quarta-feira, setembro 21, 2005

É primavera... (2004)


Esse texto é velho, já tem um ano de vida, mas acho que tem muito a ver com o atual momento, afinal, os sinais da primavera abundam (cruzes...) em Santa Rita do Passa Quatro.


"É primavera!


Com esse título dá pra fazer poesia, texto poético, madrigais, serenatas, alegorias mil celebrando a vida e a beleza. Como pano de fundo, a beleza e suavidade das flores, suas cores e formas. Muitos poetas e incontáveis poetastros fizeram isso. Muitas donzelas percorreram o caminho da sacada ao altar, com uma ou mais passagens sub-reptícias pela alcova, no doce embalo das palavras melosas de poetas de ocasião, literatos menores e interesseiros. E muitas mais não completaram o trajeto, ficando pelo meio do caminho nos quartos da vida.

Dito isto, posso dizer que a primavera, enfim, chegou ao Sítio das Macaúbas. Primeiro, porque eu estava lá. Gosto de achar que as coisas acontecem quando eu estou presente (acho que isso pede uma hora de analista). Segundo, porque choveu. Choveu bem, a ponto de a primeira chuva na tarde de domingo ter derrubado duas árvores: uma sobre o galinheiro e outra sobre um trecho de cerca elétrica. Com tanto espaço e tanta árvore pra cair, é claro que caíram aquelas que estavam próximas de algo útil. Normal. Sina de produtor rural, inda mais em noites chuvosas. Na cidade o povo fala em Lei de Murphy. Fossem pro campo sentiriam na pele e nos ossos o que é essa tal lei importada que nosotros, tupiniquins mesmo, já conhecemos de longa data. Aliás, bem a propósito, terminada a chuva de tempestade e depois de desgalhar no escuro parte da árvore caída sobre o galinheiro, fomos visitar uns vizinhos. No caminho, mais paradas pra tirar pés de guandu e galhos diversos do meio da nossa estradinha.

No caminho pro sítio vizinho, uma árvore tombada sobre a estrada. Deu pra passar, espremido, mas deu. Logo depois encontramos o alvo de nossa visita, no trator, com um dos genros pendurado atrás, equilibrado sobre a barra do hidráulico, embaixo de uma garoinha chata. Estavam indo limpar a estrada. É bom ter genro disponível nessas horas. Principalmente genro novo, que ainda está na fase “é bom agradar o pai dela”.

E, terceiro e não menos importante, os besouros chegaram. No sábado cobriram o chão de marrom claro. Aqui e ali uma pinta preta. Na segunda-feira, um susto. Jantamos fora, chegamos lá pelas onze e sequer pude parar o carro na varanda/garagem. O piso estava literalmente coberto pelos rola-bostas pretos, grandes e pequenos, de ponta a ponta. Entrar com o carro significaria dois largos rastros de patê de besouro, coisa nada agradável de ver, pisar e limpar, inda mais depois de um belo jantar. Sem falar, claro, na felicidade de moscas e vermes que ficariam livres desses terríveis destruidores de ovos desses bichos desagradáveis e anti-econômicos. Da mesma forma estavam as outras varandas que cercam a casa, inclusive a da cozinha, por onde entramos.

Felizmente, não bebi no jantar, o que me permitiu vencer com facilidade as curvas assassinas do Rola-Abóbora e, depois, empunhar uma vassoura e varrer montes e montes de besouros. Ainda tive a pachorra de coletá-los em balde e jogar todo mundo nos arredores do curral, onde a bosta abunda (nossa, cada coisa feia que a língua portuguesa permite, né!).

Não são apenas os besouros que chegaram. Siriris, içás e vagalumes também. Temo-los de todos os tamanhos. Nesse final de semana foi a vez dos siriris grandes, uns bitelões bem criados que fizeram a festa da passarinhada e das galinhas. Também apareceram içás, mas não o bastante para garantir uma boa fritada de tanajuras – que, confesso, nunca comi e não sei se tenho vontade de.

