quarta-feira, abril 20, 2005

Jávea


(Essa história é verídica, com algumas frases reconstruídas de memória. É uma história sobre paixão e futebol, mais sobre futebol, mais sobre paixão, sei lá.)


Jávea, uma história de amor...
(esse título termina no final do texto)


Trabalhar em cartório de registro civil já foi mais fácil do que é hoje. Tá certo que antigamente não havia computador, tudo era escrito a mão mesmo, boa caligrafia era essencial. Mas tirando um ou outro Anfilóquio & assemelhados, os nomes eram fáceis e poucos, a maioria esmagadora com um santo padroeiro, o que tornava tudo ainda mais fácil. Era Amélia, Hermengarda (essa acho que não tem santa), Paulo, Maria das Dores, Ernesto, José, João, Bento, Helena, Manoel ou Manuel, Ernestina, Bertolino, Adélia, Aparecida, muitas Marias. Lá uma vez ou outra aparecia uma Edwige, mas era raro. Por volta dos 50, a coisa começou a mudar e os nomes passaram a ficar, digamos, mais sonoros. Influência da guerra, decerto, e dos americanos, com certeza. Eu mesmo e meus irmãos somos vítimas dessa fase. Emerson, Vagner e Edson (Eduardo, o caçula, deve seu nome à minha indicação). De minha parte, ficaria mais à vontade com um Frederico Augusto, quem sabe. :o) Elocubrações meio bestas.

Naquele dia o rapaz do cartório na cidade de Marilia ficou espantado. E um pouco indignado.

- Bom dia - disse o rapaz novinho, meio alto, magrelo, cabelo meio comprido.
- Bom dia – respondeu o cartorário.
- Vim registrar minha filha, nasceu ontem.
- Ah, muito bem. Está com os papeis da maternidade? Passe-os para mim, por favor.

O cartorário pegou a guia da maternidade, abriu o livro e começou a fazer o registro da criança, uma das mais novas habitantes do planetinha azulado cheio de H2O na fase líquida. Computadores, conhecidos como cérebros eletrônicos, eram máquinas gigantescas usadas pela NASA, pelos “americanos” e “russos” e pelos bancos gigantes daqui mesmo. Ficavam em salas enormes, refrigeradas, com um povo esquisito trabalhando dentro deles. O jeito, portanto, no cartório, era escrever na base da munheca, mesmo. Diligentemente.

- O nome da menina?
- Gávea de Lima Cordeiro.
- Como? Pode repetir, não entendi direito.
- Gávea de Lima Cordeiro – repetiu o rapaz magrelo, compassadamente, o rosto com um ar de satisfação.
- Olha, hummmm... “seu” Jairo, né?
- Isso!
- Pois é, seu Jairo, não posso fazer esse registro.
- Como não pode?

A transformação no rosto do rapaz foi instantânea. A satisfação foi embora, trocada por um começo de raiva.

- Pois é, não dá, esse nome não existe.
- Como não existe? É claro que existe!
- Não, não existe.
- Que é isso, rapaz? É claro que existe. Tem um bairro com esse nome lá no Rio de Janeiro.
- Pode até ser, mas não existe, não é nome.
- Que que é isso? Tem até a Pedra da Gávea, que é famosa pra burro.
- Pode ser, “seu” Jairo, mas isso não é nome de gente e eu não posso fazer o registro.

Dito isso, o cartorário afastou a cadeira da mesa e ficou olhando o rapaz magrelo. Um outro rapaz, igualmente novo, que estava com o magrelo meio cabeludo, falou baixinho pra ele ficar calmo.

- Como é que eu vou ficar calmo se esse cara não quer registrar a minha filha? Ficar calmo como?
- Calma, Jairo, vamos conversar.
- Que conversar coisa nenhuma. Ele taí pra registrar e tem que registrar!
- Calma, cara, assim só piora as coisas.

