sexta-feira, março 18, 2005

Como custa a água

Visões dumas andanças - XI

A água custa... e como custa



Faz tempo já, coisa pra mais de dez anos, talvez mais de doze. Foi um período em que viajei bastante pro sertão baiano, principalmente pra região de Guanambi. Ali é o verdadeiro sul da Bahia, mas deslocado do litoral que todo mundo conhece - ao menos pelos olhos de Gabriela (cravo e canela). Digamos, então, que Guanambi fica no centro-sul, próxima do Rio São Francisco, próxima da divisa com Minas. Terra ora agreste, ora não. Por ali passa o Rio Iuiú e é no seu vale que se plantava muito algodão. Uma enormidade. Hoje, nem tanto.

Em Guanambi fiz uma amiga, locutora da FM local. Pra chegar na emissora era meio complicado: o carro tinha de subir um morro, por estrada de terra e, lá em cima, tinha mais terra e escadas pra escalar, digo, subir. Mas valia a pena. E não era só pela paisagem, mas também pelas conversas, por poder acompanhar a vida numa pequena emissora de rádio do sertão. Foi lá que conheci uma dupla sertaneja local. Não lembro seus nomes, mas deveria, pois fizemos um trabalho muito legal. Criamos um programa de extensão rural, ensinando o pessoal a plantar e, principalmente, a usar corretamente herbicidas e proteger o ambiente. Criação coletiva, envolvendo a dupla, o agrônomo local da empresa, eu mesmo e, às vezes, até a locutora da rádio.

O programa passava os ensinamentos pela música da dupla e pela voz maviosa da locutora. Ao invés do último sucesso de Chitãozinho e Chororó, um lembrete pra nunca deixar de lavar a embalagem vazia do produto e joga-la no lixo especial. Foi um sucesso de público e de crítica. Até um prêmio de propaganda ele conquistou. Como foi entregue em São Paulo, recebi-o sozinho, sem o resto da equipe de criação. Guanambi fica muito longe de São Paulo. Em todos os sentidos.

Um dia fomos visitar uma fazenda. Meio distante, como tudo e como todas. Ali não é terreno de caatinga propriamente dita, mas é um cerradinho enfezado, nervoso, feio e seco. Secura, aliás, é o que mais abunda por ali. Quando chove, planta-se algodão. Na fazenda, moderna, bem administrada, destoando da vizinhança fazendária, andamos por todo lado com o administrador, um jovem técnico agrícola de Barbacena, terra onde há muitos morros, além de muitos tios e primos, pois é terra de boa parte da família do meu pai. Animado, ele mostrava ora uma coisa, ora outra, todas elas modernas, feitas de acordo com os preceitos da mais avançada agricultura empresarial. Assim vimos de tratores a obras para conservação do solo, passando pelo plantio, inédito na região, de árvores nativas para recompor uma matinha ciliar. Até que chegamos a um poço artesiano. Troço mais besta de ver é esse. Não há o que ver, é só um cimentado com um tubo saindo do chão dentro de uma casinha. É o poço. E ele orgulhoso:

“ -Esse é o nosso poço artesiano!” - com direito a exclamação e tudo.

E danou a falar do poço: quantos metros de profundidade, quantos litros d’água por hora, quanto isso, quanto aquilo, finalizando, satisfeito:

- E, na seca, o povo todo da vila vem pegar água aqui.

- Dessa vila aí por onde passamos?

- É, dessa mesma.

- Puxa, mas daqui até lá tem uns seis quilômetros.

- Tem sete, que é conta de mentiroso, mas nesse caso é verdadeira.

- Ué, e não tem poço lá na vila ou ali perto?

- Na vila não tem, não, mas tem numas três ou quatro fazendas ali por perto. Uma delas tá a dois quilômetros da vila, só.

- E por que o pessoal não pega água nessas fazendas?

- Ah, porque os donos não dão, não. Nem uma gota.

- Ô, louco, não dão água pra esse povo na seca?

- Dão nada.

- Mas... não acredito... como não dão? Por que?

- Porque dizem que a água custa. Aí, o pessoal pega as latas e os baldes e vem até aqui pra pegar água, porquê só a gente dá água pra eles.

Sete quilômetros pra chegar no poço. Até hoje rumino essa informação. Sete quilômetros com a lata d’água na cabeça, sob o sol (ia escrever senegalês ou escaldante, mas nem vale a pena) do sertão da Bahia, voltando pra casa.

“Lata d’água na cabeça, que agonia...” (não lembro do autor dessa música e, da letra, só esse verso)

Com certeza, da água chegava só metade, pois em tantos quilômetros ela devia cair uma parte e evaporar outra. Quatorze quilômetros, ida e volta. O que provocava engulhos, e até hoje provoca irritação, é que os negadores da água fizeram os poços com dinheiro subsidiado. Dinheiro do tesouro público. Bom, sobre isso mais não falo, esse é um texto que se pretende sério.

