A noite parecia longa à frente. Já cansado das telinhas, procurei um livro para ler antes de dormir. Nos tempos pré-internet estava sempre com dois, três e até quatro livros
E agora?
Talvez por conta de alguma síndrome, não durmo sem antes ler.
Não há chance. Nem que seja por meros três, quatro minutos, assim mesmo preciso da visão prazerosa das páginas de um livro pela frente, como última visão antes do negrume da luz desligada. E não serve revista ou jornal, tem que ser um livro, mesmo. Já aconteceu de me flagrar em algum lugar pequeno no interior do Brasil sem nada para ler. O pânico bateu, simplesmente. E lá saí eu pelas ruas de cidades pequenas à procura de uma livraria – nem pensar – ou de uma revistaria, onde geralmente encontramos alguns livros. Sempre tive sorte e consegui dormir.
Olhei para as estantes...
Todos lidos, muitos já relidos.
Outros, nem tanto, mas estão ali para referências e consultas, coisas ainda muito úteis apesar da internet e do google. Entre esses, todos os volumes da Britannica e da Mirador. Puxa, demorei tanto para comprá-las, paguei tão caro e, de repente, da noite para o dia, tornaram-se obsoletas.
Como muitas outras coisas, tantas que é melhor não começar a citar.
Aí apelei e fui para a "seçao" dos livros há muito guardados e ainda não lidos. Tenho alguns nessa categoria, inclusive os sete volumes de “Em busca do tempo perdido”. Algo me diz que já está na hora de ler essa obra que todos descrevem como prima. Passo por Proust, dou uma rápida olhada num Thomas Mann, nem sequer olho para um Machado, um dos poucos que ainda não li, e deparo com um Kundera. Talvez seja esse, penso, enquanto olho para “A Imortalidade” e lembro de uma ou duas críticas meio demolidoras feitas sobre o livro, não sei se feitas antes ou depois da compra, que fiz porque era um Kundera, que escrevera o belíssimo “A insustentável leveza do ser”, transformado em filme igualmente muito bom e bonito, ainda por cima. Ficou a impressão que Milan Kundera atingiu seu auge com uma só obra, justamente essa, e o que veio depois ficou longe dela. Bom, vamos ver, vamos ver.
Deito-me e,. ao abrir o livro, tiro o marcador de página para deixá-lo ao lado. Só que não é um marcador propriamente dito, é o canhoto de um cartão de embarque de uma viagem há muito passada e esquecida. Olho o cartão, é da VASP. A empresa nem existe mais, na prática. Vejo que ele me garante o embarque (é, leitoras e leitores, naqueles tempos distantes você tinha certeza de embarcar num vôo; e, acredite, você ia correndo pro aeroporto, preocupado com o horário, fosse lá perder o avião por conta de um atraso de minutos... é, as coisas já foram assim por aqui) no VP 141, saindo às 16:30 com destino a Porto Alegre no dia 17 de março de...
Viro e reviro o cartão procurando o ano e nada encontro. Pego o livro e procuro por alguma indicação. O canhoto é da Laselva, a santa e maravilhosa livraria de Congonhas e Cumbica. Com certeza vi esse livro no balcão de lançamentos. Com certeza porque o tempo é sempre curto para ficar andando e olhando nas prateleiras, e também porque só fiz isso em raras ocasiões, mas aí foi à procura de livros policiais. Esse Kundera jamais me levaria às estantes. Portanto, quando comprei-o era um livro recém-lançado. Procuro alguma data nas páginas iniciais e nada. Recorro à última página e lá está: a editora Vozes comunica que imprimiu-o para a Editora Nova Fronteira, em janeiro de 1991.
1991... Isso significa que comprei-o em março do mesmo ano, no dia 17, como atesta o cartão de embarque. E fiz isso numa de minhas últimas viagens pela empresa multinacional onde trabalhava, de onde viria a sair no dia 31 de julho do mesmo ano, já como efeito da abertura econômica promovida pelo governo Fernando Afonso, mais conhecido como Governo Collor. Todavia, se a gente usa esse nome, todos associam a bandalheiras & correlatos, numa pequena, mísera e triste antecipação dos dias e governo que correm. Como foi um governo com algumas iniciativas interessantes e importantes, fico com Governo Fernando Afonso. É sonoro, tanto quanto, e até meio imperial – como “elle” gostaria que fosse de verdade.
Desde então, dezesseis anos se passaram e “A Imortalidade” ficou parado na minha estante, mudando de São Paulo para a Granja Viana e sobrevivendo à fase “vendedor de livros pela internet”. Um livro resistente, sem dúvida. O mínimo que ele merece, agora, é uma leitura honesta.
Ainda antes de começar a ler pus-me a pensar na falta de informações do cartão de embarque. Ora, ali estavam somente o dia e hora do embarque, o vôo, o portão e o lugar no avião. Não tinha o ano! Falha imperdoável, uma vez que todos sabem que viajantes-leitores e cronópios usam seus cartões de embarque como marcadores de páginas dos livros que compram por impulso nas livrarias dos aeroportos e que só serão lidos muitos anos depois, quando a primeira coisa que o leitor atrasado quererá saber é: “Desde quando esse pobre livro está à espera da minha leitura?” E a resposta para tão importante pergunta deveria estar presente, indelevelmente, no cartão de embarque. Mas, não está, comprovando o eterno descaso das companhias aéreas com seus passageiros, que também são clientes. Inclusive os cronópios, seres que sofrem terrivelmente se não conseguem resposta a uma pergunta.
Talvez dê notícias dele, mais pra frente.
P.s.: ao ou à comentarista que falou dos erros: revisão feita; gracias.
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Um comentário:
Que ótima, Emerson!
Você é um verdadeiro cronópio, com acento e tudo.
Mas é bom revisar o texto, tem uns errinhos...
:o)
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