segunda-feira, novembro 27, 2006

A caminho da extinção


Gosto de comédias românticas. Se for dirigida pela Nora Ephron e com o Tom Hanks e Meg Ryan, gosto mais ainda, como, por exemplo, “You've Got Mail”, ou “Mensagem Para Você”, em nossos cinemas e locadoras. Nesse filme, a Meg tem uma pequena livraria em Nova York – “The shop around the corner” – especializada em literatura infantil, e vê sua loja ameaçada e, finalmente fechada, com a chegada de uma mega-livraria bem próxima, oferecendo de tudo, de capuccino a livros com descontos. Tom Hanks é o principal executivo desse monstro do mal, claro, e os dois... Bom, quem não viu, veja. Comedinha gostosa para um fim-de-semana chuvoso.

Lembrei disso por conta de matéria no Estadão desse sábado, dando conta que caiu o número de cidades brasileiras com livraria. E cresceu o número das que tem provedor de internet.

De acordo com a matéria, em 1999, apenas 16,4% dos municípios brasileiros tinham provedores de internet para conexão à rede mundial de computadores; esse percentual evoluiu para um espantoso índice de 46% do total de municípios com provedores em 2005. Uma notícia alvissareira como a chuva que cai nesse momento. E esse número deve ser muito maior hoje, um ano depois, já que tudo relacionado à internet move-se a velocidades estonteantes.

Nesse mesmo ano, apenas 30,93% dos municípios da Terra de Vera Cruz tinham livraria, número que era de 35,5% em 1999 e hoje deve ser muito menor, até porque a livraria que tínhamos em Santa Rita do Passa Quatro fechou. Cheguei a comprar alguma coisa, mais para ajudar, mas não adiantou. O Brasil ainda não tem mercado para sustentar esses “luxos” fora das grandes cidades, onde as mega-livrarias, que já colocam no bolso aquela do Tom Hanks, ocupam mais e mais espaço.

Pelos nossos padrões eu sou um grande consumidor de livros, um heavy customer, comprando entre vinte e trinta livros por ano, pelo menos. E sempre fui membro daquela subespécie – Homo sapiens rattus bibliothecae – popularmente conhecida como rato-de-livraria e que parece, pelo andar da carruagem, a caminho da extinção. E com a minha decidida colaboração, pois há tempos nada compro numa livraria, exceto na do Aeroporto de Congonhas, onde comprar um livro ou dois é parte do ritual de viajar. Faço minhas compras pela internet. Confesso envergonhado, mas confesso.

Tanto na livraria do Aeroporto – pela pressa – como pela internet, fico privado de um dos prazeres que os livros nos dão: seus cheiros. Numa velha e boa livraria, às antigas, olho em volta, olho de novo, disfarço e, rapidamente, levo o livro ao nariz e aspiro seu perfume. Cada livro tem um diferente, mesmo nessa era globalizada e pasteurizada. Os livros antigos também têm, assim como também têm ácaros e assemelhados, motivo pelo qual é melhor mantê-los a certa distância do nariz.

Comprando pela internet a economia é sensível e nesses tempos de vacas magras e bolsos vazios, economizar é essencial, mesmo que só dê para sentir o cheiro do livro comprado quando ele chega em casa.

Nesse momento não vejo ibama capaz de reverter essas extinções: a das livrarias-livrarias e a dos ratos-de-livraria. E é chato ver esse movimento de mercado e mais chato ainda ser parte dele, satisfeito, mas a contragosto. Ou seja, é ruim, mas é bom, e vida que segue.

Entenderam? Pois é, nem eu.



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quarta-feira, novembro 22, 2006

Veranico


Normalmente, ele passa despercebido na cidade. Sua presença é sentida, mas não é percebida como tal; os povos urbanos não verbalizam sua existência, digamos. Embora isso pareça um começo de texto antropológico, estou falando de um visitante chato, irritante, cuja visita traz prejuízos e renova a amargura da seca. Estou falando do veranico.

Como é triste o veranico...

Passei pelo milharal de um vizinho, bom agricultor e bom criador de vacas, também. Capitalizado por boa renda urbana, investe o que precisa no sítio, que é um primor de organização, beleza, funcionalidade e até produtividade, por que não? Em off, porém, ele confessa que a renda mal e mal cobre o que se gasta. Mas, esperançoso – coisa que tenho em comum com ele, talvez a única, infelizmente – acredita que ainda vai ganhar dinheiro com o leite, a laranja e os frangos. Tomara, vizinho, tomara.

