sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Impressões de viagem – IV – Reflexões do mormaço



Tarde de domingo em Sapezal. Em qualquer lugar domingo tem cara de domingo. Talvez não seja assim no mundo islâmico, mas como não conheço nenhum país islâmico, sigo acreditando que o domingo tem uma cara própria, toda dele, inconfundível. Aqui também é assim, não há diferença. Pasmaceira.

A chuva negaceia, ameaça chegar, finge que vem, mas não chega. Para manter a ilusão, manda para nós alguns pingos grossos e esparsos, que caem e mancham o asfalto. O ar continua parado, as manchas úmidas desaparecem assim que se formam e o mormaço domina.

Mormaço... Palavra chata e feia, uma palavra em que a forma e o som correspondem plenamente ao conteúdo, ao significado. O mormaço amolece, mas não relaxa, pelo contrário, tensiona, irrita, coisa mais contraditória essa, um amolecimento tenso.

Seria melhor estar trabalhando agora, fazendo qualquer coisa, menos ficar parado, fazendo nada, vendo se o tempo passa, mas o bandido do tempo, quando a gente olha para ele e anseia por sua passagem, queda-se estático, imóvel, inamovível. O tempo, quando quer, sabe ser chato.

A opção para essa tarde besta era mergulhar nas águas gostosas do Papagaio, mas o trabalho da manhã entrou pela hora do almoço, a hora do almoço entrou pela tarde, a chuva ameaçou, ameaçou, ameaçou, e tanto fez sem nada fazer que acabou por nos deixar parados e prostrados no hotel.

As águas do Papagaio são frias e cristalinas, águas do cerrado, que cortam a chapada antiga desde tempos imemoriais, correndo sobre um planalto que é testemunha do começo do mundo.

Caminhando sobre a areia e os seixos, os pés são visíveis. Se ficamos parados, os peixes vêm e vão ao nosso redor. Pequenas piabinhas, ou lambaris, para quem é do sudeste, mais atrevidas, chegam a beliscar as pernas. Enxergar os pés depois de tanta chuva como tivemos nos últimos dias é um sinal muito bom. Significa agricultura bem feita e solo conservado, sem escorrer para os riachos e para os rios.

Em alguns poços e remansos, à sombra de árvores com frutinhos desconhecidos, grandes pacus nadam pachorrentos. Dizem que era nesses lugares que os parecis, habitantes originais de todo esse cerrado, pescavam-nos com arco e flecha. Esse tempo já passou. Os pacus de hoje não são tão grandes como os pacus de outrora, e os parecis de hoje talvez já não saibam fazer nada com arco e flecha, preferem vara, linha e anzol, de preferência a bordo de um barco com possante motor de popa. Periodicamente eles vêm à cidade, em comitiva. Mais gasolina, é o pedido sempre repetido.

Dez reais é preço do pedágio para usar a estrada que corta a reserva e encurta a distância para Cuiabá em mais de duzentos quilômetros. Dez reais em cada sentido. A estrada tem perto de cento e quarenta quilômetros, toda em terra, mas por pouco tempo, pois em questão de meses as duas pontas estarão asfaltadas. O miolo, porém, em toda a extensão que corta a reserva permanecerá em terra, com pouco mais de noventa quilômetros. Essa reserva é imensa, a aldeia fica perdida nessa imensidão. Algumas pessoas disseram-me que o pedágio agora é flexível, pode-se pagar com e sem recibo. Com recibo é “dez real”, e sem recibo é só “cinco real”, ou “cincão”. Uma das pessoas disse-me, também, que preferir pagar com recibo tem como contrapartida, às vezes, caras muito feias e até alguma argumentação da bobagem que é gastar mais do que o necessário.

Não ficarei espantado se um dos próximos presidentes dessa república sair do meio dos parecis. Afinal, já temos um indígena na Bolívia, por sinal não muito distante daqui.

Enquanto tão edificantes pensamentos ocupam meu cérebro semi-entorpecido, o tempo se aproveita da minha distração e passa, finalmente. A tarde avança e o tempo, agora o outro, muda com a chegada da chuva. Quem sabe essa será uma noite boa para dormir? Aleluia!

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