Chuvas,
inverno e pastos
À guisa de introdução
e escrito para um amigo que anda pensando em saltar de São Paulo para a roça: essa
história de deixar Sampa e vir pro sítio, bom, só digo uma coisa: ainda bem que
arrependimento não mata, pois já estaria mortinho, tão grande é meu
arrependimento ao pensar nos muitos anos que fiquei em SP adiando a vinda para cá.
Enquanto escrevo, termina a ordenha, dá pra ouvir a Prata FM com sua
programação sertaneja, as angolas aporrinhando de tanto dizer que “tão” fracas,
passarinhada cantando pelas árvores e outros clichês, todos eles bons demais. O
dinheiro é curto e o trabalho é muito, mas é “bão” demais.
Acordei no meio da madrugada com o barulho da chuva. Mais pra chuvinha do que pra chuva, uma garoa metida a besta, digamos. Depois de um junho
com várias chuvas dignas desse nome, devidamente acompanhadas pelo barro, esse
garoão de início de julho é outra bênção dos céus para nós. Não para todos nós,
como sempre, pois, mesmo fraco, irá atrapalhar um pouco o final da colheita do
café de muitos produtores, bem como dos talhões de milho que ainda restam. Mas os
nossos pastos continuarão verdinhos, bonitos de ver e... quase sem utilidade
real, pois não terão massa, não terão volume suficiente de capim para as vacas
se alimentarem.
Tudo seria diferente se eu tivesse feito uma sobressemeadura
de aveia e azevém, porém, como era de se esperar e de acordo com as Leis de
Murphy, não fiz. E choveu. Se tivesse feito... não teria chovido e teria
perdido o dindim das sementes, caras pra
burro. É assim que é e o jeito é navegarmos de acordo com essas verdades
imutáveis.
Aqui cabe uma explicação: nossos pastos, como a maior parte
dos pastos brasileiros, são formados por capins tropicais: mombaça e tanzânia,
que são varietais do famoso colonião, e braquiária. Ora, capins tropicais
precisam de muita luz, muita água e muito calor para crescerem. Os coloniões
diversos precisam, também, de muita fertilidade no solo. Na verdade isso é
falso, é lenda urbana, pois todo e qualquer capim precisa de solo fértil para render
alguma coisa, seja colonião, elefante, gordura ou braquiária. Baixa fertilidade,
pouco capim. Alta fertilidade, muito capim. Falando ou escrevendo é simples,
mas na vida real é diferente. Muita gente ainda hoje acha que pasto é pasto,
basta pôr a vacada em cima e tchau. Triste, cara e empobrecedora ilusão.
Voltando ao tema: como disse,
tivemos chuvas em junho e agora esse garoão julino e o capim tá verdinho que dá
gosto, mas sem massa. Porque faz frio. Não importam os vinte e tantos graus do
meio do dia, o que importa é a mínima, que nessas Terras Altas Paulistas anda
na faixa dos doze aos catorze, às vezes quinze graus. Ora, com uma mínima de
dezoito graus os capins tropicais diminuem o ritmo de crescimento. Com uma
mínima de quinze eles, muito simplesmente, param de crescer.
Aveia e azevém são gramíneas de
climas temperados, pouco suscetíveis a esse friozinho tupiniquim. Se tiverem
fertilidade, luz e água crescerão, mesmo com o frio. Daí a tal sobressemeadura,
que nada mais é que botar um balde com calcário e sementes das duas gramíneas, tudo
bem misturado, e todo dia, antes de abrir um piquete para a entrada de suas
senhorias, as vacas, botar o balde aninhado junto ao sovaco esquerdo e caminhar
pelo piquete, jogando a mistura calcário/sementes com as mãos.
Esqueçam as luvas, elas não funcionam,
o serviço tem que ser feito com as mãos nuas, mesmo. O diabo é a brisa que
sopra bem na hora em que estamos arremessando as sementes em gracioso arco (muito bonito em slow motion, nos documentários agrícolas,
apesar do pó), o que acaba trazendo um mundo de calcário direto para o nariz e
a boca, aberta a troco de nada. Mania mais besta essa, sô!
O calcário é para facilitar a
mistura, a pegada e o arremesso, além de marcar onde já jogamos. E fazer o
serviço todo dia, antes de abrir o piquete, é para que as vacas pisoteiem as
sementes e completem o serviço.
Teria que ter feito a sobrressemeadura
em abril, comecinho de maio. Não fiz, pois pensei que as chuvas parariam como
pareciam que iam parar. Coisas da roça e da vida.
Seja como for, é muito bom ser
acordado no meio da madrugada pelo barulhinho gostoso da chuva. Nem se compara
ao acordar com câimbras ou a maldita coceira da psoríase. Ouvi um pouco, o
suficiente para perceber que era mansinha, sem ventos e, principalmente, sem
raios e trovões, o que teria me obrigado a levantar para ir desligar o tanque
de refrigeração do leite. Embalado por essa cantiga tão antiga como o mundo
voltei a dormir, pensando, com uma pontinha de amargura, no azevém e na aveia
que não sobressemeei. Ano que vem será diferente.
Ou não... Afinal, quem já ouviu
falar em dois anos seguidos com invernos chuvosos nesses tempos de aquecimento
global e previsões acuradissimas?
Eu é que não.
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