sexta-feira, outubro 07, 2005

O Velho Chico

Com todo o teretetê criado pela greve de fome do bispo, o Velho Chico e a história mal-cheirosa da transposição de suas águas para o Nordeste Setentrional veio à tona, veio para as primeiras páginas dos jornais.

Esse incrível governo, sobre o qual ninguém tem ética bastante para falar, já que seu chefe é o mais ético de todos os brasileiros, foi finalmente brecado. Uma liminar de uma juíza federal cassou licença provisória do Ibama, alicerçado na qual o governo já estava prestes a meter no chão a primeira escavadeira, começando as obras. Acho que o Velho Chico sobreviverá.

Essa crônica de viagem que segue talvez já tenha sido lida por alguns. Nesse caso, peço desculpas. Mas para a maioria ela é inédita.



Visões dumas andanças – IX

Pelas cercanias do Velho Chico


Essa viagem já tem alguns anos. Poucos, em números, muitos, todavia, para minha percepção e vontade. Pudesse, estaria sempre por lá, andando, olhando, sentindo e, talvez, quem sabe, plantando uvas e melões e criando vacas e cabras no meio da caatinga. Porquê, pode não parecer, mas a caatinga fascina.


Petrolina fica em Pernambuco, na margem esquerda do São Francisco. Juazeiro fica em frente, na Bahia. A separa-las, o rio. A uni-las, uma ponte. Embora vizinhas siamesas, são diferentes. E as pessoas são, também, diferentes. O rio separa e une, faz uma história comum, gera o progresso e traz apreensões. Se nem sempre o futuro é muito claro, agora está muito barrento, como as águas do Velho Chico na cheia. A gente olha e nada enxerga. Esse futuro sem nitidez já vinha de longe, com as barragens, com o assoreamento, com o desmatamento, com a extinção de tantos rios sertanejos no planalto baiano e até no mineiro. Com os planos e o próximo início das obras do canal que vai fazer a transposição das águas do São Francisco para os sertões de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí, o que era pouco nítido ficou turvo de vez. O futuro, não se enxerga.

Na estrada, voltando pra Petrolina, nossa guia, uma agrônoma paulistana radicada ali desde que se formou, o que já tem algum tempo, avisou:

- Se preparem, porque a gente vai atravessar pra Juazeiro e almoçar na Dona Maria. E vocês vão ficar maravilhados.

Pela manhã tínhamos rodado um trecho próximo de Petrolina, gravando numa pequena fazenda de uvas pertinho da barragem de Sobradinho. Logo cedo, ao lado mesmo da barragem, subimos num morrote, um daqueles muitos que povoam a caatinga, e lá de cima, entre xique-xiques e mandacarus com espinhos respeitáveis, tivemos uma bela visão da região toda. Aqui e ali o verde intenso dos parreirais irrigados quebrava o acinzentado mirrado da caatinga. Aqui e ali, também, algumas manchas de terra vazia, branca, nada por cima, pura areia. Marcas perigosas que aumentam em número e tamanho. Se estendendo pro horizonte, no rumo do oeste e sudoeste, o grande rio represado. Daquele ponto até o seu início, a represa tem mais de 450 km de extensão. Cobre uma área de 4 mil quilômetros quadrados. Não sei se ainda é o maior reservatório do mundo ou se é o de Três Gargantas, na China. Não importa, parece e é muito grande, e é muita água. Mas, também não é, não. É água pouca e cada vez menos água. Os folhetos turísticos, os sites na internet, os agentes de viagem, todos prometem esportes aquáticos e as emoções da pesca do surubim. Tá certo, os esportes aquáticos são praticados mesmo. Já a pesca do surubim...

Cruzamos a ponte. É bonitona, impressiona de longe. E estamos em Juazeiro. Não sei se o restaurante da Dona Maria ainda existe. O Brasil muda muito depressa, o mundo também e o pior é que as coisas já não mudam como costumavam mudar (obrigado, Camões). Contudo, espero que ele continue como era quando o conheci: um puxado sobre a garagem na frente de uma casa simples num bairro de Juazeiro. Uma mesa comprida, algumas menores, bancos de madeira. A comida é a que Dona Maria faz. E serve. Tal como nos melhores, mais finos e reservados restaurantes de grandes chefs, na França, Espanha e Itália, entre outros lugares menos votados. A comida, geralmente, é surubim. Mas não é o mesmo surubim que conhecemos aqui no Sul ou na Amazônia. É o surubim do São Francisco. Parece igual, mas é diferente. A carne é clara, menos gorda que a dos outros surubins, um quase nada de gordura. Carne bonita, firme, gostosa, realmente saborosa. Carne de peixe de rio, que nada em busca da piabinha de todo dia. A altura do filé é generosa o bastante pra gente enfiar os dentes com vontade, sentir a textura com a boca preenchida como se deve. Desculpem, não é muito fino mas foi assim que comecei a comer em criança, é assim que a gente come no sertão, é assim que dá prazer comer.

