Saímos cedo de São Paulo, mas com o sol já alto. Horário de verão é a melhor coisa do verão; o dia começa mais cedo, mais gostoso e termina da mesma forma. Para quem trabalha em vídeo, como eu, com a maior parte do trabalho a campo, é uma delícia, pois o dia rende, rende muito mais. Na roça, então, nem se fala. Na verdade, no sítio nosso horário de verão começa muito antes do horário oficial, afinal, as vacas não têm a mínima noção dessas invencionices ligadas à divisão do dia em horas, minutos e segundos, tampouco conhecendo semanas ou meses. Vivem de acordo com as estações e suas mudanças, ou viviam, até que nós aparecemos e mudamos tudo.
A caminho do local de nossa gravação, uma granja produtora de ovos, um pedágio. Paguei com prazer. As obras na Raposo Tavares ficaram prontas, finalmente, e agora atravessamos Cotia e Vargem Grande sem parar, a 90 ou 100 km horários, numa estrada boa, protegida do trânsito nas laterais, em pistas expressas. Ah, se ainda morasse na chácara de outrora, quando a estrada tinha pistas simples e cruzava um vazio urbano que ficou cheio de tudo: gente, lojas, carros, ônibus, caminhões e lombadas, muitas lombadas.
Há mudanças que são muito boas.
Subimos a Serra de São Roque, cujo nome indígena é mais bonito e sonoro: Serra da Taxaquara; descemos e seguimos em frente por um bom trecho, deixando duas cidades para trás. Basta entrar em uma área de campo e minha atenção redobra. Olho a paisagem sempre com os olhos de quem poderia estar ali, vivendo, trabalhando, criando. Deve ser resquício dos devaneios de viagem a bordo do “trem de luxo” da Paulista, quando me projetava em toda fazenda, em todo sítio, em toda beira de rio que enxergava da janela ou da plataforma do vagão.
Essa região em especial me agrada muito. Gosto de sua altitude, gosto do frio e da umidade, das manhãs e tardes tomadas pela neblina em parte do ano, brincando um jogo de mostrar e esconder. Gosto das árvores e do cheiro gostoso do capim-gordura e gosto mais ainda quando deparo com araucárias, não muito comuns, mas tampouco raras. E tudo fica melhor quando o asfalto se transforma em terra batida onde rodamos pouco, pois a granja que procuramos está próxima.
Passamos por uma entrada bonita, hortênsias exuberantes acompanhando uma pequena cerca de tábuas brancas de cada lado da porteira aberta e convidativa. Ou não muito, pois ao lado uma placa é curta e grossa: “Não temos galinhas”. Ok, está bem, temos que seguir em frente mesmo. E quem disse que eu quero galinhas?
Rodamos mais um trecho olhando atentamente nas entradas de sítios que apareciam e nada de aparecer a granja. Algo, porém, me incomodava e tinha a ver com a placa das galinhas, ou melhor, da ausência de galinhas.
Meia-volta, volver. (O velho comando presente em todo episódio de Rin-tin-tin, o mais fantástico de todos os filmes, como julgava do alto de meus oito, nove anos de idade, e ainda não perdido na memória...)
A impressão inicial revelou-se correta e a granja era aquela mesma, a "Não temos galinhas". Passamos pelas hortências e subimos um pouco pelo carreador ladeado por pequenos arbustos que devem ficar carregados de flores em outra época e mais algumas moitas de hortêncas, com seu colorido, tamanho e forma meio escandalosos. Logo avistamos os galpões onde as galinhas ficam alojadas. Gravar galinhas não me agrada, assim como não gravo mais criações de porcos, devido ao confinamento dos animais. No caso das galinhas é muito pior, pois as infelizes ficam a vida inteira presas numa pequena gaiola metálica, apenas comendo, bebendo, botando e defecando. Essa é uma das criações mais tristes que existem. Mas hoje não vou falar dela e nem das galinhas do sítio, às voltas com suas disputas pelo galho mais alto para dormir, fugindo dos galos, levando seus pintinhos por toda parte atrás de grãos, insetos e tudo o mais que seja comestível e que, no caso de galinhas, esses pequenos dinossauros empenados, é tudo que seja comestível.
Os cachorros nos recepcionaram, dois entre muitos, a maioria retirados do canil municipal e vivendo, agora, a vida que todo cachorro pediu ao grande Deus Canino. Meu estado de espírito melhorou. O granjeiro, de segunda geração, é um cara novo, simpático, boa conversa. O trabalho flui com facilidade, a conversa rola, o depoimento é ensaiado, testado, repetido e finalmente fico satisfeito com duas versões boas. Sua esposa aparece com a terceira geração pelas mãos, um menino e uma menina. Ela, com roupa de ballet a caminho da academia. Ele, com a pequena mão apertando o nariz para não sentir o cheiro das galinhas. Tenho a impressão que a terceira geração estará distante das galinhas e seus ovos no futuro, como acontece com grande parte dos produtores de alimentos que conheço.
(Produtor de alimento diz algo mais que produtor rural, não é?)
A luz ajudou, com o sol ainda coberto por um renque de velhos eucaliptos e a sombra em todo o campo abarcado pela lente. Realmente, nada como o horário de verão para quem trabalha em atividades externas. Fiz amizade com os cachorros, inclusive um akita com seu porte senhorial e cara sempre séria, gravamos a coleta dos ovos – cerca de 25.000 por dia – e a distribuição de ração para as galinhas e a hora de ir embora chegou. Não sem que antes chegasse um casal para comprar galinhas. É comum isso: moradores da região vão até lá e compram galinhas que estão prestes a serem descartadas, vale dizer, abatidas. Embora já não sejam lucrativas para a granja, pois custam mais em ração do que produzem em ovos, elas são bastante produtivas para quem as criar soltas, com a ajudinha de um pouco de ração ou mesmo milho.
Ao passar pela porteira vejo a placa novamente. De nada adianta dizer que não tem galinhas, pois ninguém acredita e todo mundo entra. E acaba saindo com as galinhas pretendidas.
A placa não termina com a negativa das galinhas, e tem mais uma frase embaixo, bem típica de um povo e de um tempo que já não encontramos com facilidade nessa Terra de Vera Cruz:
“Desculpe o incômodo.”
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Um comentário:
Emerson
É sempre um grande prazer vir aqui e ler seus textos e aventuras!...
Nelsinho
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