Um Olhar Crônico sobre os dias de hoje e alguns de ontem. Um Olhar Crônico sobre a vida nas cidades, a vida na megalópole, a vida na roça, quando é dura, e no campo, quando é lírica. Textos, Idéias & Coisas diversas, aquelas que passam pela cabeça e a gente acaba registrando, sabe-se lá pra que ou mesmo porquê.
terça-feira, dezembro 27, 2005
Entrando na Véspera de Natal
Quase meia-noite. Quando penso que vou pegar no sono ou deixar que ele me pegue, as cachorras – Panda e Titica – começam a latir. Na volta do silêncio, presto atenção, mas só ouço os ruídos da noite. Alguns já conheço, outros nem desconfio o que sejam. Nesse silêncio relativo, volto a escutar o barulho de água caindo. Curiosamente, ao contrário do que normalmente acontece, esse barulho me incomoda um pouco. Muito estranho, inda mais à noite, quando mais gosto do barulho da chuva e do frescor que vem com ela nas noites de verão.
As cachorras tornam a latir, levanto e vou lá fora dar uma olhada. Foi a conta de sair e identificar a razão para os latidos: no Miro, nosso vizinho ao norte, chegou a turma que vai pegar os frangos na granja nova, próxima da divisa. Esse trabalho é feito à noite, termina só com o sol já nascido e alto. Os frangos são colocados em caixas plásticas, acondicionadas em um ou dois caminhões. A turma – cerca de vinte pessoas – chega num ônibus e costuma ser bastante barulhenta. Essa é uma das coisas que não gosto muito numa granja de frangos. A barulheira incomoda a Panda e a Titica, e elas, por sua vez, incomodam a nós. E “nós” acaba me incomodando, o que me leva pra noite fresca, estrelada, com um ventinho daqueles que pedem por um agasalho e... Epa! Dou-me conta que céu estrelado e barulho de chuva não combinam. Tem algo errado. Aguço os ouvidos (aguço?) e lá está o barulho... Vem da direção da caixa-d’água... não, não vem da caixa... ai ai ai... vem do curral. Calçado com o chinelo de ficar dentro de casa, calção, lanterna e camiseta, vou até perto do curral, o que já é suficiente para identificar o estrago: o bebedouro está transbordando, as vacas devem ter quebrado a bóia e a água sai da caixa grande sem parar, transbordando no bebedouro sem parar, enlameando o lamaçal, digo, o curral pequeno, ainda mais.
Raios! E pensar que alguns amigos estão no conforto de seus apartamentos no Guarujá, num prédio onde tudo funciona, onde para o que não funciona basta chamar o zelador pelo interfone. Ou chamar qualquer outro profissional pelo telefone. Simples e limpo, embora caro. Entretanto, aqui na roça as vacas acham de quebrar a bóia na noite de sexta, antevéspera do Natal. Convenientemente tarde para não ter ninguém da lida pra cuidar disso. Convenientemente cedo para encontrar o pobre proprietário a tempo de cuidar disso antes de dormir, apesar do cansaço do longo dia. Um bom zelador cairia como uma luva agora.
E essa bota que não entra! Irritado, mas só levemente, tentei calçar a 7 léguas na marra e sem meia. Sem chance. Um pouco mais irritado passei a mão na meia mais próxima, que uso com o tênis. É grossa, sem chance. Agora um pouco mais irritado ainda, vou ao quarto, pé ante pé, tentando não fazer barulho, procurar por uma meia fina. Tenho sorte, encontro logo e pendurada num cabide de parede. Meno male. Calço-a e meus pés deslizam pelas botas confortavelmente. Botas metidas a besta: exigem meia fina pra depois afundar nos lamaçais da vida. Ou nos barreiros da vida, já que lamaçais parecem ter virado exclusividade da classe política tupiniquim, e neles parece não haver 7 léguas que proteja do contato com a lama, ao contrário daqui. O frescor da noite pede uma camisa sobre a camiseta. Como a irritação não foi embora, o bom senso não voltou e, portanto, agarro a camisa mais próxima, justamente a que usei de dia, já suja, abandonada perto das meias que usei com o tênis durante a viagem. E é assim, chique no úrtimo, que vou pro curral.
Atravesso o lamaçal, ops, o curral e olho pro bebedouro onde enxergo o óbvio: a bóia está quebrada. Não me conformo com minha burrice e imprevidência: claro que eu deveria já ter comigo a bóia de reserva. Mas qual! Volto a atravessar o barro, cheio de materiais orgânicos sólidos e líquidos. No decorrer desse processo vou me acalmando. Já não era sem tempo. Agora estou preocupado, pensando se terei uma bóia de reserva. Indoutrodia eu comprei uma, lembro bem, mas essa quebrada parece nova e me pergunto se já não será a reserva. Só falta...
Volto pra casa, sujo de barro a entrada da cozinha, pego as chaves, procuro pela do barracão. As chaves não estão mais marcadas. Vou pro barracão com um monte delas na mão e começo a testar. Na quinta ou sexta tentativa consigo abrir o cadeado, entro e procuro pela bóia. Num canto, noutro canto, nas prateleiras... Achei! Tenho uma bóia de res... Ei! Ah, essa não, essa é a bóia velha que foi trocada e ninguém jogou fora. Deve ter sido guardada como um souvenir ou um amuleto. E agora? Ah... Uau! A bóia backup, devidamente escondida num saco plástico.
Com o backup de bóia numa mão e a inseparável lanterna na outra, volto pro curral, atravesso o barro que de vez em quando sobrepassa a bota. Delícia,era tudo que eu queria. Instalo a nova bóia no bebedouro, a água pára de jorrar e eu volto para casa.
Na varanda, tiro as botas enlameadas, tiro a meia já enlameada e vou direto pro chuveiro. Uma ducha rápida me devolve ao mundo dos limpos. Já seco, volto para a cama. Falta pouco para terminar a primeira hora da Véspera de Natal. Um dia que foi... Hummmm... Isso é assunto para outro texto. Fui, pois os braços de Morfeu me chamam.
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Uma coisa eu garanto: seus amigos do Guarujá jamais terão uma história dessas prá contar. E não vão começar o dia de Natal olhando para a Estrela, a Titica e outros companheiros (uh, escapou) queridos.
Postar um comentário