sexta-feira, janeiro 12, 2007

Colhendo frutas e pensamentos à toa


“Triste vida, triste sina,

Ser poeta de latrina.”

Inesquecíveis versos dos tempos de infância e adolescência. Esses versinhos singelos decoravam todas as portas de todos os banheiros públicos – escola e restaurantes, basicamente – em que a gente entrava numa hora ou noutra. Aliás, parece-me que naqueles tempos movidos a ônibus e até bondes, usar banheiro fora de casa era mais comum que hoje, quando só nos movemos a carro particular, garantia falsa de chegar mais cedo em casa a tempo de fazer tudo que se precisa fazer em casa mesmo.

Essa velocidade maior da vida moderna talvez tenha acabado com esses poetas marginais, capazes de criar versos tão simples como imorredouros.

A grande questão que esses versos levantam, entretanto, é outra: a troco de que apareceram nesse blog, nesse momento? Que estranhos mistérios terão conduzido meus desocupados neurônios a algum arquivo perdido nos meandros da memória para resgatá-los? Não sei, ignoro totalmente. Falta de ter o que fazer não é. Ainda hoje preciso varrer a casa, passar aspirador, lavar a louça, preparar alguma coisa pro almoço, limpar o gramado (eufemismo para catar cocô de cachorro), etc. Das tarefas previstas para hoje, só fiz uma: colhi mais acerolas e guardei-as no freezer.

Colher é uma das mais fascinantes e, com certeza, a mais antiga tarefa da humanidade. Antes de sermos caçadores fomos coletores de frutos e raízes. Com elas, alguns insetos, ovos, um ou outro passarinho bobo... Até que um dia aprendemos a andar eretos e aprendemos a caçar, a fazer armas, a fazer fogo, a comer comida cozida e não mais crua. Assim nasceu o rodízio de carnes, também chamado de espeto corrido, a centenas de milhares de anos nos planaltos do Kenya.

Colher uma fruta é algo primitivo e fascinante, e ao mesmo tempo gratificante, ainda mais se a árvore tiver sido plantada com suas próprias mãos. É inevitável nessas horas um sentimento de gratidão e respeito pela natureza nos dominar. Nesses momentos, fica clara nossa dependência não de chips e celulares da hora, mas de coisas mais prosaicas como uma fruta, um grão, um ovo, um pedaço de carne de outro ser antes vivo como nós. Na Idade Média, o paganismo estava associado justamente às pessoas do campo, que punham a comida na mesa e por ela agradeciam, não necessariamente ao mesmo deus dos cristãos, embora eu ache que se tratava apenas de uma diferença semântica. Creio que mesmo um cristão não deixa de reconhecer a presença de Deus na natureza e suas muitas manifestações.

Enquanto colho as acerolas os cachorros se divertem. Pegam as frutinhas, verdes e maduras, que pendem dos galhos mais baixos. Às vezes, para pegar alguma mais alta, erguem-se sobre as patas traseiras e praticamente se debruçam sobre um galho que se verga até tocar o chão. Pegam, mais por farra, as frutinhas, mastigam e engolem, com semente e tudo. Em mais dois milhões de anos é capaz que um ramo evolutivo leve-os a se tornarem vegetarianos.

Esse pé de acerola e o ipê na entrada de casa mantêm-nos em permanente ligação com o campo. As frutas já bicadas deixo para os passarinhos, assim como as mais altas, difíceis para mim, fáceis para eles. Sanhaços e sabiás são as visitas mais freqüentes, mas já vi saíras coloridas pulando de galho em galho. Na pracinha em frente de casa, uma ameixeira meio escondida por outras árvores, faz a festa dos sagüis e dos pássaros.

Normalmente o jornal do dia é jogado próximo das árvores. Logo cedo, enquanto o leite pras cachorras esquenta no fogão, vou até a rua e pego o meu exemplar. Enquanto as árvores, frutas, flores, pássaros, sagüis ficam para trás, tiro o jornal de seu saco plástico e começo a passar os olhos pelas manchetes.

Descobri. Acho que foi isso que me trouxe à mente a velha poesia:

“Triste vida, triste sina,

Ser poeta de latrina.”


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2 comentários:

Nelsinho disse...

Oi Emerson!

De volta, lendo, apreciando...

Bom ano pra você!

Nelsinho

Anônimo disse...

É isso que dá abrir mão do paraíso e entrar em contato com o mundo.Abraços.Maria Helena.