sexta-feira, janeiro 13, 2006

Carne com escravidão



Bons livros costumam não apenas nos entreter e ficar presentes em nossa memória como também nos ajudam a entender muitas coisas, do sentido da vida ao cinema de Woody Allen. Alguns ajudam a entender as relações entre países, entre metrópole e colônias, por exemplo. “Equador”, do português Miguel Sousa Tavares, está nessa categoria. Já escrevi bastante sobre esse livro, é verdade, e torno a fazê-lo porque recente episódio envolvendo as relações do Brasil com a Inglaterra em 2006, leva-me a isso. Nada menos de um século depois da ação que se desenrola em “Equador”, quem diria.

No livro, a trama se desenvolve com o envio para a colônia de São Tomé e Príncipe de um novo governador-geral, escolhido pelo próprio rei de Portugal. Sua missão: recepcionar e tutorar o próximo cônsul de Sua Majestade, a Rainha da Inglaterra, cuja missão é averiguar se o cacau da colônia é ou não produzido por mão-de-obra escrava. Caso essa seja a realidade, o cacau da colônia terá seu ingresso proibido na velha Albion, provocando a ruína econômica das ilhas e um abalo na economia portuguesa, além do abalo muito maior no orgulho nacional. Naturalmente, o mais puro e denodado amor à humanidade move o governo de S.M. a essa ação, que, por não mera coincidência, se constatada a veracidade das denúncias, ajudará a comercialização do cacau de outras terras, não tão propicias e eficientes nessa lavoura como a colônia portuguesa. Que algumas dessas terras não tão eficientes e produtivas sejam colônias de Sua Majestade é mero detalhe. Fiquemos com o amor à humanidade, razão de ser primeira e última de todas as guerras que movimentaram nossa história de bicho civilizado. Bem, o cônsul chega às ilhas, começa a percorrê-las de cabo a rabo, conhecendo lavouras, conversando com trabalhadores, todos eles trazidos de Angola de forma não muito amigável ou honesta, se é que vocês me entendem. Com ele, veio sua esposa, inglesinha muito da interessante, a ponto de chamar a atenção de nosso ex-primeiro-ministro, Zé Dirceu, hoje fora do governo e passeando pelas terras de França. Bom, essa inglesinha tão interessante, interessantíssima mesmo... Deixo o resto para ser lido e descoberto por quem ainda não o fez e volto ao meu assunto, com certo pesar, confesso.

Perdido em amena leitura do jornalão dominical – amena, sim, posto que já exorcizei os fantasmas governamentais e, vindo dessa seara nada mais me assusta, embora essa nova conta do Duda na Florida... – começo a ler matéria sobre a venda de nossas carnes para o mundo e para a Europa, em especial. Aborrecido, fico sabendo que na Inglaterra, o influente The Daily Telegraph publicou matéria denunciando a produção de carne brasileira subsidiada por trabalho escravo.

Ora, ora, ora... Pois não é que a história está a repetir-se e não é como farsa, como dizia famoso barbudo do século retrasado? Provavelmente nem a repetir-se está a história, pois duvido que em algum momento a prática sobre a qual escrevo tenha terminado. Portanto, trata-se apenas da continuação da história, que longe está de terminar.

Os ingleses mandaram, então, um cônsul ao Brasil para averiguar como é produzida nossa carne?

Não, longe disso, perdido na lembrança está o tempo de intervenções tão claras, tão escancaradas como a do inglês na colônia lusitana relatada no livro. Nesses tempos modernos, onde há dinheiro em excesso circulando, onde a internet domina e boas ações são tudo na imagem, o processo foi diferente e inocente, foi através de uma fundação, um desses novos templos da boa vontade e da expiação da culpa universal.

Um produtor rural inglês – a matéria não diz se de carne ou de trigo, mas acho a dedução meio elementar até para o mais desmiolado Watson – ganhou uma bolsa de estudos Fundação Nuffield, e veio para a Terra de Vera Cruz investigar as condições em que nossa carne é produzida.