Sem dúvida, esse foi um bom exemplo do comportamento da elite tupiniquim. Curiosamente, uma elite que, na época, não perdia uma missa, como sói acontecer desde os idos de abril de 1500 (estou com preguiça de consultar meu Caminha e ver o dia correto). Nossas elites, as nordestinas em particular e principalmente, sempre foram tementes a Deus e ergueram muitas e belas igrejas. São ótimas para o turismo.

É bonita a região de Guanambi, mais ainda no inverno, com água no solo e nos rios e as plantas verdes, brilhantes. A gente olha para um lado e vê o paredão da chapada. Olha para o outro, pros lados do oeste, e só vê o sertão se alongando pro horizonte. Lá adiante, nesse rumo do vazio, está o Rio São Francisco e a cidade de Carinhanha. Seguindo em frente, a gente chega no espigão que divide o sertão mineiro e o baiano do sertão de Goiás e de Tocantins. É tudo sertão. Grande sertão.

Mais um retrato desse Brasil varonil sob o céu cor de anil, onde a água pode custar um quase nada pra alguns e mais de duas léguas pra muitos outros.

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9 comentários:

Anônimo disse...

Caralho. Isso é passível de denúncia!

Se nada vai ser resolvido é outra história, mas era preciso meter a cara desses infames em tudo quanto é jornal!

Anônimo disse...

Sobre o post de baixo, cansei de fazer o trajeto Salvador-Campina Grande de ônibus.

Passava por Salgueiro, coração da bandidagem pernambucana, com o cu na mão.

Uma vez, dormimos em um posto, lá pelas três da manhã. Quando amanheceu, vi um segundo ônibus chegando, cravejado de balas e cheio de sangue. Mataram o motorista e um dos passageiros veio dirigindo. Perderam tudo, roubaram tudo. Deixaram somente o ônibus como recurso.

Tinha criança passando fome e sede, gente pedindo esmola pra comer alguma coisa. E aí, ao contrário dos fazendeiros de Guanambi (onde já estive jogando basquete uma ou duas vezes), o dono do posto se compadeceu e deu comida de graça pra todos.

Foi comovente ver uma atitude daquelas vinda de uma pessoa que morava há tanto tempo em uma terra amaldiçoada pela perversidade do ser humano. Um oásis no deserto.

Qualquer dia coloco a história inteira no Cabamacho.

Emerson disse...

Esse tipo de postura - negar água - é comum. E consegue ser pior ainda com os donos de terra onde tem açude. Nos últimos anos já li umas 3 ou 4 vezes sobre isso no Estadão.

Por essas e por outras, a transposição vai despir um santo e deixar o outro pelado.

Emerson disse...

Um de meus irmãos mora no Nordesta há mais de 20 anos. Já morou em Vitõria da Conquista, Recife, Fortaleza e agora em São Luiz. E sua segunda mulher é de Terezina. Duas vezes, quando morava em Fortaleza, ele fez Fortaleza/São Paulo de moto. Loucura pura, parando só pra dormir um pouco. Numa das voltas, com pressa de chegar, ele cruzou o Polígono de madrugada, sozinho. Louco.

Anônimo disse...

Uma destas fazendas só pode ser do Nilo Boi. Conhece o Nilo Boi de Guanambi, que abiu uma estrada assfaltada com dinheiro público, até à porta de sua fazendona em Guanambi. Ele atropelou um réporter propositalmente, porque este o indagou sobre a dita estrada. E ele era o governador da Bahia!

Emerson disse...

Hélio, prazer em te ver por aqui. A casa do Nilo Coelho é, ou era, à época, uma atração turística: uma verdadeira fortaleza. Agora, conhecendo essa supespécie do Homo sapiens, o H. sapiens var. politicus, digo pra você: fosse dele uma das fazendas e o pessoal do povoado teria água, sim. Em troca de votos. :o( Aliás, coisa também corriqueira ainda hoje.

Anônimo disse...

O outono chegou, finalmente. E finalmente as chuvas voltaram aqui no sul. Estou no Paraná, de novo, e novamente a chuva me atrapalha as gravações. O céu nublado enfeia as imagens, mas a verdade é que está muito gostoso.

A perda na safra de verão no Paraná chega a 16% no conjunto dos grãos. Considerando somente a soja, a perda vai a pouco mais de 20%. É muita coisa, é muita perda, é muito dinheiro que deixará de circular pela economia.

Emerson - desde Araucária - PR.

Anônimo disse...

Ueh! Então e Lula, o Presidente "operário", o que faz para acabar com isso de vez? É que, em termos sociológicos, isso é crime. Não sei se o é, na lei brasileira, mas se não é deveria ser. Já seria um começo que a lei o tipificasse como crime e fosse divulgado assim. Se bem que o facto de existirem povoações, grandes ou pequenas, sem garantia permenente de fornecimento de água, é crime do próprio estado...
Um país enorme (em potencialidades e na sua gente) governado por gente "pequenina", irmã desta daqui, para mal dos nossos pecados. Um abração!

Anônimo disse...

Emerson,
Se passares pelo Tocantins, não esqueça de dar uma chegadinha em Colinas do Tocantins.
Ailton Gomes