quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Impressões de viagem – III – Impressões e algumas histórias

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Emas em lavoura nova, novinha, de algodão, em Sapezal


Campo Novo do Parecis está no paralelo 14. Isso nada quer dizer, bem sei, mas como é uma informação que seus habitantes acharam interessante, reproduzo-a aqui, também a troco de nada. Nem serve pra encher lingüiça porque o texto está só começando.

Em Campo Novo, fico de converseio com o funcionário de uma empresa de comercialização de arroz e milho. O rapaz é de Nobres, município que vem crescendo aceleradamente, mais um como tantos outros. Na verdade, ele nasceu e sua família vive num pequeno vilarejo pertencente ao município, e bem distante da sede. Há cerca de três anos, pegou um dinheirinho de uma indenização trabalhista e comprou uns lotes de terra no vilarejo. Coisa pouca e barata, menos de mil reais cada lote. Comprou e deixou por lá, pedindo para o pai fazer uma cerquinha mambembe, só para dizer “isso aqui tem dono”. Menos de dois anos depois, surgiu o anúncio que no município vizinho seria construída uma usina de açúcar, agora já em construção. Foi o que bastou: cada terreninho pulou para quatro mil reais, assim, de repente, não mais que de repente. E os preços continuam sua escalada a ponto dele acreditar que quando a usina for inaugurada poderá vender cada um por uns dez mil reais, pelo menos. Já está se sentindo meio rico.

Um outro rapaz funcionário se aproxima, entra na conversa. Antes de ser transferido para cá, estava trabalhando em um município mais ao norte, já na área de floresta mesmo, onde a soja começa a tomar conta das pastagens abertas há anos e já degradadas. Esse é um processo interessante para todos, já que deixar a terra para voltar a ser floresta é inviável, tanto econômica como ecologicamente. Quando o vilarejo emancipou-se e virou município, o novo prefeito deu lotes para várias pessoas, sempre com o compromisso, registrado no papelório, de construir no terreno em menos de um ano ou dois, não recordo direito. O feliz proprietário comprou umas madeiras e alguns acessórios básicos e baratos, gastando em tudo seiscentos reais, e construiu uma pequena casinha no terreno. Pronta a construção, feita por ele mesmo e alguns amigos, ficou preocupado por vê-la solitária e sem uso. Calhou de encontrar com um amigo da sua cidade de origem procurando emprego, com mulher e filho a tiracolo. Ofereceu a pequena casa para o amigo morar, de graça mesmo, até ele se ajeitar. Dois meses depois o amigo procurou-o e perguntou se ele queria vender o lote. Querer não queria, mas também não tinha porque ficar com ele. Vendeu, por oitocentos reais. Surpreso, dias depois ficou sabendo que o amigo já vendera o terreno por dois mil reais. E agora, a mesma casinha, de madeira, mambembe, com alguns pequenos acréscimos, já está valendo por volta de dez mil reais. Tudo isso ocorreu nos últimos cinco anos.

Pode-se chamar a isso de especulação imobiliária. Pode-se chamar a isso de sinal de desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem especulação, e só há especulação onde há desenvolvimento, onde as pessoas acreditam que amanhã será melhor que hoje.

Dona Maria Aparecida, ou Dona Cida, faz um café bem... hummmmm... bom, um café bem meia-boca. Paciência. Mas é simpática, educada e atenciosa. Dona Cida é faxineira e cumpre com satisfação a tarefa fazer café no escritório de uma empresa que comercializa grãos em Rondônia. Só não aprendeu a pôr o mate na cuia e apertar direitinho, mas isso requer treino desde os tempos da mamadeira. Ganha por volta de um salário e meio e trabalha 6 horas por dia. Há dois anos, apenas, trabalhava, quando podia, ajudando o marido em bicos diversos, na maioria trabalhos pesados, carregando terra de poços, tijolos, entulhos. E nada ganhava, a bem dizer. Agora o marido trabalha e ganha quase dois salários numa outra empresa, em outro armazém. Trabalho braçal, basicamente, mas paciência, tal como ela é um trabalhador não-qualificado, semi-analfabeto ou analfabeto funcional. Com toda essa renda, melhoraram a casinha. Compraram geladeira, fogão e televisão. Vão comprar dvd player, pois as crianças gostam (e devem exigir; na seqüência, serão os novos clientes dos piratas de dvds). A grande e mais recente compra, a que mais felicidade trouxe para todos, foi a... antena parabólica.

