Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo
A armadilha e o mito
Quando se pensa que, pior do que
com Lula, pode ser sem ele, tem-se
o tamanho da arapuca a enredar o país
O Brasil está enredado numa armadilha. Essa armadilha se chama Luiz Inácio Lula da Silva. Um governo apanhado com a mão na massa* como nesse episódio do dossiê contra seus adversários teria necessariamente seu chefe submetido a processo de impeachment em países onde vigore um mínimo de ordem constitucional e de respeito pela lei penal. Foi o que ocorreu com Richard Nixon nos Estados Unidos. Foi o que ocorreu com Fernando Collor no Brasil. É o que não ocorrerá com Luiz Inácio Lula da Silva.
Lula tem um invencível escudo a protegê-lo: a popularidade. Não se fazem processos contra presidentes no vazio político. Tanto Collor quanto Nixon só foram destituídos depois que as escoras políticas que os sustentavam, a popularidade em primeiro lugar, desmoronaram. Lula continua contando com ambiente político favorável. Freqüentemente se diz que a oposição errou ao não ter avançado um processo de impeachment lá atrás, no ponto alto do escândalo do mensalão. A oposição não errou. Não se atira com arma de tal calibre contra um presidente que tem a escora do povo, sob pena de fazer um mártir que, fora do governo, teria o poder de infernizar o país mais do que dentro. Eis a armadilha em que o Brasil está enredado: Lula, por ação ou por omissão, pode continuar a cometer seus desmandos, que o país está impedido de puni-lo.
Tem-se atribuído a popularidade de Lula a razões que vão das benesses do Bolsa Família à desinformação da maioria da população. É mais que isso. Lula não é um político. Não é nem mesmo uma pessoa. É um mito. É o retirante nordestino e operário metalúrgico sem um dedo que virou presidente, discursa na ONU e passeia de carruagem com a rainha da Inglaterra. Vá se derrotar um mito! Vá se querer destituir Hércules depois de ele ter cumprido os doze trabalhos! Vá se desafiar Teseu depois de ele ter derrotado o Minotauro!
Os que implicam com ele dizem que Lula deveria ter aproveitado o longo tempo ocioso que teve entre o abandono do torno mecânico e a posse na Presidência para estudar. Santa ingenuidade. Lula sabia que, se assim fizesse, estaria assacando contra o mito. Um Lula com diploma de advogado, falando inglês ou mesmo, mais singelamente, sabendo concordar o sujeito com o verbo, em português, não valeria metade do Lula que fala errado e tem como maior requinte intelectual as metáforas com o futebol. Seria mais um, como Juscelino ou Brizola, que começou de baixo e virou doutor. A construção do mito exigia a distância dos livros e o sacrifício da concordância verbal.
Lula foi igualmente sábio ao desprezar, depois de uma malsucedida candidatura ao governo de São Paulo e uma obscura passagem pela Câmara dos Deputados, qualquer cargo que não fosse a Presidência. A construção do mito também exigia um salto. Tinha de sugerir o movimento, vertiginoso como o de um foguete, irreal como o do sapo que vira príncipe, da condição de retirante à glória da Presidência. Degraus no meio do caminho amorteceriam a surpresa, para não falar no desgaste que os inevitáveis aborrecimentos em cargos menores poderiam trazer.
Mitos também morrem, é verdade. Mas, no caso do mito Lula, não há sinal do mínimo desgaste. Pelo contrário, sua posição nas pesquisas, num quadro de quase permanente estado de crise no governo, indica que está forte como nunca. Há quem especule com a hipótese de vir a querer um terceiro mandato, por meio de uma reforma constitucional que, à Chávez, revogue o limite de dois mandatos consecutivos. Talvez seja exagero. Mas, se tiver paciência para esperar quatro anos fora do poder, quem diz que não ressurgirá, vigoroso, aos 69 anos, na eleição de 2014? E que, vitorioso, parta para a reeleição em 2018, aos 73? O Brasil é culpado pela criação do mito. Não fossem suas mazelas, a começar pela pobreza e pela desigualdade, ele não encontraria terreno propício para prosperar. Agora, vê-se embrulhado na armadilha que o mito continha.
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Suponhamos, contra todas as evidências, que Lula não seja eleitoralmente tão forte. Suponhamos, contra o que indicam as passadas experiências, que desta vez o escândalo o engolfe, e que venha a perder a eleição. Ainda assim, o mito será forte o suficiente para fazer nascer um líder da oposição capaz de empalidecer o desempenho de Carlos Lacerda nesse papel. Imagine-se o que pode aprontar Lula, à frente de sua formidável equipe de sabotadores e caçadores de dossiês, contra o ocupante do Planalto que tiver a audácia de derrotá-lo. Imagine-se seu poder de incendiar o país, uma vez restituído ao posto de maestro da CUT e do MST. Vale a pena ver Lula derrotado? Quando se chega a cogitar que, pior do que com ele, pode ser sem ele no poder, aí se tem a idéia do tamanho da arapuca em que o país está enredado.
* "Massa", por especial cortesia às autoridades e respeito às donzelas, vai em lugar da palavra antigamente chamada de "palavra de Cambronne", hoje mais identificável como "palavra de Paulo Betti".
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Um comentário:
O Pompeo arrasou nessa análise, que nos revela algo muito assustador. Mas estou confiante no segundo turno. :)
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