Assim começou a manhã de quarta-feira, 7 de janeiro, para mim. Provavelmente para muitos outros, também, todos eles produtores de leite e fornecedores de um grande laticínio paulista, como eu. Todos, como eu, devem ter ligado logo cedo para o seu interlocutor na empresa, a pessoa que compra nosso leite e passa orientações e informações diversas. Venho ligando para ele, o comprador, há vários dias, desde antes do Natal. Nas duas primeiras ligações fui atendido, ambas antes do Natal. Depois disso, não mais. Já estou sabendo que isso não é privilégio meu, pelo contrário, pois um vizinho que também entrega seu leite para eles não tem sido atendido.
E por que cargas-d'água estou eu ligando para o pobre homem logo às sete horas da manhã, insistentemente?
Porque nesse horário eu fico sabendo que minha conta bancária continua sem o depósito do dinheiro que me é devido pela indústria, simples assim. Vamos ver, então, que dinheiro é esse.
Durante o mês de novembro, que começou há 68 dias e terminou há 38, com chuva ou com frio (tivemos chuva, felizmente, e tivemos até frio nesse novembro último, tal como ocorreu em dezembro), as atividades no Sítio das Macaúbas não mudaram, nem mesmo aos domingos ou no dia de Finados. Por volta de seis horas da manhã, as vacas, já à espera na porteira do pasto, foram para o curral e pouco depois começou a ordenha.
Para fazer a ordenha há uma pessoa trabalhando, que recebe um salário por isso, e mais os encargos sociais de lei.
A ordenhadeira é mecânica, logo, precisa de energia elétrica para funcionar, energia que é cobrada religiosamente todo mês.
O leite é guardado num resfriador, ele também movido a energia elétrica.
As vacas comem um pouco de ração, ingerem alguns medicamentos homeopáticos, foram vacinadas nesse novembro contra a aftosa, comeram cana misturada com uréia, enfim, geraram inúmeras despesas para que, ao final, jorrasse o leite saudável, nutritivo, riquíssimo e com um toque de amarelo, típico das vacas Jersey e suas mestiças, o melhor leite do mundo por sua riqueza em proteínas, minerais e gordura.
Vale dizer que o mestre-cuca inglês e astro de TV Jamie Oliver, só usa creme de leite de vacas Jersey em suas receitas que deixam a boca cheia d'água.
O preço pago por esse produto em outubro, e repetido em novembro, foi de 53 centavos o litro. Isso aí: cinqüenta e três centavos de real por litro de leite, no meu caso um leite riquíssimo, de alto desempenho industrial, fazendo mais queijos, mais manteiga, mais iogurtes com menos leite que o de outras raças bovinas.
Não bastasse esse preço miserável, o leite produzido durante o mês de novembro ainda não foi pago. Até hoje, dia 7 de janeiro.
O certo, na minha visão e de todos os produtores que conheço, teria sido receber o pagamento no começo de dezembro, lá pelo dia 5. Só que a indústria, do alto de sua fortaleza empresarial, achou melhor pagar no dia 12 de cada mês. Em outubro, sem mais nem menos, mudaram a data de pagamento para o dia 20, uma tragédia. Como em novembro esse dia foi feriado – mais um – só recebemos no dia 21 de novembro pelo leite de outubro.
Em dezembro, o dia 20 fez o favor de cair num sábado, logo, ingênua e esperançosamente, acessei minha conta no dia 22 e...
Nada.
Nisso, chega um papelzinho, um papelucho, do laticínio, dizendo que o pagamento seria feito até o dia 24 de dezembro.
Bom, engoli a raiva e pensei que, dos males o menor, os caraminguás chegariam antes do Natal. Isso tudo passou por minha cabeça numa fração de segundo, pois a leitura da frase seguinte revelou algo ainda pior: o papelucho dizia que seriam pagos somente 70% do irrisório valor devido.
Os outros 30% seriam pagos em janeiro, fevereiro e março, 10% de cada vez, no dia 20 de cada mês.
Assim, sem mais nem menos. Como nos tempos da colônia, como se fosse um édito real, com o carimbo "Cumpra-se", não importando o quão absurda ou injusta fosse tal medida, tomada além-mar por El Rei.
