sexta-feira, outubro 05, 2007

Uma viagem há trinta anos


Mais ou menos por esses dias completei 30 anos de minha primeira e inesquecível viagem para a região amazônica, se bem que o correto é dizer para uma das muitas regiões amazônicas, pois são muitas e diferentes as diversas Amazônias. Já naquela época existia a gritaria a respeito de queimadas na região, gritaria e queimadas que persistem até hoje, e cujos efeitos fazem-se sentir, menos o dos gritos, mais os das queimadas.

Fui para lá a convite de uma grande empresa multinacional que tinha comprado uma enorme fazenda para a criação de gado. Eram 140.000 hectares, ou 1.400 quilômetros quadrados (o município de São Paulo tem pouco menos de 1.600 quilômetros quadrados, para comparação), localizados na parte sul da floresta amazônica propriamente dita de terra firme.

O motivo da viagem para um grupo de jornalistas (eu, infelizmente, não era, mas fui como gerente da sucursal de uma revista agrícola de prestígio e levei comigo a jornalista que trabalhava para a revista em São Paulo) foi mostrar a fazenda e desmentir o noticiário que já tinha corrido o mundo meses atrás, dizendo que a empresa estava “queimando a Amazônia”.

Precisaria de muito tempo para escrever e muitas laudas para contar o que foi a viagem e seus diversos impactos sobre minha visão do Brasil, do futuro e do mundo. Naquele distante ano de 1977 eu era um idealista militante político de esquerda, frequentemente colocando a ação política acima de minhas obrigações familiares, mas nunca acima de minhas obrigações profissionais (triste, eu sei, mas só vim a reconhecer isso muito tempo depois, arrependendo-me de ter negligenciado a vida familiar em prol da política e da profissão, essa muito menos que aquela). A história completa talvez conte em outra hora.

O que causara as manchetes nos jornais europeus e americanos? Por que a gritaria ganhava foros tão amplos, 15 a 20 anos antes da globalização, internet, comunicações instantâneas entre as pessoas? As fotos feitas a 400 km da Terra pelo Skylab, um misto de estação espacial e satélite que fotografou as grandes queimadas, cobrindo áreas de milhares de quilômetros quadrados. Era tudo muito assustador. Muito mais do que a realidade. Na verdade, o que aparecia como grandes incêndios, era mais o aumento da temperatura a cobertura da camada de fumaça do que o incêndio, a queimada, propriamente dita. A tecnologia de sensoreamento remoto ainda apanhava um pouco na época, mas a tecnologia das manchetes catastróficas já era de pleno domínio por toda parte, desde sempre, aliás.

Curiosamente, ao chegar na fazenda, fui o único dos visitantes que aceitou sobrevoar toda a região num pequeno monomotor Cessna. Os demais passaram o dia desse vôo em agradável descanso na sede da fazenda. Interessante, esse fato, aprendi muito com ele.

Aprendi mais ainda com o vôo, não só por gostar e ter voado muitas horas, mas também por ter um domínio razoável de geografia e saber localizar-me com relativa precisão. Em dois sobrevôos, cobrimos todos os pontos cardeais da fazenda e seu entorno. Durante muito tempo nada vi embaixo da gente que não fosse o verde intenso e sem falhas da floresta. Mas vi, também, as áreas abertas naquela fazenda e nas vizinhas. Do ar e da chão.

No outro dia, andamos pela fazenda num veículo com tração nas quatro rodas. Novamente, a maioria do pessoal ficou pela sede e seus arredores, mas o meu interesse não era ver casas, escola, conversar com pessoas. Até vi e fiz tudo isso, mas rapidamente. O que eu queria, mesmo, era ver pasto, era ver mata, era ver as áreas em processo de abertura, era ver queimada. Vi tudo isso e mais: pegadas de onça numa picada nova, numa área que viria a ser queimada talvez no ano seguinte. Lembro com clareza da emoção que senti ao ver aquelas pegadas na terra vermelho-alaranjada exposta à luz depois de centenas, talvez milhares de anos coberta pela floresta.