O rapaz acompanhante virou-se pro cartorário e perguntou:

- Vem cá, não tem jeito de fazer o registro? Gávea é um nome bonito, sonoro, e ele tem razão, existe um bairro lá no Rio com esse nome. Fora a pedra, que é grandona e bonita.
- Olha, você é mais calmo, explica pro teu amigo aí...
- É meu primo.
- ... explica pro teu primo que não podemos fazer registro de pessoas com nomes... hummm... assim, entende? Nomes de coisas.
- Mas ele quer esse nome, não vai ter jeito.
- É, mas infelizmente se eu registrar assim, o juiz recusa, anula o processo e eu levo uma baita duma bronca ou coisa pior.

Ao lado, o pai da menina ainda sem nome, já que, pelo visto e ouvido Gávea não seria, escutava tudo, ar de revolta e incompreensão estampado na face. Ar de quem não estava acostumado a ser contrariado. E isso era fácil de entender: bastava vê-lo jogando bola aos domingos no campo de Padre Nóbrega, o pequeno distrito de Marilia onde viver era uma coisa pra lá de gostosa. Todas as bolas passavam por seus pés. Gritava com todos, comandava, tanto os moleques novos como os velhos já meio barrigudos. E ninguém discutia. Também, pudera, as bolas que chegavam a ele eram trabalhadas com paixão, ciência e arte, tudo junto. Quando alguém errava uma jogada ou não se posicionava onde ele queria, a catadupa de palavrões cabeludos que saía de sua boca era terrível. Aquele magrelo, definitivamente, não estava acostumado a ser contrariado.

O entrevero durou mais alguns minutos, caras feias daqui e dali, inflexibilidades também. Súbito, não sei se o cartorário, não sei se o Jairo, não sei se o primo ou algum outro vivente dentro do cartório, sugeriu uma mudança. O Jairo pensou em Jávea, talvez já tivesse pensado antes, talvez tenha sido a tal idéia luminosa que às vezes temos.

Jávea... Claro! Afinal, Jairo era o seu nome, pai da menina, Gávea era onde morava a paixão de sua vida, o Flamengo, juntava os dois e pronto! Uma solução à brasileira, negociada, acordada, uma posição de conciliação, produto típico de um povo que já foi tolerante e mais cordato.

Jávea foi batizada dias depois. Cresceu, já é uma mulher formada, entrando agora nos trinta. Meu primo Jairo continua batendo um bolão, mas de acordo com a idade e a barriguinha. Virou um desses magrelos com barriga, mas não exagerada, é passável. Continua sonhando com os horizontes amplos, imensos, dos sertões do Centro-Oeste, sertões que sonhou cruzar dirigindo uma carreta. Toda vez que cruzo essas imensidões, e são muitas, penso nele pelo menos um pouco. Apesar de ter treinado no Santos de Pelé, com a camisa 10 dos aspirantes, não tem saudades e não se arrepende de não ter seguido carreira no futebol profissional. Qualquer dia conto essa história.

Hoje ninguém mais se incomoda ou comenta o nome de sua filha. Nem ela deve se lembrar o porquê desse nome diferente. Também, pudera, num país como esse, com os nomes que vemos hoje, vamos & venhamos, Jávea é bem legal. Meu primo conseguiu transplantar sua paixão pelo time para o mais íntimo de sua própria família.

Vai gostar do Flamengo assim sei lá onde! Talvez na Gávea.


... por um time de futebol

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5 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo belo causo, Émerson.

Anônimo disse...

Sabe Emerson, agradeço muito a Deus e a quem inventou essa tal de internet. a Deus, por ter te dado o DOM de escrever, e à internet, por nos possibilitar a leitura do que tu escreves. Cara, meu mengo anda mal de pernas, que pra emocionar mesmo, só uma história dessas. Abraços

Anônimo disse...

É isso aí, Emerson. Concordo com o Ailton, no gosto pela leitura de teus textos, que chegam até a emocionar e nos fazer esquecer nossas decepções. Quanto ao Flamengo, haja história para compensar....

Anônimo disse...

Como meu outro "comment" não apareceu, tento de novo: parabéns ao seu primo pelo bom gosto. Eu não me importaria de ser batizado de "Jáveo"!

Anônimo disse...

É, nos tempos de hoje, recheados de Vartúlios, Bececês e Tospericargerjas, Jávea é um belo nome.