O sol quente das duas da tarde queima. Não chove há quase vinte dias.

Os pés de milho estão com as folhas um pouco enroladas, sentindo o calor e a falta de umidade, mesmo nessa lavoura, que foi feita pelo sistema de plantio direto: o mato foi dessecado com um herbicida e ficou depositado sobre o solo. A plantadeira passou por ali e seus discos cortaram a palha e a terra, colocando as sementes na terra coberta pela palhada, que conserva a umidade por mais tempo na falta de chuva, além de manter a temperatura mais fresca também, favorecendo a microfauna e flora que vive nos primeiros centímetros de solo.

O sítio vizinho pertence ao avô e ao tio de um rapaz que presta alguns serviços para mim ocasionalmente. Nele, o milho está plantado pelo sistema convencional. As plantas pequenas estão muito mais sentidas que as da lavoura vizinha e o mato aparece no meio das linhas de plantio. A terra foi arada e gradeada e as sementes depositadas no solo nu, sem a cobertura da vegetação que existia antes sobre o solo. Desprotegido, exposto à ação inclemente do sol e do vento, o solo fica seco. Sua camada mais superficial nada tem de vivo, muito menos de umidade. As pequeninas raízes superficiais das plantas, as radículas, já morreram. Quando chover, as gotas baterão nessa superfície e desagregarão as partículas de solo, escorrendo em seguida, carregadas pela água que vira enxurrada, até o córrego mais próximo. A camada de solo que ficou exposta, por sua vez, é uma camada mais dura, menos permeável à água e ao ar. Sim, o solo precisa de ar em seu interior, também. E a lavoura que ali cresce sente muito mais as intempéries e é menos produtiva. Pior que isso, para os dias de hoje, ela será menos eficiente na transformação de energia em alimento.

O veranico deixa suas marcas nas duas lavouras, mas uma já está bem prejudicada, enquanto a outra, tão logo chova, se recupera sem perdas, praticamente.

No final da tarde a chuva chega, finalmente. Mesmo perdendo meu precioso sinal de satélite na tv, com as imagens da festa da conquista do título pelo meu time, fico satisfeito. Nem dou bola para tão importante perda. Como de hábito, essa chuva chega pesada e traz com ela, ou é trazida por ventos fortes. Em certo momento cai um pouco de granizo. Felizmente, muito pouco, mas o bastante para que o Brioso deixasse o meio do curral e procurasse, rapidamente, o abrigo da paineira. As vacas não chegaram a se incomodar, mas cavalos são mais sensíveis.

Depois da chuvarada inicial forte, veio a garoa ou a chuvinha intermitente. Aproveitei e fui com o Ismael à casa do Toninho Simões, num sítio a pouco menos de três quilômetros. Na entrada, um eucalipto toma conta de toda a largura da estradinha, derrubado pelo vento que, pelo jeito, aqui foi bem mais forte que no Sítio das Macaúbas. Consigo passar com o carro, raspando um barranco e a ponta da árvore tombada. Do Toninho, nem sinal, viagem perdida.

Voltamos ao sítio, onde a noite já está prontinha pra tomar conta de tudo, até um pouco mais cedo, graças ao sol poente escondido pelas nuvens escuras. Melhor que isso, só dois disso, como diria um amigo. E a chuva prosseguiu parte da noite, ora fortinha, ora fraquinha, mas boa, muito boa, muito bem-vinda. Nada melhor para dormir que o barulho da água no telhado e caindo dos beirais, uma verdadeira sinfonia clássica.

Mas não basta essa chuva. Outras são necessárias, com regularidade. Porque assim exigem as plantas, porque assim exige a vida. Ao fim e ao cabo, somos todos completamente dependentes desse ciclo maravilhoso da água. E de outros ciclos, como o do carbono e o do oxigênio, mas esses dois a gente não vê, ao contrário da chuva. Que estamos vendo, mas parece que menos que outrora, ou pelo menos, pior distribuída.