Trabalhador abnegado e dotado da santa visão dos ungidos pelo destino ou sei lá o que, nosso inglesinho não foi para as grandes e tecnificadas fazendas de gado do oeste paulista, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas, sul do Pará, Tocantins e Goiás, além das estâncias espalhadas pelos pampas. Não, nosso esperto inglês que de bobo nada tem – talvez só a cara -, foi direto para as áreas de abertura de pasto nos sertões amazônicos. Embrenhou-se nas matas em processo de derrubada, passando, antes, pelas fazendas de boca-do-sertão, onde meia dúzia de centenas de cabeças pastam no meio de troncos enegrecidos pelo fogo. Detalhe que, naturalmente, não passou despercebido do cônsul, ooooops, do produtor rural bolsista da fundação inglesa.

No coração da mata (será que ele leu Conrad e pensou no velho Kurt e sentiu-se, também, no coração das trevas?) descobriu a verdade: há trabalho escravo na Amazônia e é desse trabalho escravo que sai a carne brasileira que alimenta as bocas, mata os desejos por bifes e entope de colesterol assassino as veias dos pobres europeus e asiáticos com renda bastante para comprar um bife. Ali, enquanto destroem a portentosa floresta – crime do qual os ancestrais do inglesinho e todos seus vizinhos são inocentes, por suposto – os trabalhadores tupiniquins são espoliados e submetidos a brutais condições de sobrevivência, só comparáveis às encontradas nos terríveis programas de treinamento dos “Seals” ianques, dos Especiais israelenses e dos “SAS” de Sua Majestade, agora também igualados por renomados reality shows da tevê americana. Dormem em barracas rústicas, onde não há conforto, água encanada, eletricidade, não há isso e sem aquilo. Trabalham duramente todo dia, e o descanso no sétimo dia fica para quando acabar a empreita. É a praxe, quem vai conhece, é do ramo. Ganha melhor e não reclama, até acha bom.

Há trabalho dito escravo no Brasil? Sim, há o que é modernamente chamado de trabalho escravo, mas que nada ou muito pouco tem a ver com a real escravidão. Em boa parte dos casos, a maioria, mesmo, os processos abertos pelos fiscais vão a julgamento e dão em nada, pois não há como abrir fazendas em áreas de mata ou cerrado sem passar por dois, três, quatro meses de provações. Se a remuneração é baixa, se muitos patrões são maus pagadores, já é uma outra história, coisa para tribunais e multas, e para isso o país é dotado – caso único no planeta – de fantástico cabedal de leis e até uma justiça especial, específica, a Justiça do Trabalho. Daí a chamar qualquer coisa de “trabalho escravo”, satisfazendo os mais profundos instintos dos seres civilizados que vivem ao norte do Equador, há uma distância muito, muito grande. Aliás, pelo que vejo hoje, 97,62% dos funcionários de carreira de multinacionais e grandes empresas tupiniquins podem ser enquadrados nessa situação. Com a diferença de, geralmente, disporem de ar condicionado central à disposição.

Nosso bravo inglesinho retornou à velha e pérfida Albion – o “velha” fica por conta dos súditos saudosos de retornar à terrinha de S.M. e o “pérfida” fica por conta dos franceses, sabe-se lá por que... – e ali, na segurança da chuvinha londrina e devidamente abastecido com as libras da Nuffield, relatou suas descobertas ao Daily Telegraph. E o trabalho escravo tupiniquim voltou a ganhar mais manchetes na civilização. Ó, opróbio! E por toda a Inglaterra e outros locais igualmente do “bem”, consumidores e consumidoras identificados com os mais altos e puros desígnios da humanidade declararam-se contra a carne produzida em Pindorama.

Por enquanto isso deu em nada, afinal, os donos dos pães-de-açúcar, carrefours e extras da vida por toda a Europa estão mais preocupados, ainda, em comprar carne boa por custo idem. E isso é privilégio nosso. Somos os melhores do mundo nesse quesito. E em outros, como laranja, café, soja, açúcar e álcool de cana, frango, etc, etc, etc.

Nosso inglesinho, que o que tem de bravo tem de míope, não enxergou que essas áreas amazônicas produzem quase zero por cento da carne brasileira e, impressionante, absoluto zero por cento da carne exportada. Se ele quisesse ver a real produção de carne para exportação, bastava ter assistido a meia dúzia de capítulos da “América”, aquela novela onde o ator principal era o touro Bandido. A peãozada das fazendas que exportam já está mais pra figurante de novela global do que pra mão-de-obra escrava. São escravos, sim, mas apenas da moda e do último tamanho de fivela de cinto.

Pena que ninguém sabe disso. Nem mesmo aqui dentro, na Terra de Vera Cruz.


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