Um Olhar Crônico sobre os dias de hoje e alguns de ontem. Um Olhar Crônico sobre a vida nas cidades, a vida na megalópole, a vida na roça, quando é dura, e no campo, quando é lírica. Textos, Idéias & Coisas diversas, aquelas que passam pela cabeça e a gente acaba registrando, sabe-se lá pra que ou mesmo porquê.
quinta-feira, junho 29, 2006
Festa na roça
Foi a noite mais longa do ano, de verdade. O sol foi embora cedo para voltar tarde no outro dia. Um dia de céu azul, limpo, sem nuvens, sem promessas de chuva. Mas na véspera uma garoa já deixara todos entre mais animados com nada e menos desanimados com tudo. E a previsão prometia um pouco de chuva para a semana que entrava. Não que fosse resolver alguma coisa, nessa altura, mas é sempre algum bem, e isso é melhor que o muito mal permanente da seca prematura.
A pilha de lenha para a fogueira era bonita, formato clássico, piramidal. Uma forma que nos remete ao começo dos tempos em várias partes do mundo. Fogo e pirâmide, a base larga dando estabilidade à estrutura que cresce rumo ao céu. O fogo começou tímido, mas a madeira seca respondeu com rapidez. Em minutos, a fogueira deixava para baixo os dois metros de lenha e projetava suas labaredas até perto de cinco metros de altura. Era fácil de calcular, pois as chamas eram maiores que a pirâmide de madeira original. O fogo fascina, e aquele estava mesmo fascinante, atraente, quebrando o frio da noite caipira.
O povo foi chegando e se achegando. A chaleira cheia de quentão já passava pelas rodinhas, os copos finos sendo seguros com cuidado para não pelar as mãos. Há quem não goste de beber quentão, mas não conheço ninguém que não goste de seu perfume. E aquele estava muito perfumado, além de gostoso. Cravo, canela, açúcar queimado e o gengibre de lei, mais a pinga boa e honesta do alambique próprio dos donos do sítio. Quentão e fogueira é combinação de calorão brabo, não há frio que resista à dupla.
O povo da roça é meio arredio a muita conversa, dizem nas cidades. Não é bem assim, mas muita gente desse povo gosta mesmo do silêncio ensimesmado, pensativo. E alguns pensam mesmo, de verdade. O calor combinado da bebida e do fogo, contudo, destrava as línguas. Daí às gargalhadas o caminho é curto, quase nem há caminho. E mais a pipoca, o amendoim, as paçocas de variadas caras e gostos, o pé-de-moleque e, modernismo urbano, o sanduíche de salsicha, para ajudar na alegria. Palavras, risos e gargalhadas já corriam soltas e rivalizavam com o crepitar do fogo.
No palco dentro do galpão das máquinas do sítio, o conjunto terminou a afinação dos instrumentos, porém não chegou a tocar: era chegada a hora de rezar o terço. Todos pra fora, todos pra baixo dos olhares protetores de São João, São Pedro e Santo Antonio, os santos colocados no alto do mastro, uma outra santíssima trindade, velando pelo sítio e suas pessoas e bichos e plantas.
E assim foi: uma curta procissão atravessou os poucos metros que separavam o galpão do mastro dos santos e, perto deste, a fogueira em seu auge. Os barulhos alegres cessaram e a noite estava de novo silenciosa, pois o crepitar do fogo e o cricrilar de alguns grilos fazem parte do silêncio, que logo deu lugar às orações. Como sempre, as vozes femininas fazendo tudo, os homens quietos, mais ouvindo, alguns, talvez, nem prestando atenção, pensando em outras coisas e, por que não? – pedindo ajuda aos santos para resolver as coisas em que pensavam.
É lenta a reza de um terço. A cada dez Ave-Marias, um Pai e Nosso e algumas palavras. De vez em quando – sacrilégio! – um gaiato soltava um rojão, mas era parte da festa, parte da reza, parte da tradição e não sacrilégio. E enquanto o som das orações saía das gargantas das mulheres e alguns homens, o fogo subia ao céu estrelado e sem luar, como há milhares de anos já acontecia com nossos ancestrais e, quem sabe, continuará acontecendo daqui a outros milhares. O fogo atrai, as palavras de fé e devoção penetram no âmago de cada um e mesmo os descrentes são tocados por algo forte e mais antigo que tudo. Aquele foi um bom tempo, um sentimento de paz e segurança passando por todos. Há quem chame a isso estar feliz. Não duvido.
Findo o terço, vieram as cantigas e muitas atenções voltaram a se dispersar e muitas outras voltaram a se concentrar na comida e no quentão e no vinho quente. Somos todos modernos e, portanto, as latinhas de cerveja também circularam. E a molecada voltou a correr e a soltar fogos de efeitos incríveis e bonitos.
E tudo cessou novamente, mas dessa vez para a Quadrilha. Os casais tomaram posições e a dança começou, lembrando as danças palacianas francesas que víamos nos cinemas nos tempos em que existia a matinée.
Caminho da roça!
Olha a cobra!
Túnel!
A quadrilha é gostosa de ver, tanto quanto deve ser gostosa de dançar.
Seu final sinalizou que a festa já caminhava, também, para o fim. O dia seguinte, mesmo domingo, era dia de trabalho. Como todo dia na roça.
E fomos todos embora, celebrando a gostosa noite mais comprida do ano.
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