Essa região é incrível por conta de sua posição onde vários biomas vegetais se misturam, e já teve araucárias nativas num passado não muito remoto, apresentando os majestosos jacarandás, entre eles o jacarandá-rosa do Parque da Vaçununga, considerado como o mais antigo ser vivo do Brasil. E um de seus biomas é o cerrado, onde encontramos pequizeiros nativos. Ainda restam algumas flores, mas os pequeninos frutos tomam conta das árvores. Em pouco tempo estarão grandes, bonitos e gostosos, bons para cozinhar no arroz. Perto da chácara de meus sogros tem uma área de preservação com vários pés de pequi. Pena que os frutos são arrancados antes de amadurecerem. Não sobra um nem pra remédio. E todo ano tocam fogo na reserva, onde meia dúzia de vacas fica zanzando entre as árvores comendo o que encontra pela frente. O cerrado e sua fauna e flora são adaptados ao fogo, que chega a ser benéfico e importante, mas não com a incidência anual que o bicho-homem instalou.

Enfim, apesar de tudo, os pequizeiros resistem.

A gente também.


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sábado, novembro 18, 2006

Desculpe o incômodo


Saímos cedo de São Paulo, mas com o sol já alto. Horário de verão é a melhor coisa do verão; o dia começa mais cedo, mais gostoso e termina da mesma forma. Para quem trabalha em vídeo, como eu, com a maior parte do trabalho a campo, é uma delícia, pois o dia rende, rende muito mais. Na roça, então, nem se fala. Na verdade, no sítio nosso horário de verão começa muito antes do horário oficial, afinal, as vacas não têm a mínima noção dessas invencionices ligadas à divisão do dia em horas, minutos e segundos, tampouco conhecendo semanas ou meses. Vivem de acordo com as estações e suas mudanças, ou viviam, até que nós aparecemos e mudamos tudo.

A caminho do local de nossa gravação, uma granja produtora de ovos, um pedágio. Paguei com prazer. As obras na Raposo Tavares ficaram prontas, finalmente, e agora atravessamos Cotia e Vargem Grande sem parar, a 90 ou 100 km horários, numa estrada boa, protegida do trânsito nas laterais, em pistas expressas. Ah, se ainda morasse na chácara de outrora, quando a estrada tinha pistas simples e cruzava um vazio urbano que ficou cheio de tudo: gente, lojas, carros, ônibus, caminhões e lombadas, muitas lombadas.

Há mudanças que são muito boas.

Subimos a Serra de São Roque, cujo nome indígena é mais bonito e sonoro: Serra da Taxaquara; descemos e seguimos em frente por um bom trecho, deixando duas cidades para trás. Basta entrar em uma área de campo e minha atenção redobra. Olho a paisagem sempre com os olhos de quem poderia estar ali, vivendo, trabalhando, criando. Deve ser resquício dos devaneios de viagem a bordo do “trem de luxo” da Paulista, quando me projetava em toda fazenda, em todo sítio, em toda beira de rio que enxergava da janela ou da plataforma do vagão.

Essa região em especial me agrada muito. Gosto de sua altitude, gosto do frio e da umidade, das manhãs e tardes tomadas pela neblina em parte do ano, brincando um jogo de mostrar e esconder. Gosto das árvores e do cheiro gostoso do capim-gordura e gosto mais ainda quando deparo com araucárias, não muito comuns, mas tampouco raras. E tudo fica melhor quando o asfalto se transforma em terra batida onde rodamos pouco, pois a granja que procuramos está próxima.

Passamos por uma entrada bonita, hortênsias exuberantes acompanhando uma pequena cerca de tábuas brancas de cada lado da porteira aberta e convidativa. Ou não muito, pois ao lado uma placa é curta e grossa: “Não temos galinhas”. Ok, está bem, temos que seguir em frente mesmo. E quem disse que eu quero galinhas?

Rodamos mais um trecho olhando atentamente nas entradas de sítios que apareciam e nada de aparecer a granja. Algo, porém, me incomodava e tinha a ver com a placa das galinhas, ou melhor, da ausência de galinhas.

Meia-volta, volver. (O velho comando presente em todo episódio de Rin-tin-tin, o mais fantástico de todos os filmes, como julgava do alto de meus oito, nove anos de idade, e ainda não perdido na memória...)

