sexta-feira, agosto 04, 2006

Pássaros, calor e uma terma na beira do Pantanal

“Já ontem, ao caminhar lá fora sob um sol de esturricar os miolos, a temperatura beirando os 40, vi um bando de pássaros na calçada. Todos eles de bico aberto, ofegantes! Nunca vi isso. Espero nunca ver de novo.”

Tirei esse relato do blog de um amigo que não mora em São Paulo.

Não, tampouco mora nos arredores do Raso da Catarina, na caatinga baiana. Parece até uma descrição de alguma cidade à margem do Pantanal Matogrossense no alto verão, mas não é. E não é, também, nenhuma cidade no meio do imenso pampa.

Meu amigo C J Ballantyne (e que não se deixe levar pelo belo e sugestivo e, vá lá, saboroso nome) mora em Washington, DC. Isso mesmo, ele mora na mesma cidade em que mora o George Walker, conhecido popularmente como Presidente Bush. E, com essa proximidade (vai ver tomam café na mesma padaria...), me pergunto se Mr. Bush chegou a ver outro bando de pássaros ofegantes, com os bicos abertos, nos jardins imaculados da Casa Branca?

Duvido. Mr. Bush não me parece o tipo de sujeito que olha para uma cena

como essa. E também não se deixa sensibilizar por ela. Aliás, Mr. Bush não se sensibiliza nem com Kyoto, que dizer de um bando de passarinhos?

Bom, mas falei demais nesse personagem que me desagrada profundamente. Não tanto por suas ações externas, digamos, mas muito mais pelas internas, reduzindo e ameaçando a maior contribuição dos Estados Unidos à humanidade: o respeito aos direitos civis. Mas disso falo em qualquer outra hora, não agora.

... ... ...

Há coisa de dois ou três meses eu estava no Mato Grosso, viajando por todo o estado, gravando fazendas, armazéns, lavouras, o de sempre, o que gosto. Tínhamos chegado cedo à fazenda, localizada na borda do Pantanal. Aqui cabe uma explicação. O Pantanal do Mato Grosso é uma grande bacia, que foi um mar há algum tempo atrás, coisa de poucos milhões de anos: Mar de Xaraés. É uma região baixa, entre 100 e 140 metros acima do nível do mar. Sua grande calha de escoamento, o Rio Paraguai, tem um desnível médio quase imperceptível, coisa de 1 a 1,2 centímetro por quilômetro. No Brasil, suas divisas ao norte, nordeste, leste e parcialmente sudeste, são as escarpas do Planalto Central. Em alguns pontos são abruptas, e despencam 150, 200 metros. No alto das escarpas, no Planalto, planta-se soja, milho, algodão. Cria-se gado. Estávamos numa dessas fazendas em abril, e a seca desse Ano da Graça de 2006 já tinha começado. Mas naqueles dias algumas chuvas passageiras visitavam a região.

Enquanto meu cinegrafista gravava a região, sem espaço para mim no pequeno aparelho voador, um ultraleve, fiquei em terra, olhando o céu, olhando as árvores, passeando pelo pomar cheio de ninhos e passarinhos.

De volta à sede e ao escritório da fazenda, protegido pela gostosa sombra de um fícus, voltei minha atenção para um grande bando de pássaros-pretos. A manhã já ia adiantada, o sol alto, o calor forte e a passarinhada saía do pomar e pousava numa poça grande de água de chuva na beirada da rua de terra batida que ligava os silos e a oficina ao escritório. Uma testemunha solitária de uma chuvarada isolada. O bando, com muito mais de cem passarinhos, descia em meio a uma forte algazarra e pintava de preto boa parte do contorno da poça.

Subitamente, por nada ou por alguma coisa de mim desconhecida, todos levantavam vôo e voltavam para as árvores do pomar. Não demorava 15 minutos, estavam de volta, e recomeçavam os banhos, o tititi e o converseio em volta da piscina.

Numa das voltas encontraram alguns canários-da-terra e rolinhas. Não houve acordo, não houve conversa, e foram todos expulsos. Gostam de exclusividade os pássaros-pretos, ou talvez não gostem de platéia para seus banhos. O sol foi subindo no céu, o mercúrio na escala do termômetro.

Pouco depois, em novo retorno à terma, pois, com o calor, era nisso que se transformara a poça d’água de chuva, lá estavam os canários-da-terra novamente. Dessa vez, contudo, não levantaram vôo, continuaram a se banhar. Apesar dos protestos indignados de parte do bando, nada foi feito e todo mundo ficou por ali, aproveitando a manhã quente e a água gostosa.

Passado algum tempo meu pessoal retornou e fomos pra cantina, onde matrinchãs preparadas com capricho nos esperavam. A seca continuaria, como continua até agora e continuará por muitas semanas mais. Fiquei pensando onde aqueles bandos barulhentos iriam encontrar água para seus banhos e para beber, no meio do cerrado transformado em lavoura. Os pássaros ofegantes e de bicos abertos de Washington lembraram-me dos banhistas da terma da poça-d’água.

Como estarão eles agora? Os do sul e os do norte?

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2 comentários:

Anônimo disse...

O equilibrio, qualquer equilibrio,incomoda o ser humano e ele na sua busca pelo nada, vai chegando cada vez mais perto...

Anônimo disse...

Emerson,

As gralhas (ou serão starlings) daqui do norte das américas voltaram a fechar o bico hoje nesta sexta-feira que já se esvai.

É que na quinta-feira ao atardescer passou por Washington um fragemento de frente "fria" que trouxe distantes relampejos e uma pancada de chuva -- gotas grossas como bolas de ping-pong --que durou exatos 38 minutos.

Mas a temperatura baixou. Daquela beirante aos 40 àquela outra por volta de 30.

Penso nos pássaros do planalto, do pantanal (sei lá, eu sou um rapaz de Copa) e penso na luta pela hidratação.

E penso nos ritmos das espécies que parecem competir caoticamente pelo mesmo recurso -- tipo, água -- e que mesmo assim conseguem organizar um horário que lhes é próprio.

(Só vi pássaro ameaçando pássaro na época da cria, quando os corvos queriam comer os ovos de x, y e z. Mas isso já é outra estória. Estória de pássaros urbanos.)

(continua...)