Como há antenas parabólicas por esses sertões! Impressiona a quantidade e impressiona a dispersão, estão presentes em todas as casas e casebres, praticamente. A parabólica segue sendo o grande objeto de desejo. Depois dela, a moto, depois da moto o carrinho. Há muitos anos venho acompanhando essa evolução das parabólicas por toda parte. A família inteira passa batida pelo Jornal Nacional, até por causa do horário com uma ou duas horas a menos que Brasília e, todos juntos, do bebê de colo à avó que mora junto, assistem à novela das oito. Deve ser interessante observar como se comporta a família quando há cenas, digamos, mais picantes na tela. Ou quando é mulher com mulher e, mais recentemente, homem com homem. Estará a novela das oito influenciando a moral e os costumes sertanejos? (Um sorriso se planta em minha boca enquanto escrevo esse parágrafo, mas, sei lá, será mesmo caso de sorrir?) (E é nesse terreno meio pantanoso, meio confuso, que prosperam os pastores das inúmeras seitas nos inúmeros templos, pregando pela moral e pelos bons costumes.)

Na maioria dos municípios novos, os prefeitos foram inteligentes e bem intencionados, dando lotes ou vendendo-os a preços irrisórios, mas sempre com a condição de construir uma moradia ou loja rapidamente, nada de comprar e guardar para especular. Graças a essa medida, os núcleos urbanos são todos urbanizados de fato, não há buracos vazios, uma casa ou loja seguindo-se à outra. Com o crescimento e a expansão do núcleo urbano, é claro, começam a surgir lotes vazios. E preços cheios.

Muita gente veio do Paraná, do Rio Grande do Sul, de Minas, de São Paulo. E, curiosamente, boa parte das crianças desses migrantes não são rondonienses ou mato-grossenses. São paranaenses ou gaúchos ou paulistas, pelo simples motivo das mulheres voltarem para a casa dos pais para darem à luz. Logo depois, com 30 ou 40 dias de idade, a criança faz a sua primeira de muitas viagens de até três mil quilômetros e volta para a terra onde foi concebida e onde irá viver doravante.

Os migrantes a que me refiro são os formadores da classe media desse novo sertão. São produtores rurais, e proprietários ou empregados das empresas ligadas à soja, ou são comerciantes. Gente simples na totalidade, com quem pode-se conversar por muito tempo. Ou melhor, poderíamos conversar, pois o tempo é sempre curto e não sobra para conversas, por mais agradáveis que sejam. A soja e a natureza têm seus ritmos e tempos, e cabe aos homens adaptarem-se e trabalharem de acordo com eles. Não há prorrogação. Nos grandes centros urbanos têm-se uma imagem estereotipada dessas pessoas. E ruim, uma imagem muito ruim. Nada mais distante da realidade, mas depois de anos e anos de pregações negativas é muito difícil mudar o imaginário urbano a respeito. Fico sempre pensando que bom mesmo seria fazer os brasileiros conhecerem esse outro país que também é Brasil, mas nem parece.

Andando por essas regiões são muitas as histórias, nem todas felizes. Curiosamente, olho esse povo nas ruas e fazendas, olho os campos de soja que se perdem de vista, olho as florestas e cerrados remanescentes e sinto que há mais ligação disso tudo com a China que explode do outro lado do mundo do que propriamente com Brasília, por exemplo. Mas isso deve ser coisa da minha cabeça, avariada pelo calorão úmido. Onde já se viu imaginar que esse Brasil espantoso que cresce e se desenvolve vai perder sua ligação umbilical com Brasília? É o calor, é o calor...



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