O calor do meio do dia é brabo em Juazeiro. Lá fora o ar tremelica todo em toda direção. Lá dentro, sob o puxado, tá quente, também. Mas dá pra agüentar. Um ventilador ajuda. O refrigerante gelado colabora. A cervejinha também. O jeito aqui é quebrar a regra da cerveja só à noite. Mas pouco, nada de quebrar muito. E lá vem feijão-de-corda, vem arroz e vem pirão, vem moqueca de surubim, vem surubim grelhado, vem surubim frito, de todos o meu preferido. Tem pimenta comprida, compridinha e redondinha. Pimenta também pra todo gosto. Nada mais simples, nada mais brasileiro, nada mais gostoso.

Dona Maria vem à nossa mesa. Cumprimenta, pergunta da comida. Com a boca cheia digo que está maravilhosa. Rapaz educado, não paro de comer para dar-lhe atenção. Fazer o contrário, para uma cozinheira, seria prova de má educação. E um indício de que a comida não está boa. Essa racionalização toda nem passou por minha cabeça naquele momento. Impossível. Meu cérebro deslocara-se em peso para o conjunto mãos e boca, e ocupado com o intenso tráfego de garfadas de postas de surubim no trajeto prato/boca, definitivamente não tinha como ocupar-se com respostas e salamaleques. Felizmente, os ouvidos estavam livres, operando em outra sinfonia, e assim pude ouvir e aprender algumas coisas.

A horas tantas, e já sabedor que surubim no Velho Chico hoje era coisa rara, consegui uma pausa no trânsito de postas e perguntei pra Dona Maria se os surubins vinham dali mesmo, da barragem, ou de rio abaixo.

- Nem de um lugar e nem de outro, moço. Surubim pra mim, hoje, vem lá do Piauí, do Parnaíba. A gente anuncia o surubim do São Francisco, mas é o surubim do Parnaíba.

Boca ocupada, meio cheia, disparo a pergunta:

- Mas por que, o que houve?

- Olhe, a barragem foi um problema, depois dela começou a diminuir o número de peixes. E tem a pesca, também, né. É muito povo pescando e mandando peixe pra fora. E por aí afora, rio acima, as pessoas dizem que tem rio secando, a água diminui, a gente não vê mais mata na beira do rio. E não é só o número de peixes, não. É o tamanho, também. Diminuiu tudo, só tem peixinho pequeno, dá até dó. Nem vale a pena fazer a maioria, só frito mesmo.

Felizmente essa conversa já aconteceu no final do almoço. Felizmente, também, meus espaços disponíveis estavam ocupados e não sobrou nadinha pra algum sentimento de culpa. Xô! Minha digestão não foi estragada, tampouco. Tenho, por hábito, sempre dar um desconto em todas as histórias e estórias que ouço em minhas andanças. Desconto variável, pode ser de 10%, pode chegar a 90%. Naquela hora, dei um desconto duns 30% pra gravidade do causo. A passagem do tempo tem me mostrado o quão tolo fui: ao invés de desconto, eu devia mesmo era ter aumentado a gravidade da história ouvida. Até porquê o Parnaíba já começa a ficar super-explorado, também. A sobremesa eu comi durante o prato principal mesmo. E foi simples: apenas um pouco mais do que já estava comendo. Até parece que eu iria trocar mais uma posta de surubim do Parnaíba por um doce qualquer! E com isso, satisfeitos e felizes, deixamos o puxado e enfrentamos o calorão brabo da tarde de Juazeiro, em busca de novos parreirais e plantações de melão e manga.

Em outras viagens andei pelas regiões do Médio e Alto-São Francisco, no sertão baiano de Barreiras, Mimoso – hoje Luiz Eduardo – e Guanambi. E nos sertões mineiros, desde Januária e Porteirinha, passando por Bocaiúva, até os espigões divisores das águas do São Francisco com as águas do Tocantins e do Paranaíba. Pedaços dos grandes sertões roseanos. Por toda parte vi as mesmas cenas: o cerrado substituído pelas lavouras e pelos pastos. Coisa bonita de se ver, sem dúvida. Mas exagerado demais da conta. As veredas espremidas. E muito pivô central molhando muita terra. Do alto, nos sobrevôos, a visão mais clara: os arredondados escuros das áreas de pivôs, formando grandes colares de contas e o cinza-cerrado cada vez menor. Em dois lugares, sem planejamento, apenas de passagem, cruzamos dois cursos d’água secos. Ex-rios. Como eles, muitos outros. Muita gente diz que é culpa dos pivôs centrais e dos poços artesianos, que puxam toda a água e jogam-na sobre o feijão, sobre a cenoura, sobre a soja, sobre o café. Não sei. Não me aprofundei na questão, fiquei só na superfície. E na superfície, tudo que a gente vê é o leito seco de um córrego.

Desde então, exceto por muitos discursos oficiais, nada foi feito em prol do Velho Chico, suas águas e seus surubins. Pena que discurso oficial nada mais produz além de sono ou dor de cabeça. Pena maior é que, dessa vez, os discursos estão indo além das palavras: estão conduzindo para as obras de transposição das águas do São Francisco pros sertões.

Que história estará contando a Dona Maria hoje?



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Um comentário:

Anônimo disse...

Que loucura isso! As vezes, egoísticamente me consolo de não ser mais tão jovem, não vou viver pra ver como vai ficar isso aqui daqui a uns 50 anos (e se estiver vivo nao vou entender nada mesmo!).
Quanto a transposição do velho Chico pra mim não tem nem discusão, argumento, nada. Ele tem que ficar como a natureza o fez, tudo que for fora disso está errado e sou contra.