Fui tomado por sentimentos contraditórios. De um lado, queria, como sempre quis e quero, a preservação integral e perpétua da floresta. Por outro lado, reconhecia, como reconheço, a necessidade de gerar riquezas, empregos, desenvolvimento, proporcionar vida decente para milhões de pessoas, coisas que, inevitavelmente, conflitam com conceitos como preservação absoluta, por exemplo. Seja aqui, seja na África, Ásia, Oceania, Sibéria, Antártica...

Aquela fazenda era vítima de uma gritaria desproporcionalmente alta em relação à realidade. De sua área total, ela podia, legalmente, desmatar 70.000 hectares, a metade. Todavia, o plano de ocupação e desenvolvimento da fazenda, ocuparia apenas 56.000 hectares, ou seja, os demais 14.000 seriam incorporados à área de preservação permanente. Até aquele momento, no quarto ou quinto ano de ocupação e formação da fazenda, um total de 40.000 hectares haviam sido queimados e preparados para o plantio de pastos. As queimadas eram feitas em áreas delimitadas e controladas, nunca passando de 500 hectares de cada vez, mas geralmente bem menos. Enfim, o diabo era feinho, mas infinitamente menos do que diziam ser.

Ah, sim, as pessoas, não falei delas, ainda.

Muita gente trabalhava na fazenda, a maioria, claro, pessoas ocupadas em trabalhos braçais ou de pequena especialização. Peões de obras, peões de fazenda, vaqueiros, eram a maioria. A empresa levou de São Paulo para lá, assistentes sociais para ensinar às pessoas coisas como o uso de banheiros, vale dizer, o uso das privadas com um luxo como água corrente. As mulheres eram ensinadas a usar... torneiras. Incrível, não? Mas, verdadeiro, eu vi e conversei com essas pessoas.

A molecada era um caso à parte. Na fazenda, todo mundo com menos de 16 anos de idade, estudava e não trabalhava. Algo impensável ainda hoje nos sertões do Brasil. A escola, única, era grande, confortável, janelas teladas, pé-direito alto, em pleno calorão amazônico as salas de aula eram frescas e confortáveis. As professoras, todas, eram recrutadas em São Paulo, donas de excelentes currículos, muito acima da média das professoras de escolas públicas e privadas da metrópole. Todo o material escolar, gratuito, ia de São Paulo para a fazenda. Isso me marcou, marcou muito, para sempre.

Fora tudo isso, o básico para uma comunidade: posto de saúde (muito bem equipado), um clube para o lazer dominical, igreja, templos, etc. Toda a área da sede era servida por energia elétrica, gerada por um “locomovel”, um gerador gigante com cara e jeito de locomotiva a vapor, alimentado pela madeira das áreas abertas para pasto. Funcionava das seis da manhã às dez da noite, para todos, sem exceção, inclusive o presidente mundial da empresa quando por lá passou e pernoitou.

Essas coisas todas somadas davam-me uma doce visão de um futuro possível. Pena que, ao olhar para o horizonte, via os penachos negros da fumaça de uma queimada.

Confesso que ainda não resolvi totalmente essa contradição entre desenvolvimento e preservação em minha cabeça, mas já adiantei bastante a resolução, e ela passa, obrigatoriamente, pelo máximo possível de preservação. Desde então, foram inúmeras minhas viagens pela Amazônia, nos seus mais diferentes pontos e cenários. Tenho claro que o ideal, hoje, seria uma parada total e permanente de qualquer nova abertura, de qualquer nova destruição de florestas, desejo, infelizmente, utópico e motivado, também, por um motivo egoísta, talvez, e que muita gente desconhece: o regime de chuvas do interior do estado de São Paulo, assim como parte do Paraná, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, é determinado pelos “rios voadores”, frentes úmidas que são formadas na Amazônia e empurradas para toda essa região pelas correntes atmosféricas. Chega a ser assustador descobrir esse fato e pensar no que ocorre hoje em toda a região amazônica.

Isso tudo seria uma introdução para falar sobre a expansão da lavoura de cana pela Amazônia, mas o que era introdução virou um texto com vida própria.

A conversa sobre a cana fica para depois.


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