Quarta-feira, começo de junho, noite fria em São Paulo, mas não muito. Noite paulistana, daquelas que dão um prazer enorme por simplesmente poder sentir o frio gostoso e aconchegar mais a blusa ou a coberta. Essas noites são mais quietas, mais tranqüilas, a cidade que pulsa sem parar cada vez mais e mais depressa... relaxa.
Saímos do cinema no shopping na beira da Raposo Tavares e primeiro meu ouvido, depois meu olhar, foram atraídos pelo espoucar dos fogos e o brilho dos rojões estourando no céu e iluminando a noite sobre o Estádio do Morumbi, a uns três, talvez quatro quilômetros
Indiana Jones IV
Vou falar dos ídolos, primeiro. Spielberg, Lucas, Harrison Ford e, claro, mais importante que eles, Indiana Jones. Reparem não, dou-me o direito dessa liberdade, separando criatura de criadores e dando a ela importância maior do que a quem deu-lhe a vida.
Em outra noite, já perdida na memória, saía de um cinema fascinado por mais uma aventura de Indy, dessa vez ao lado de seu pai, e perguntava-me, perguntávamos todos uns aos outros e a nós mesmos, quando veríamos o Indiana Jones IV. Dependesse de nós, apenas, isso já ocorreria no dia seguinte, ou na semana, no mês, o mais tardar no ano seguinte.
Porém, não foi assim. Passaram-se nada menos que 19 anos, o tempo de uma vida, o tempo de uma geração, para que sonhássemos novamente, com mais uma aventura do professor de arqueologia que conquistou nossos corações e mentes.
Falar o que desse novo Indiana Jones?
O mínimo e o máximo que posso dizer é que é mais um Indiana, e isso, para quem conhece e gosta, já diz tudo.
Nesse episódio, cujo final deixa sutis sinais de um quinto – quem sabe? – episódio, Lucas, Spielberg e Ford não deixam passar em branco o que vive hoje a mais rica e poderosa nação do planeta. O Indy de quem o FBI de Hoover suspeita e do qual ele reclama acidamente, é a personificação da Lei Patriótica de Bush. Sua frase “estão enxergando comunistas por toda parte”, nada mais é que a transcrição da realidade presente, onde as forças de segurança enxergam terroristas onde outrora McCarthy e seus seguidores enxergavam comunistas. Eu gostei, afinal, cresci num tempo em que dissecávamos um pueril verso perdido numa música, procurando nele significados ocultos de crítica ao sistema, ao regime militar. Sou da geração dos caçadores de sinais perdidos que desafiavam a censura dos generais.
O filme tem vários outros sinais, ou referências, facilmente percebidas para quem assistiu os anteriores.
Dezenove anos depois... O tempo passou, mas para minha mente sonhadora parece que foi ontem que deixei o cinema feliz depois de ver o Indy III.
“Carne Viva”
Terminado o filme, não poderia ir embora sem passar pela livraria. Ando em falta com esses locais maravilhosos, tão importantes na minha vida. Carregado de culpas, venho comprando meus livros pela internet, todos eles. É barato, sobretudo, e prático, mas tremendamente sem graça, sem charme, quase sem prazer. Nessa noite de quarta mudei meu script e comprei um livro na livraria sem ser a do aeroporto. Uma compra que não poderia, jamais, deixar de fazer: o último livro de Paulo Francis, para mim, ídolo maior que os cinematográficos e, mais que ídolo, guru, qualquer coisa assim, como já disse.
Comecei a ler Paulo Francis no Pasquim, uma coisa ou outra. Também li no Opinião, antes de começar a lê-lo na Folha, que só comprava nos dois dias da semana em que ele escrevia. Isso foi no começo dos anos setenta e eu nada, ou quase nada, sabia do mundo d’além Brasil. Ou d’além São Paulo e Minas Gerais, que era tudo que conhecia. No final daquela década, mais vivido, mais lido, mais sabido, na minha opinião, e já um quadro partidário, ainda militando numa clandestinidade mais light, por força da distensão lenta, gradual e segura de Geisel, li seu primeiro romance, “Cabeça de Papel”.
Marcou-me.
Antes que os 70 terminassem, veio o segundo, “Cabeça de Negro”, outra cacetada. Na noite de seu lançamento em São Paulo, vi Paulo Francis ao vivo pela única vez na vida. Trocamos meia dúzia de palavras protocolares, enquanto ele punha singela dedicatória e assinava meu exemplar, que conservo com carinho e ciúmes extremos até hoje.
Os dois “Cabeças” fizeram minha cabeça, abriram-na até sem grande dificuldade, pois ela já estava preparada, já percebia ou intuía que muitas de minhas fracas crenças eram mortas e sepultadas, como Inês.
O papel, a ação e a importância das esquerdas, que eu já revia a duras penas, sozinho, ressabiado, inseguro, ganharam novos contornos e certezas com essas leituras.
Descobri que a visão que eu tinha do Brasil, meio bagunçada e com vergonha de expor e comentar, não era coisa unicamente minha. Paradoxalmente, até melhorei minha visão e consolidei minha visão da Revolução de Outubro. Paulo Hesse e Hugo Mann, os protagonistas, fizeram mesmo minha cabeça.
Desde aquela noite ainda mais distante, vivida num outro país, num outro mundo, numa era em tudo diferente dessa e em tudo semelhante, sem tirar nem pôr, esperamos pelo terceiro e prometido “Cabeça”, talvez nunca escrito, talvez rascunhado, o livro que dar-nos-ia a chave para fechar nossa compreensão sobre o Brasil.
“Carne Viva” não é o fechamento da trilogia, é somente o último romance de Francis.
Pena que não seja o final da trilogia, mas não importa, Paulo Francis está nele e isso basta. Comecei a leitura, ainda não acabei. Vários compromissos tiram o tempo que deveria ser da leitura. Ele terminou de escrever “Carne Viva” talvez um ano ou pouco mais antes de morrer, em 1997, mas já deu para perceber que o olhar de Francis continua arguto e, vá lá, usarei a palavra que queria evitar, premonitório, tal como em “Cabeça de Negro”, principalmente.
A noite dessa quarta-feira ficará
Assistam o filme e, principalmente, leiam Paulo Francis. Ele, melhor que qualquer outro, ajuda muito a entender o Brasil.
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