Visões dumas andanças – VI
Pipoco à beira-mar
Antes de mais nada é importante notar que o pipoco acima lê-se como pipôco. Talvez, em sua origem, tenha a ver com o verbo pipocar. Deve ter, pois trata-se de um ruído que, pensando bem, não difere muito do ruído dum grão de milho-pipoca batendo no metal de uma panela. Esse pipoco, porém, nada tem a ver com pipoca, mas tudo tem a ver com bala, bala de revólver. Bala de pistola. Coisa aí de sete meia cinco, ponto quarenta e cinco e outras menos votadas. É um som característico. É seco. É forte, sem ser retumbante. Costuma provocar um certo frio na barriga. Mas pode ir muito além do simples e simpático frio na barriga. Muito além.
O navio tem bandeira cipriota, é um Panamax com capacidade para 75.000 toneladas de carga. Classe Panamax porque foi projetado e construído de forma a poder cruzar o Canal do Panamá, encurtando a viagem do ocidente para o oriente. O diabo disso é que, ao ver um mapa, a gente percebe que a viagem se dá do oriente para o ocidente. Isto porque, digamos, estamos indo por trás e não pela frente. Essa é, claro, outra bobagem, igual a dizer que o norte está em cima e o sul embaixo. Lembro-me de, neo-adolescente, ter discutido isto na aula de geografia. Fiquei muito orgulhoso da minha argumentação, pois desenvolvi-a sozinho, sem ter lido nada a respeito. Mas não entendi porque a professora ao invés de me fazer os elogios esperados, acabou com minha explanação – não solicitada, é bom esclarecer – e ainda me recomendou não ficar falando muito naquilo ali pela escola. “Naquilo” era a interpretação que eu dera a essa coisa de cima e baixo: que isso interessava ao Primeiro Mundo, que ficava em cima, e mantinha o Terceiro Mundo, que ficava embaixo, desse jeito mesmo, embaixo, por baixo. Lembro que não fiz uma colocação assim, já bem politizada, mas passei perto e, de qualquer forma, o tom geral era esse mesmo. Abaixo a imaginação, viva a repressão. Essa palavra de ordem ainda daria as cartas por muitos anos depois disso. Anos depois, no meio dos setenta, um outro professor de geografia, português, o Pardal, ao ouvir essa tese já mais elaborada, tingida com as cores da minha crença militante, elogiou-a um bocado. Fiquei vermelho, mais do que já era. Mas da primeira vez ainda era 66, a imaginação no poder de 68 sequer era sonhada, e os anos de chumbo ainda estavam por vir.
De volta ao Panamax ancorado no terminal graneleiro. O cheiro que vem da cozinha é inconfundível: curry. É o mesmo cheiro em tudo quanto foi navio em que entrei. Acho que existe uma máfia dos cozinheiros de alto-mar, são todos malaios ou vizinhos, e todos usam e abusam do curry. Talvez haja uma explicação científica para isto, talvez seja algo relacionado a manter calmos os apetites sexuais, quem sabe. Afinal, há que conter esses apetites numa viagem de 30 a 40 dias... As tripulações, geralmente, parecem que são formadas só por filipinos. E também malaios. Essa não foge à regra, ou melhor, foge um pouco. Há alguns poloneses entre os marinheiros. O inglês macarrônico deles é fácil, não requer prática nem tampouco habilidade. O problema é quando começam a falar numa mistura estranha de sons que, acredito, sejam suas línguas nativas. Fica pior quando, depois de uma sucessão de pequenos gritos em stacatto, um ou os dois conversadores olham pra gente. Sensação chata. Falem mal mas falem de mim, desde que eu saiba. Os oficiais do navio são russos, o comandante é ucraniano. É um arco-íris de nacionalidades, como em todo cargueiro que conheci.
Estão recebendo quase 70.000 toneladas de farelo de soja. Muita coisa... O destino desse farelo é a França. Não duvido nem um pouco que uma parte desse farelo volte pra cá, não demora muito, transformado em brie ou camembert. Pelo andar da carruagem, porém, dificilmente a gente irá se reencontrar. Uma pena.
O Sol deu as caras. Parte do céu está azulada, com uma ou outra nuvem branca passeando. Estamos gravando o carregamento do alto, da ponte de comando, e Nikolai, o segundo-oficial, nos vigia, digo, nos acompanha e faz as honras da casa. Não é de muita conversa, nem me deu trela quando tentei conversar sobre o navio. Talvez um pouco chateado por ser fechado e não ter me dado trela, nos convida a subir ao deck superior, na verdade o teto, onde ficam as antenas. Lá de cima ganhamos mais uns metros, a vista fica melhor.
Um ruído seco vem da favelinha plantada à beira-mar do Guarujá, logo ali embaixo, quebrando o silêncio gostoso numa pausa do carregamento. Um ruído também em staccato.
- Ih, isso foi pipoco aí na favela.
Quem disse isso foi nosso guia, que trabalha na empresa e mora ali há muitos anos, na verdade, toda sua vida. Vamos todos pra amurada de boreste e olhamos pra baixo, já procurando por alguma cena dramática ou, pelo menos, gente correndo, gritando, alguma coisa assim.
Nada. A favelinha está calma. Um barquinho com dois rapazes e uma rede vem chegando lentamente, deslizando com preguiça sobre a água calma entre o píer e os barracos sustentados por palafitas já por cima da água.
E, dando o tom geral de tranqüilidade,
um garoto está molhando,
refrescando seu cavalo dentro d’água, aproveitando a maré baixa.
O cavalo está tranqüilo, sossegado,
curtindo as mancheias d’água caindo em seu dorso e no pescoço.
Depois de cada uma, o garoto passa a mão, como se esfregasse.
Isso não é banho, é carinho.
Ninguém olha pra cima, onde um videomaker tupiniquim, um marinheiro russo e um funcionário portuário também tupiniquim olham pra baixo e procuram por alguma coisa fora da rotina.
Nikolai se afasta e volta pra cabine. Assobio e tento chamar a atenção do garoto.
Em vão.
O barulho distante da descarga do farelo ou a distância, simplesmente, pois a altura da ponte de comando é bem razoável, abafa meu assobio. Nosso guia me olha e reprime:
- Não chama a atenção deles, não, se não vai é sobrar alguma bala pra gente aqui!
Previdente, dá o aviso e se afasta. Eu continuo olhando o garoto. O barquinho encosta, os dois rapazes descem com alguns peixes. Satisfeitos, o garoto e o cavalo começam a deixar a água. Antes ainda de chegar ao seco, o garoto agilmente – que inveja – monta o cavalo, e só com uma cordinha na mão vai tranqüilamente cruzando a viela da favela, ambos molhados e já secando ao sol forte de um dia de outono.
Ninguém ligou pro pipoco, só a gente, os estrangeiros. A favelinha continua em paz.
Carapicuíba, 12 de maio de 2004.
Um comentário:
"Ninguém ligou pro pipoco, só a gente, os estrangeiros."
Que triste isso, né?
A gente se acostuma com as piores coisas.
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