sexta-feira, junho 24, 2005

Em briga de marido e mulher...



... vizinho não mete a colher.

O "Roda Viva" com o arauto da moralidade, Roberto Jefferson, estava meio chato. Ele só se repetindo e colocando sua voz e expressões. O governador da Califórnia que se cuide. Os jornalistas perguntando menos do que, a meu ver, deveriam, e não perguntando o que realmente me interessava naquele momento. Cansado, pelo dia e pelo nhenhenhém, adormeci. Semi-adormecido, lembro-me de ouvir o menino dos vizinhos da frente gritando. Como são sempre muito barulhentos nas chegadas e saídas, achei normal. Já virou normal. Nem os cachorros latem mais com o auê rotineiro.

Fui acordado do meu sono pela R.

- Emerson, acorda.

- Hummmm...

- Acorda, vai ver o que está acontecendo. Acho que “ele” tá batendo nela. Tô com medo que aconteça uma desgraça.

- Hummmm... Que? O que que houve? – e ali, na tela, Bob Jefferson ainda falando e eu misturando tudo, estremunhado, pensando em tragédia política, sei lá o que.

- O fulano e a sicrana estão brigando, se pegando, e o menino tá gritando sem parar já faz tempo.

- É? De novo?

- É, eu pensei que você estivesse acordado. Você não ouviu?

- Não. Só ouvi o guri gritar, mas ele sempre grita, né? Nem dei bola.

- Vai dar uma olhada, sei lá, acho que temos que chamar a polícia.

- Hum hum... Tá bom.

Levantei trôpego e fui pro banheiro. Troquei a calça do pijama por uma de moleton e calcei a botina, sem meias mesmo. Pijama na parte de cima, moleton embaixo, botina nos pés, sem meia. Lindo e elegante, como de hábito, diga-se de passagem.

Desde o momento que acordei ouvia a gritaria. Briga só é legal, se muito bem produzida, em filme. Nem as novelas globais produzem boas brigas ainda. Só Hollywood mesmo. Na porta da sala, hesitei. Vou ou não vou? Me meto ou fico de fora? Por coincidência, no mesmo dia ou na véspera tínhamos falado a respeito desse tema e eu, do alto da minha sabedoria e má-vontade em me meter em coisas alheias, decretara:

- Em briga de marido e mulher, vizinho não mete a colher.

E agora, por uma dessas coincidências que a vida nos apronta, lá estava eu, ouvindo e hesitando. Hesitação mais literária que prática, pois sequer um segundo fiquei parado à porta. Cruzei o gramado, atravessei a rua. Chegou um carro da companhia de segurança que patrulha os arredores. (Sim, é assim que é e mesmo assim...) O casal berrava um com o outro. Ela tentava sair, queria entrar no carro, ele não deixava. O garoto gritava. Esse guri nasceu ali, a gente acompanhou, como vizinhos, sua gestação, seu crescimento, sua integração com as cachorras (pelo menos isso eles têm de bom; tanto ele como ela, principalmente, gostam de cachorros, têm 4 cachorras; quem quer que goste de animais não é de todo mau). Agora é um garoto crescido, creio que tem já uns 6 ou 7 anos. Seus gritos, confesso, eram a pior parte da história. Foram eles que afetaram e perturbaram minha mulher, deixando-a nervosa e preocupada. O mesmo acontecia comigo. Criança gritando por socorro é uma coisa terrível. Mas não eram gritos de socorro, “me ajudem” ou equivalentes. Eram gritos diferentes: “Não faz isso”, “Não vai, fica aqui”, “Fica com ela, papai” e de todos o mais terrível: “A família fica.”

Qual família?

Pode haver família com coisas assim acontecendo?

