terça-feira, março 29, 2005

O roubo do trator e um roubo maior

A fazenda do Sandro, vista do Sítio das Macaúbas - o prédio branco e comprido é o galpão para frangos em final de montagem. Mais para a direita as duas casas: a sede e a casa para funcionários. Continuando para a direita por cerca de 300 metros, tem o carreador que conduz à estrada.
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O roubo do trator e um roubo maior


A noite recém chegou. Os cachorros latem, apuro o ouvido, um carro se aproxima. Já dá pra ver a luz dos faróis por entre as árvores. Olho pra trás, todos estão atentos, os celulares ligados. Fico no gramado esperando a chegada do visitante imprevisto.

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Sentado à mesa da cozinha, avisto a sede da fazenda do Sandro. Os coqueiros jovens ladeando o carreador da estrada até a sede. A casa dele fica escondida pelas árvores, mas a casa do Gilberto e da Janete, que moram e trabalham lá, é visível. É distância pouca que nos separa, coisa de meros três mil metros, pouco mais ou menos. Mas há vinte dias atrás, num começo de noite de terça-feira, três veículos passaram por entre os coqueiros, logo depois da perua da escola ter pego o Diego, filho do casal.

Despreocupados, o Gilberto e a Janete foram receber os visitantes. A primeira imagem sob a luz do poste em frente à casa, foram as bocas dos revólveres. Além dos motores dos carros, os gritos pra ficarem quietos e não se meterem a besta. Um dos visitantes, que digo, não eram visitantes e sim bandidos, então, um dos bandidos reforçou os gritos com um tiro para o chão. Quem segura uma arma sempre tem vontade de atirar. Uma nova sessão de gritos, agora com o imbecil, o bandido imbecil, que atirou. Coisa de amador que quase apanhou dos parceiros de crime pela tolice.

Vigiado pelos olhos negros e vazios das armas, Gilberto soltou a roçadeira que estava acoplada ao trator novo, bonito, traçado e caro, alvo primeiro e mais importante dos bandidos. O galpão novo para criação de frangos, há pouco terminado, foi visitado. Vinte motores elétricos para usos diversos foram transportados para os carros. Da casa, uma tv nova, 29”, tamanho ideal para o futebol. E uma bomba d’água para poço artesiano. Uma bomba que outros bandidos tentaram roubar no outro sítio, sem conseguir. Mas deixaram que ela despencasse poço abaixo. Recuperada por uma empresa especializada a custo também especializado, foi guardada na sede da fazenda. E roubada.

A cama do casal serviu para mantê-los amarrados. Até onze horas da noite, quando Diego chegou da escola, assustou-se e soltou os pais.

Pouco depois desse horário, enquanto a polícia chegava à fazenda, a cerca de 25 km de distância, a meia-noite chegando, uma viatura da Polícia Ambiental, novo nome da Polícia Florestal, cruzou com um trator numa estrada vicinal. A princípio os policiais passaram direto. Mas, acabaram por achar estranho tal trator a tal hora em tal trecho. Deram meia-volta. Incontinenti, viram o trator parar, o tratorista descer e correr para a mata que margeia a estrada. Sumiu. Era o trator do Sandro.

Enquanto amarravam o casal à cama, os bandidos prometeram voltar para buscar o outro trator. E eles que se comportassem direitinho, pois sabiam de tudo. E sabiam e sabem mesmo! Desde então, enquanto não mudam da fazenda para a cidade, depois que a perua da escola pega o filho eles se escondem no meio da lavoura até onze horas da noite. Puro pavor.

Sexta-feira agora, feriado, cheguei ao sítio e logo fui ouvindo as novas da região. A mais quente é que tinham entrado, novamente, na fazenda do Sandro. Aí, o Gilberto e a Janete saíram correndo e gritando ao celular. Disseram que uns homens desceram de um carro e tinham dado um chute na porta. A polícia acorreu. O Sandro, que tomava uma bebida antes do banho pra relaxar de um dia de trabalho, veio também a toda velocidade. Nesse meio tempo, o casal estava abrigado embaixo da estrada, no meio da água do córrego que passa por um tubulão. Os gritos atraíram a atenção do pai do meu funcionário, que mora ali perto. Ao chegar, viu marido e mulher encharcados por inteiro, ela apavorada e chorando. Quadro triste.

Eu mesmo achei tudo muito estranho para ser um novo roubo. O Sandro e a polícia pensaram do mesmo jeito. No sábado, o mistério desfez-se: o mesmo carro chegou à sede, com um casal a bordo. Tinham ido lá procurar emprego, justamente a vaga que será aberta com a saída do Gilberto e da Janete. Não viram ninguém, a porta da casa estava aberta, acharam estranho e foram embora. O “chute” na porte era apenas o barulho da porta velha do carro velho sendo batida com força pra fechar direito.

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A luz dos faróis aumentou, em segundos já daria para ver o carro. Não adianta, há sempre um momento de tensão, há sempre uma descarga de adrenalina, há sempre um friozinho na barriga. Finalmente, o carro surgiu ao lado do bezerreiro, sob a paineira. Uma pickup... ah, era o Sandro. Relaxamos, os celulares voltam aos seus locais habituais, esperando por chamadas, se possível nunca usados para pedir socorro.

Conversamos rapidamente, ele estava a caminho da sede onde iria passar a noite, tal como vem fazendo desde o roubo. Nesses dias, com o feriado da Páscoa, sua família e um casal de amigos estavam juntos. De onde estávamos, minutos depois, avistamos os faróis da pickup entrando no carreador da fazenda.

Um pouco mais tarde fomos para lá, conversamos, falamos mal dos governos, dos bandidos, dos políticos – dizem que há diferenças entre essas categorias. Bom, dizem que há, eu mesmo não afirmo mais nada. O filho do Sandro e da Lu está enorme e já vai fazer um ano. O preço da soja está uma caca, talvez melhore, talvez não. O Sandro tem uma área de cana que pôs à minha disposição, mas a cana está nova, com pouca sacarose e não poderei usar. Pena, ele vai ter de passar o trator para plantar um novo talhão de laranja. Finalmente, uma fantástica lua cheia, a paisagem bonita toda prateada, a vista alcançando longe.

Nada disso foi assunto nessa noite. Tudo isso, e mais a paz de espírito dos trabalhadores, foi-nos roubado pelos ladrões. Um roubo pior que o trator, é o que eu penso.

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