quarta-feira, abril 11, 2007

Devaneios canavieiros


Todo dia a gente corta, transporta e pica duas carroças de cana para suplementar o pastejo das vacas. Sempre sobra alguma coisa nos cochos, e essa cana que sobrou já fermentou, inda mais em dias quentes. A fermentação da cana gera um produto de muito agrado dos humanos em todas as alturas e latitudes, o álcool. E ao remexer essa cana fermentada lá vem o cheiro – por que não dizer perfume? – da iguaria proporcionada pela ação da temperatura e fungos (leveduras, quando cultivados com a finalidade de fermentar cana ou malte ou farinha) naturalmente presentes na cana. É um cheiro gostoso, inebriante. Talvez eu tenha cheirado demais nesses dias, dando, como resultado, esse texto.

(Percebo, em releitura, que esse “cheirado demais” ficou estranho e perigoso; mudá-lo, porém, significaria sucumbir à censura, no caso a auto, coisa que assaz me desagrada; portanto, cheirei demais, mesmo, a cana fermentada.)

Os canaviais estão cercando o Sítio das Macaúbas, sem falar que ele mesmo já dispõe de seu próprio canavial, chiquitito pero cumplidor, felizmente. Algumas áreas ainda resistem com seus pés de laranja, mas, sei não, pelo andar da carruagem, mais dia, menos dia, tudo virará imenso canavial, cumprindo-se a profecia de antiga música de antigo artista tupiniquim. A cana vem descendo o morro e tomando a paisagem


Santa Rita do Passa Quatro tem uma usina de açúcar e álcool em seu território, a Santa Rita. E mais algumas nos arredores, das quais a Ferrari, em Santa Cruz das Palmeiras, é a mais próxima. Falando nisso, quando tiver dinheiro e estiver morando no sítio, vou comprar um pedacinho qualquer de terra só para arrendá-lo pra Ferrari. Como fornecedor, terei direito a abastecer meu carro a álcool nas bombas da usina, pagando menos da metade do preço cobrado nos postos da região. E a usina ainda lucra ao vender o álcool por menos da metade de seu preço oficial. Também, pudera, esse álcool não precisa viajar até Paulínia, na Petrobrás, para depois voltar, num processo idiota, estúpido, imbecil, burro e quantos outros adjetivos possam existir nos Aurélios da vida. Dizem que essa é uma exigência da Petrobrás. Petroleiros dizem que a exigência é do governo. Não importa, o que conta, ao fim e ao cabo, é que o combustível poderia custar a metade do que custa para o consumidor, se fosse distribuído e vendido onde é produzido. Ao invés disso, circula centenas de quilômetros gastando combustível, dissipando energia, contribuindo para o efeito estufa, agregando custos e, o mais importante, somando impostos para alimentar a voracidade da máquina pública. Danem-se o ambiente, o consumidor e o futuro.

Pois bem, como dizia, um dia ainda arrendarei um pedacinho de terra pra usina, e virei a fazer parte do feliz mundo dos sustentados no todo ou em parte pela cana. Sim, sim, a cana sustenta. Trabalhar na usina é o sonho da rapaziada em toda parte onde há uma usina. Nem dá para comparar o brutal trabalho na roça, de sol a sol, de chuva a chuva, com o trabalho na usina, regido pelos horários, ritmos, salários e benefícios da indústria. O dinheirinho, pensando em termos tupiniquins, é bom, muito bom. O sujeito baseia sua vida nessa realidade e toca em frente, feliz ou menos infeliz, dependendo do gosto de cada um.

Bóia-fria, ou trabalhador temporário, sem o qual a agricultura não vive, é cada dia mais e mais difícil. Os que a gente encontra são os que estão arrolados no Departamento de Tranqueiras. Nenhum, quase, presta. É um povo que gosta do emprego, mas não do trabalho. Que exige a paga no fim do dia ou da semana, mas não deixa contrapartida sequer razoável em troca. É um pessoal tão tranqueira que não conseguiu trabalhar para nenhuma das usinas, para onde correm todos ao menor chamado. Bom, não são só as usinas que empregam o melhor da mão-de-obra volante, pois os laranjeiros também o fazem. A disputa é dura e o pior sobra para nós, que não somos usineiros ou laranjeiros.

A verdade é que a cana gera muito emprego, e esse emprego é melhor remunerado que a média de cada região onde tem cana.

Embora bonito de ver, não sou muito chegado às vastas paisagens tomadas pelos canaviais. Prefiro a diversidade, o mosaico multicolorido de culturas e pastagens, com seus limites ora arredondados, ora retilíneos, com diferentes coisas acontecendo em diferentes momentos do ano. Mas é difícil não concordar com o valor e importância dessa lavoura e sua indústria correlata, mormente quando se vive numa região em que ambas estão presentes.

