de leite não lhe faz a menor mossa nos índices colesterólicos. Ainda bem.

Pois é, aqui temos uma trinca de imigrantes muito bem sucedidos em terras de América. Desses, embora nenhum seja dono de padaria, nem tenha passado em primeiro lugar no vestibular mais concorrido, nem seja dono de metalúrgica ou supermercado, pode-se dizer que fizeram a América.


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