Essa história que agora termina começou há muito tempo. Pelo tempo dela, há 112 anos. Pelo nosso, há dezesseis. Toda uma vida, essa é a verdade. E muitos de vocês tiveram parte nessa vida, em um ou muitos momentos.
Cheguei em casa uma noite e lá estava aquela coisinha bege-clara, já serelepe. Meu filho, todo satisfeito, disse que ela estava na calçada, sozinha e abandonada. Bom, aqui em casa podemos ter vários defeitos, não que tenhamos, mas talvez tenha gente que ache, né, mas uma virtude nós temos, todos nós: somos apaixonados por animais. Sempre fomos, felizmente. E não enxergo minha vida presente ou futura sem a companhia deles. Mas naquela noite minha primeira reação, até falsa, mas necessária, foi uma bronca: “Nós acabamos de trazer a Natasha e agora você pega outro filhote? Vai complicar ter dois cachorros nessa casa.”
A essa altura eu já estava sentado no sofá, olhando pra ela e pra Natasha, uma bola gordinha e fofa de pelo. Mal terminei a frase, aquele bichinho clarinho, meio magrinho, pelo que lembro, pulou no sofá e veio pro meu colo.
Rendição total, incondicional.
A Belinha, oficialmente, passava a fazer parte da família.
Enquanto a cocker pura Natasha, aristocrata com nome aristocrático (pelo menos na Rússia tzarista), era folgada, cheinha e comilona, a Belinha era elétrica, magra e comilona, também, mas nada exagerado. O que comia, gastava em pulos e corridas.
Quem não convive com cães, gatos, vacas, cavalos e outros seres não-humanos, sequer desconfia da riqueza que é esse mundo. Cada um tem sua própria personalidade, ah, como tem. E alguns a tem muito forte, como a Belinha. Ela era mandona, autoritária, desde o começo foi a dona do pedaço, chefe incontestável. Até o poderoso Truck, meu saudoso doberman, quatro ou cinco vezes maior que ela, com uma dentição poderosíssima, nunca se atreveu a desafia-la. Respeito é bom, e ela gostava.
Morávamos ainda
Enquanto ela passava o arame, dando voltas e mais voltas, a Belinha permaneceu sentada na passagem da cozinha para o corredor, observando atentamente. Pouco depois, café tomado, fomos lá dar uma olhada e comentei que agora ela não escaparia mais. Ao voltarmos para a cozinha, a surpresa: a Belinha fizera um enorme xixi bem embaixo da mesa onde tomávamos o café. Tão grande que parecia uma lagoa. E, da entrada da cozinha, olhava para nós. Seu olhar era claro e a sua bronca conosco também. Ela nunca tinha feito aquilo e nunca tornou a fazer. Deu seu recado e sentiu-se satisfeita, afinal, ela não era cachorra de levar desafora pra casa.
E o tempo passou, ou passamos nós pelo tempo. Ela pariu duas vezes. De sua última parição estão conosco a Branca e a Mel. Ver a Belinha cuidar dos filhotes era diversão pura. Numa tarde de domingo, fizemos um churrasco na varanda como era habitual. Trouxemos os filhotes e deixamos que ficassem por ali, participando da pequena festa que era cada churrasco. Mais pro final, abri o portão e liberei a passagem do Truck. Como ele era muito grande e adorava carne, às vezes era difícil convencê-lo que deveria contentar-se só com os pedacinhos que dávamos e que aquele grande e maravilhoso naco de picanha era exclusivo dos bípedes, vedado aos quadrúpedes. Pois bem, portão aberto, o Truck disparou no rumo da churrasq... Opa! Brecou, literalmente, no meio do caminho. Entre ele e a churrasqueira estavam os filhotes da Belinha. E ela deitada, placidamente, olhos meio abertos, meio fechados (difícil dizer qual a opção correta), do lado deles. E ali ficou o Truck, ansioso, olhando ora Paraná a churrasqueira, ora pros filhotes, ora pra Belinha. Mesmo chamando por ele, mostrando um pedaço de carne, ele não passou. Como os filhotes já estavam sonolentos, levamos todos para a área de serviço e aí o Truck sentiu-se livre e foi saborear seus merecidos pedaços de churrasco.
Ah, são muitas histórias, muitos causos, ela gostava de algumas pessoas e não ia com a cara de outras. E claro que nunca disfarçou nada disso, sempre foi honesta.
Foram pouco mais de dezesseis anos de vida em comum, quase dezessete.
Um maldito câncer tomou conta de seu corpo no final. Quando diagnosticado, achamos melhor nada fazer, pois a cirurgia seria grande e cruel, e sequer havia certeza que ela sobrevivesse à anestesia. Como não sentia dores, optamos por deixa-la viver enquanto desse. E viveu até bem. Começou a ficar pior quando surgiu outro foco no ouvido esquerdo. Esse começou a incomodá-la, levando-a a gemer muitas vezes, na tentativa inútil de coçar ou arrancar. Apesar disso e da idade, ela estava lúcida como sempre, bebendo e comendo. Ah, comendo muito bem. Aproveitou bem seus últimos dois anos de vida e só comeu do bom e do melhor. Carnes ao gosto, picadinhas, pois seus dentes, com tantos anos de uso, já eram. Hoje cedo fez sua última refeição. Devia estar gostosa, como sempre, pois comeu bem e tudo. Com a comida, dois comprimidos de um calmante forte. Adormecida, não chegou a perceber a chegada da veterinária e pouco sentiu a picada da agulha e a anestesia. Minutos depois, o remédio que levou-a embora.
A Belinha, fisicamente, deixava de fazer parte de nossa família. Só fisicamente.
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5 comentários:
Cara... eu continuo dizendo que bicho da gente não devia morrer.
Que triste isso porra.
Só quem tem bicho e gosta deles entende esse sentimento.Ela deve ter sido muito especial, viveu cercada de carinho e foi embora com amor e respeito.Mereceu esse texto lindo e certamente continuará a fazer parte da família.
quando minha familia tinha a TETECA, uma mistura de vira com tomba lata,era mais ou menos assim, meu pai , turrão, durão, um dia sumiu a teteca e qual nao foi o desespero de minhas irmas, um ano se passou do outro lado da cidade meu pai , o turrao, se encontrrou com teteca, vivendo em outra casa, pra encurtar,. muit aconversa e discursão depois ressarciu a "dona" e levou de volta a teteca.seis anos depois a familia acostumada com suas peraltices so foi dar falta dela tres dias depois de eu te-la enterrado em um campo.preferi nao contarno dia, acordei e ela estava na escada que me levava ao trabalho , foi a forma dela se despedir, sinceramente foi meu ultimo animal de estimação, foi duro. desculpe o texto, mas eu queria ter dito o que voce disse a 15 anos atras.
Ai Emerson, que tristeza. Eu também tive um cachorrinho por 13 anos e foi difícil esquecer o bichinho, já se vão 7 anos, mas nunca mais quis saber de cachorro, gato, nada. Agora eu e meu namorado estamos pensando em pegar um cachorrinho, já que ele nunca teve um e está encantado. Morro de medo, porque é triste demais quando o fim chega, mas vamos pegar o bichinho, porque no fundo vale a pena. Lendo seu texto, fica claro desde o início do texto que o fim seria triste, mas valeu por conhecer tantas lembranças boas. Abraço!
Puxa, recentemente eu postei um poema sobre meu cão Hägar, que morreu há alguns meses, e que me fez chorar como eu nunca imaginaria por um animal...
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