Pois bem, o dia 24 chegou e se foi, assim como o 25, o 26 e até mesmo o dia 28, e nada do dinheirinho na conta. Nessa altura do campeonato, já tinha ligado para o digno representante, coitado, que é apenas um funcionário, que, constrangido, disse-me o dia 30 seria o limite para todos os depósitos, que eu ficasse despreocupado. Ansioso por agradar-me, disse mais: os 30% restantes seriam pagos de uma só vez em janeiro mesmo. Pelo menos a ligação serviu para desejar ao homem, ele próprio um produtor de leite, um feliz ano novo.
Quando pensava que isso era o pior, descobri que não era bem assim: estamos, repito mais uma vez, em 7 de janeiro e nem os miseráveis 70% entraram na minha conta, assim como não entraram nas contas de muitos outros. Dezembro já é passado e o ano de 2009 já entra em sua segunda semana. Eu, tolamente, não perguntei de que ano era o 30 de dezembro a que ele se referiu. Ingênuo e crente, acreditei que ele referia-se a dezembro de 2008.
Felizmente, não dependo do leite para viver, mas preciso do dinheiro do leite para pagar contas. As pessoas e empresas para quem devo nada têm a ver com a poderosa indústria e com o preço do leite. Mas eu tenho tudo a ver e a haver.
Que fazer?
Não quero ser chato, demagogo ou revolucionário de araque, mas enquanto isto o dono do laticínio certamente não teve problemas para abastecer com gasolina Premium sua Mercedes. Seus familiares tiveram Natal do mais alto nível e qualidade, em termos de presentes, luxo e produtos à mesa, além de locais paradisíacos onde comemorar essa e outras festas.
Tampouco teve problemas para pagar a conta da eletricidade, os salários de seu pessoal doméstico, o valor das compras no supermercado fino, repleto de iguarias d'Europa e Ásia, a começar, creio eu, por bons vinhos e melhores ainda espumantes, certamente merecedores oficiais do nome "champagne".
Agora pergunto: e eu, e nós todos, como ficamos?
Post scriptum em 9 de janeiro
Finalizando: liguei outras vezes para o representante, igualmente sem sucesso, até que atendeu, finalmente. Garantiu-me que o depósito (dos 70%) seria feito ontem, quinta-feira, 8 de janeiro. Ou melhor, como se diz no moderno e destroçado português tupiniquim, "estará sendo depositado".
Não foi.
Quem sabe hoje?
Quem sabe quando?
Mais dez dias e estará na hora de receber pelo leite de dezembro.
Enquanto isso vou pagando as contas.
Vou pagando para produzir leite e entregá-lo à indústria, cujos produtos – eu sou fiel – compro no mercado aqui perto, mas sem choro nem vela: sou obrigado a pagar à vista.
Somando as ligações feitas para o representante, todas em horário comercial, pois entendo que deve-se respeitar horários para tratar de negócios, gastei algo como sete a oito reais, no mínimo. Além do problema do leite estar a esse preço de miserê – R$ 0,53 por litro – tem o ganho real por litro, que nessa época de pasto abundante e despesa mais baixa gira ao redor de oito a dez centavos por litro.
Digamos dez centavos por litro: gastei,portanto, o "lucro" de 70 litros de leite, no mínimo, para cobrar uma posição sobre meu pagamento.
É leite pra burro.
Como já me disseram ene vezes, leite é pra burro.
Mas eu continuo sendo teimoso e crente, sigo acreditando que, se não é bom pra burro produzir leite, ainda é bom demais produzir leite. Sei lá porque, mas eu gosto e voltarei a aumentar a produção brevemente.
Para completar, um pequeno detalhe: como precisei vender várias vacas no início de 2008, estou com somente 7 animais no leite. Com o preço praticado, desisti das duas ordenhas e deixo a bezerrada mamar até o meio da tarde.
Tão pouco leite e nem assim recebo o que me é devido.
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2 comentários:
Olá Emerson,
Apesar de lamentável o episódio, muito legal o seu texto.
Publicamos no MilkPoint, com certeza dará uma forte repercussão.
Grande abraço,
Marcelo P. Carvalho
http://marcelopcarvalho.wordpress.com/
Olá, Emerson,
só passando pra deixar um abraço para o cronista nato!
Abs,
Ricardo CRF
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