Envergonhado, confesso que outro dia tomei um susto e não foi pequeno. Voltava do curral, distraído, e pelo canto do olho vi uma luz no carreador de entrada do sítio. Era meio forte, a meia-altura, e vinha em minha direção. Meus centros nervosos alojados em algum buraco da caixa craniana, responderam do jeitinho para o qual foram criados, ou seja, mandaram uns litros de adrenalina pra corrente sanguínea. Na mesma hora, parou tudo na barriga e deu aquele frio. Pois é. Talvez devido à proximidade do dia em que completarei meio século, minha velocidade de análise deixou a desejar. Esse retardo na compreensão do evento permitiu a instalação do sentimento feio, mas muito útil, chamado medo. Inda bem que durou coisa aí de dois segundos, não mais. Mas durante esse tempo, muito longo pro meu gosto, tive medo da tal luz que vinha célere em minha direção. Mas era só um vagalume. O diabo é que os vagalumes por aqui estão com uma luz grande e forte, nada daquela luzinha delicada de outrora. Isso me cheira a determinação nova de algum departamento de trânsito. Pensem bem: se todos tiverem que andar com luzes maiores e mais brilhantes, vai rolar uma grana doida na substituição das referidas. Sem falar na vistoria, certo? Oras, pois sim, esse filme é velho e está entrando em cartaz novamente.

Quem ainda não deu o ar da graça em peso é a sapaiada. Já vi vários pela estrada e em vizinhos, mas lá em casa só apareceram os pequenos, até agora. Sorte dos besouros. Azar meu, no caso dos siriris e içás. Mas, coisa curiosa e que vi pela primeira vez, pelo menos no sítio: as galinhas comeram os besouros. Mais que isso, atiraram-se a eles com voracidade, comendo dos pretos e dos marrons, dos pequenos e dos grandes. Não satisfeitas, conseguiram escavar toda a volta das varandas, enchendo o piso de terra e pedras, atrás de mais besouros.

O gramado amanheceu todo pontilhado pelos montinhos de terra mostrando a entrada da toca de mais um besouro. Cada montinho de terra é uma lápide dos ovos enterrados e que não gerarão novas gerações de moscas-do-chifre, moscas-do-estábulo, moscas, simplesmente, e vermes diversos. Não que tenhamos muitas, felizmente, pois a homeopatia já dá boa conta do recado, mas um ajutório desses não é de se desprezar. Sem falar nos benefícios dos túneis e do esterco enterrado mais fundo, ao lado do raizame das plantas.

Perto do curral, o esterco não recolhido já estava parcialmente enterrado. Esses besouros não perdem tempo, trabalham rápido e bastante. E dizem que os africanos trabalham ainda mais e carregam muito mais bosta para suas tocas. Não é à toa que já tem gente criando e vendendo casais de rola-bostas africanos. Mais uma conquista da globalização, até porque essa história ganhou destaque com uma grande empresa veterinária dando casais de besouros africanos como brinde para quem comprasse seu carrapaticida, terrível contra os carrapatos e inofensivo para os besouros.

Pra não dizer que não falei de flores, temos muitas no sítio, pra felicidade dos beija-flores, abelhas e cambacicas, também conhecidas por caga-sebo, nome tão feio pra passarinho tão bonito. As mini-grevíleas estão com flores. Nas sibipirunas, ainda dá pra achar uma ou outra flor. Vários arbustos estão floridos, nem sei quais, pra nós é tudo erva daninha ou “de mato”, pra espanto dos europeus que gostam de jardinagem e se encantam com elas.

Flores não faltam nesse início de primavera. Mas, com sinceridade, nem reparei direito nelas. Minha atenção ficou toda com o capim nos pastos, com as nuvens carregadas, com a água caindo. O pluviômetro foi a menina dos meus olhos. Meu bem-querer maior. Chato foi pegar enxada e enxadão e ir arrumar as valetas pra controle da erosão por onde as vacas passam. Embaixo de chuva.

Ah, doce e molhada vida campestre.


Santa Rita do Passa Quatro, primavera de 2004."



E agora, por um misto de preguiça, falta de inspiração e oportunidade, ele, texto, volta ou vê a luz do dia. Ou das lâmpadas...

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Um comentário:

Anônimo disse...

Sinto saudade de ver as primeiras manifestações da primavera, tão bem descritas no seu texto. Por aqui, sequer vejo aqueles insetinhos rebrilhando sob o sol, tampouco os rola-bosta da infância. E as borboletas, onde estão elas? Muiiiiiito bom lembrar de tudo isso. :)