As ofensas eram brutais. Besteira repassa-las pra cá, não vale a pena. A simples lembrança me incomoda, me constrange. Já tinham ocorrido agressões. Outra aconteceu à minha frente. Até então eu falava de fora da cerca – as cachorras me conhecem mas, naquele clima, elas estavam nervosas, excitadas e eu não seria besta de entrar ali – e pedia pra ele prender as cachorras. Coisa besta, bem sei, mas era o que eu tinha de melhor pra falar e tentar por um pouco de ordem. Inútil, não me ouviam. Com a agressão, tomei a decisão de chamar a polícia. Até porquê ela saíra cambaleante da sala e se estatelara no gramado, onde estava imóvel. Vá lá saber se não estava ferida. Se iriam gostar ou não estava pouco ligando. Comecei a ficar com medo, também, de acontecer alguma tragédia. peguei o celular no bolso e liguei 190 (podia ser naine uan uan, né?). Um policial me atendeu. Expliquei o que ocorria. Perguntou se era eu que brigava. Cruzes! Eu não, tá louco? São os vizinhos.

- Desculpe, senhor, mas não podemos fazer nada, não podemos mandar uma viatura.

- Mas ... mas como? Como não podem?

- Não podemos, é uma altercação e nada aconteceu...

- Ah, tá bom, então eu primeiro espero alguém matar alguém e aí chamo vocês ou já chamo a funerária?

À medida que envelheço vou perdendo o pouco de verniz civilizatório e paciência que adquiri com o tempo. Adquiri-os com o tempo, perco-os para o tempo.

- Desculpe, senhor, é que nesses casos, toda vez que a viatura chega, a mulher diz que nada aconteceu, tá tudo bem, ninguém precisava chamar a polícia...

- ... ...

- Então, por isso, a gente não manda viatura.

- É, tá certo, não dá pra dizer que não está certo.


Descrevi a cena que presenciava, ela ainda no chão.

- Mas se o senhor me der o endereço, eu vou ver. Se tiver uma viatura próxima eu mando aí.

Dei-lhe o endereço.

- O senhor tá falando de telefone celular? Pode ligar de um fixo pra cair na sua região?

- Sim, mas por que?

- É que sua ligação caiu em Ibiúna.

- Putz... Ibiúna?

- É, com celular acontece isso às vezes.

- Tá bom, então. Vou ligar de novo. E obrigado de qualquer forma.

Talvez por terem presenciado e, com certeza, ouvido minha conversa com o policial, e também pela presença de outras pessoas no portão, o casal deu uma diminuída nas agressões. Ela levantou-se sozinha e ele deixou-a entrar no carro com o garoto. O garoto gritava, era o único agora que gritava, que não queria ir, que queria ficar, que a família devia ficar. Mesmo com o carro fechado dava para ouvi-lo bem. Ela tentou sair e bateu no portão que abre por controle remoto. Tentou de novo e bateu de novo. Agora era ele que gritava. Aquilo tudo já me irritara muito. Lamento, mas minha paciência com a ignorância e a estupidez é muito pequena. Já estava vendo a hora em que eu mesmo iria dar um jeito de pôr a droga do portão abaixo pra ela sair e ir embora. Finalmente, ela esperou o maledeto portão abrir por inteiro, saiu, acelerou demais, as rodas giraram em falso, jogou pedras e pedrinhas pra todo lado e foi embora. Eu e o segurança viramos as costas e nos afastamos. Nada tínhamos a falar com ele ou com ela ou com quem quer que fosse. Diante disso, ouvimo-lo fechar o portão, chamar as cachorras e entrar. Ufa.

Na noite seguinte os dois carros estavam na garagem, o casal estava de novo na casa.

A família estava junta, como o guri queria. E assim continuam. Pelo menos até o próximo arranca-rabo. Como meu saco pra isso já estourou, não vou me preocupar da próxima vez. Vou chamar a polícia do telefone da sala mesmo. Já aprendi como proceder com esse tipo de gente. Gente fina, gente de posses, gente “de bem.”

Ah, me poupem.


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Um comentário:

Anônimo disse...

Coisa triste mesmo, fico com dó da criança também. E isso acontece muito, em todas as classes sociais.