As usinas têm capital, parques de máquinas, know how, corpos técnicos e profissionais capacitados para plantar, cultivar, colher, processar a cana e seus dejetos. Com isso, trabalham cada vez mais com maior qualidade e cuidados, o que se reflete na conservação do solo em toda a região. É comum o proprietário rural entregar sua terra para arrendamento já meio degradada, com problemas de erosão pipocando por toda parte. É quando chegam as máquinas da usina. São grandes, potentes, poderosas, produtivas... Chegam como as tropas americanas depois do Dia D, em grandes comboios desfilando suas cores pela paisagem. Em minutos ou horas dão conta de trabalhos de correção totalmente fora do alcance de qualquer produtor rural. Poucas semanas depois, o verde da cana já tomou conta de mais uma área onde vacas pastavam um pastinho ralo ou laranjeiras doentes definhavam à espera da motoserra.

Ao plantar e cultivar corretamente, com medidas de conservação e prevenção da erosão, as usinas preservam os cursos d’água impedindo seu assoreamento pelo escorrimento das terras superficiais. Ao mesmo tempo, incrementam os lençóis freáticos que vão alimentar fontes que, por sua vez, alimentarão os regatos e riachos e córregos diversos. O ideal é que tudo isso ocorra com a rigorosa preservação dos trechos de matas ainda existentes, geralmente pequenas áreas em grotas e áreas de fontes. Melhor ainda seria se houvesse um grande acordo envolvendo governo, sociedade e usinas, que as incentivassem (mais do que obrigassem) a criar novas áreas de preservação permanente.

Esse é, a meu ver, o grande pulo do gato para a expansão da cana pelas grandes áreas de pastagens degradadas de todo o Centro-Oeste e parte do Norte do Brasil. Por ali, muito mais que em São Paulo e Paraná, por exemplo, existem plenas condições para permitir o estabelecimento de grandes talhões de lavouras, cortados, divididos, por áreas de matas e matas ciliares. Vejo como plenamente factível, graças à importância e aos preços praticados, que uma nova área de plantio só possa ser tocada em frente com o compromisso de preservar o que já existe de vegetação nativa – o que é o óbvio e o mínimo – e, acima de tudo, com o compromisso, mais que isso, a missão de criar ou recriar novas áreas com vegetação nativa, protegendo fontes, rios, riachos, flora, fauna, ambiente, ajudando-nos a ter um futuro digno desse nome e sentido (futuro quase sempre é algo com conotação positiva).

Gostaria muito de ver usinas como a Nova Olímpia, do Mato Grosso, criadas em meio ao vazio populacional dos cerrados. Sim, lamento pelos cerrados, mas a verdade é que boa parte deles já se foi e meia dúzia de empregos foram gerados. Com uma usina, a cana toma o lugar da pastagem, as pessoas têm trabalho, fertilizantes e defensivos são aplicados para garantir boas safras e mais álcool estará sendo permitindo que nosso padrão e estilo de vida seja mantido com menor consumo de gasolina e menor geração de CO2.

Bom, mudar nosso estilo de vida, mudar nosso padrão de vida (nosso o que?), já é outra história, em outras esferas e tampouco impede ou tira a importância e necessidade de produzirmos mais álcool, junto com novos empregos.

Bom, nessa altura da manhã os efeitos da cheiração de cana fermentada no sítio já vão passando. Da cozinha chega outro cheiro, o do café sendo coado, e vou em busca dele. Se tem gente e carros movidos a álcool, creio que eu mesmo sou movido a cheiros. Bons, é claro.

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Um comentário:

Jerry Adrianni disse...

Gostei muito de ler este Post, que me faz pensarno que seria uma utopia se todos os produtores de alcool e açúcar pensassem deste modo na preservação pelo menos do que já é atualmente "protegido".
Digo isso porque, aqui nesta região de Ourinhos onde estamos cercados por mais de uma duzia de Usinas, grandes e pequenas, num raio de cem quilômetros, as coisas são bem diferentes e, quem conhece a verdadeira face dos donos de Usina, ou como são chamados por aqui, "Usineiros", e tem um pouco de olhar críico logo vê que por tras dos procedimentos para certificação de qualidade e/ou qualidade ambiental, existe uma gama de atitudes para esconder erros dos certificadores e ai de quem falar diferente na frente do fiscalizador da empresa de certificação. Verdadeira operação de guerra, para limpeza das evidencias de crime ambiental, quando da proximidade das visitas de certificação. Por isso Torço muito para que um dia eles venham a pensar assim, mas realmente não acredito nem umpouco nesta possibilidade. E finalmente, quanto ao salário, aqui funciona na base do: se quiser é isto que pago, se não quer , não tem problema, tem dez na fila querendo.