domingo, fevereiro 05, 2006

Impressões de Viagem – I – Sob a luz do cerrado


A primeira luz do dia no cerrado me ilude. Distante, a meio caminho do horizonte, as águas de um grande lago, com jeito de mar, brilham sob a luz difusa e suave da manhã que nasce. Tal como veio, a ilusão depressa se desfaz, e o que vislumbrei como água é o manto compacto de neblina que cobre uma baixada, escondendo uma vereda e seus muitos buritis no meio do sertão.

No vasto cerrado, ilusão e realidade se confundem, se misturam, e no meio do dia, com o sol alto e causticante e sua luz dura e invasiva, a força brutal da paisagem empurra a gente de volta para a ilusão e o devaneio, ansiando por uma tarde de chuva miúda e fresca. Vã ilusão passageira, sem força para resistir e trazer conforto. Vence a realidade, e a gente mergulha de volta no calor e na poeira que gruda no corpo suado.

Mas não agora, nesse momento gostoso, onde o importante é gozar o restinho de madrugada às costas e admirar o nascimento do novo dia bem à frente. Ainda estou no fuso horário de São Paulo, com uma hora a menos. Por isso, e mais o gosto pelo amanhecer, sou o primeiro a ver a cara do novo dia. A casa-sede dessa fazenda imensa está fechada. Sento-me na varanda e fico quieto. A passarinhada toda já acordou e começa a sua lida diária, cantando, gritando, piando.

Diante de tanta vastidão e beleza, ainda mais colorida pelos tons cambiantes dessa luz, tudo que consigo é me repetir, bobamente, pensando em como é imenso e bonito esse sertão.

Mais alguns minutos e algumas centenas de pessoas começarão seu dia de trabalho. A colheita da soja está em sua primeira semana, parte das máquinas ainda está em revisão. Atrás das colheitadeiras já entram os tratores com as plantadeiras. O milho vai suceder a soja em parte da área. Outra parte será semeada com milheto, um capim que tem por finalidade manter o solo coberto e protegido até o plantio da próxima safra, em 8 ou 9 meses.

É difícil descrever o dia-a-dia numa fazenda como essa. Sua administração é muito mais difícil e complexa do que a da maioria dos mais de seis mil municípios brasileiros. Dezenas e dezenas de carretas circulam por aqui no auge da safra. O consumo de combustível é gigantesco, e a logística para manter os depósitos abastecidos requer trabalho e inteligência. A vila é uma cidade, embora muito diferente das cidades do resto do país. Ruas largas, bem conservadas e sinalizadas, casas boas, de vários tamanhos. Jardins, árvores, crianças brincando no meio das ruas, correndo atrás de bola, como bons brasileiros, ou empinando suas pipas, como tantas outras em todo o mundo.

Na área “industrial”, uma imensa bateria de 39 grandes silos metálicos domina a paisagem. Nas proximidades, galpões e armazéns, prédios administrativos, usina de força. Ao redor, soja e cerrado.

A sede está distante alguns quilômetros do complexo operacional, mas foi construída num local de onde se avista a vila e os silos. Ao seu redor permaneceu o cerrado, como um testemunho de como era tudo há 30 anos e como ficou depois que o homem entrou e transformou a paisagem. Ao contrário do que sinto em muitos outros lugares, aqui essa transformação não me entristece ou aborrece. Gosto dela. Isso tudo garante a boa sobrevivência de alguns milhares de pessoas. É um resultado positivo na luta entre o homem e o ambiente, o ambiente está mudado, mas não destruído.

Essa viagem foi diferente das anteriores em muitos pontos. Em parte porque voltei a muitos locais já conhecidos. Em parte porque conheci mais pessoas, algumas delas com histórias incríveis. Em parte porque o preço da soja está muito baixo. Apesar disso, porém, por onde quer que tenhamos andado as pessoas trabalhavam, as cidades continuavam crescendo. O ar que se respira é puro, livre da poluição do descrédito, da desilusão, da depressão. Pensando bem, talvez essa viagem não seja nada diferente das anteriores.


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