sexta-feira, abril 08, 2005

Procissão

Procissão


O som da cantoria entrou alto e forte pela janela de meu quarto, no primeiro e único andar do hotelzinho simples. Pensei que fosse de algum rádio ou cd player de um vizinho de quarto. Ou alguém sentado na frente do hotel.

Aproximei-me da janela e puxei a cortina escura, que deixava o quarto numa penumbra gostosa, combinando com o necessário ar condicionado ligado. Fui surpreendido pela visão de uma procissão a poucos metros de distância. À primeira vista cheguei a pensar que fosse outra coisa, que fosse uma manifestação. Antigamente, uns caras desfilavam pelas ruas de paletó e gravata, cabelos curtos, estandartes vermelhos, gritando em megafones. Tempos passados. Aqui, os fronteiros estavam de manta vermelha e alguns deles carregavam estandartes coloridos, com imagens de santos. Aí vieram os padres, vários, muitos padres, com relicários, imagens e também incensários fumegantes. Atrás deles, um poderoso caminhão de som, conhecido, também, como trio elétrico. Coisa de procissão high tech, moderninha e populista. No alto do caminhão, dois cinegrafistas gravando tudo. Logo atrás, compenetrados, devotas e devotos, muitos com velas acesas nas mãos, acompanhando o trio elétrico, quero dizer, a procissão, contritos, rezando sem parar. Crianças correndo em volta algumas, outras presas fortemente pelas mãos e braços às mães e pais, seguindo uma coisa incompreensível e cansativa para elas, adquirindo pouco a pouco, e aumentando a cada apertão no braço, uma grande ojeriza por tudo que se relacionasse à procissão. Nas crianças, revi-me. E senti de novo a canseira, a chatice, a obrigação, o não-entendimento, a vontade louca de correr pra longe de tudo aquilo e ir brincar.

Apesar do ar condicionado obrigatório e necessariamente ligado, abri a janela para poder acompanhar melhor a procissão que se afastou no caminho da igreja. Mais adiante, à frente da longa fila coleante e como se para elas a procissão se dirigisse, as águas barrentas do Amazonas brilhando ao sol do começo da tarde de sábado. Uma gaiola passou rio acima, no rumo de Manaus, e uma chata com madeira serrada de até há pouco orgulhosas árvores amazônicas desceu o grande rio, no caminho do porto de Santarém, talvez Belém, e dali para sabe lá Deus onde.

E eu pelado, no quarto já quase gelado, encostado na janela, escovando os dentes, um pouco de espuma escorrendo pelo canto da boca. Ninguém olhou pra cima, ou, pelo menos, para mim. Felizmente. Os olhares para o alto estavam dirigidos para local incerto e não sabido, tal como a presença de Deus na terra.

Fechei a janela, puxei a cortina de volta, fui pro banheiro enxaguar a boca, coloquei uma roupa e saí pro calorão úmido para ver um pouco mais da vida daquela pequena cidade amazônica.

Como quase sempre, um simples observador. Sem direito e vontade a voz e voto.

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3 comentários:

Anônimo disse...

No Amazonas algumas dezenas, quem sabe centenas; em Roma milhões. No Amazonas trio elétrico; em Roma televisões do mundo inteiro e um enorme aparato policial. E tudo vira espetáculo. Sei não, mas acho que o tal do Jesus ia ficar meio entediado. Deus então...ia arranjar outro planeta para criar, principalmente se lesse jornais por aqui.

Emerson disse...

Pois é, e imagine, então, se Ele lesse certos blogs... :o)

Anônimo disse...

Somente agora estou vendo o seu comentário... rsss Quem dera que nossos jornais fossem bem trabalhados como certos blogs. Alguém já comentou aqui que este sítio é bem trabalhado, bem pensado... deve refletir seu interior. Não sei, sobre "seu interior" não opino (rrss), mas... quem dera que ler jornais - pelos quais pagamos - fosse sempre uma ação prazeirosa. Não que as notícias devessem ser sempre boas... mas poderiam ser melhor tratadas ....