A impressão inicial revelou-se correta e a granja era aquela mesma, a "Não temos galinhas". Passamos pelas hortências e subimos um pouco pelo carreador ladeado por pequenos arbustos que devem ficar carregados de flores em outra época e mais algumas moitas de hortêncas, com seu colorido, tamanho e forma meio escandalosos. Logo avistamos os galpões onde as galinhas ficam alojadas. Gravar galinhas não me agrada, assim como não gravo mais criações de porcos, devido ao confinamento dos animais. No caso das galinhas é muito pior, pois as infelizes ficam a vida inteira presas numa pequena gaiola metálica, apenas comendo, bebendo, botando e defecando. Essa é uma das criações mais tristes que existem. Mas hoje não vou falar dela e nem das galinhas do sítio, às voltas com suas disputas pelo galho mais alto para dormir, fugindo dos galos, levando seus pintinhos por toda parte atrás de grãos, insetos e tudo o mais que seja comestível e que, no caso de galinhas, esses pequenos dinossauros empenados, é tudo que seja comestível.

Os cachorros nos recepcionaram, dois entre muitos, a maioria retirados do canil municipal e vivendo, agora, a vida que todo cachorro pediu ao grande Deus Canino. Meu estado de espírito melhorou. O granjeiro, de segunda geração, é um cara novo, simpático, boa conversa. O trabalho flui com facilidade, a conversa rola, o depoimento é ensaiado, testado, repetido e finalmente fico satisfeito com duas versões boas. Sua esposa aparece com a terceira geração pelas mãos, um menino e uma menina. Ela, com roupa de ballet a caminho da academia. Ele, com a pequena mão apertando o nariz para não sentir o cheiro das galinhas. Tenho a impressão que a terceira geração estará distante das galinhas e seus ovos no futuro, como acontece com grande parte dos produtores de alimentos que conheço.

(Produtor de alimento diz algo mais que produtor rural, não é?)

A luz ajudou, com o sol ainda coberto por um renque de velhos eucaliptos e a sombra em todo o campo abarcado pela lente. Realmente, nada como o horário de verão para quem trabalha em atividades externas. Fiz amizade com os cachorros, inclusive um akita com seu porte senhorial e cara sempre séria, gravamos a coleta dos ovos – cerca de 25.000 por dia – e a distribuição de ração para as galinhas e a hora de ir embora chegou. Não sem que antes chegasse um casal para comprar galinhas. É comum isso: moradores da região vão até lá e compram galinhas que estão prestes a serem descartadas, vale dizer, abatidas. Embora já não sejam lucrativas para a granja, pois custam mais em ração do que produzem em ovos, elas são bastante produtivas para quem as criar soltas, com a ajudinha de um pouco de ração ou mesmo milho.

Ao passar pela porteira vejo a placa novamente. De nada adianta dizer que não tem galinhas, pois ninguém acredita e todo mundo entra. E acaba saindo com as galinhas pretendidas.

A placa não termina com a negativa das galinhas, e tem mais uma frase embaixo, bem típica de um povo e de um tempo que já não encontramos com facilidade nessa Terra de Vera Cruz:

“Desculpe o incômodo.”

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domingo, novembro 12, 2006

Bom dia, poste


Algumas semanas atrás quando começava minha caminhada aqui pela Granja, nos arredores de casa, deparei com um rapaz pintando um dos postes da rua de casa. Caminhava devagar, por estar ainda no começo e por ser subida, mas assim mesmo engatei uma reduzida e diminuí um pouco mais a velocidade, podendo, dessa forma, acompanhar um pouco mais o que aquele cara fazia sem, ao mesmo tempo, me intrometer. Passei por ele e segui adiante. Pouco mais de uma hora depois, retornando, lá estava ele, com a obra bastante adiantada. Já não era um “cara” ou um “rapaz”, era um artista.

Ele pintou, ou grafitou, alguns de nossos postes. Os mais bonitos, sem dúvida, são os postes de madeira, dos quais ainda temos alguns e que, a meu ver, combinam melhor com nossa rua ainda em terra, ora estreita, ora larga, com árvores fazendo sombra em parte dela. Um dos postes é mais sombrio, não tem as cores vivas e alegres dos outros. Fica numa esquina sombreada na maior parte do dia e sua visão, por algum motivo, me incomoda um pouco.

Caminhar pela Granja é gostoso, mas aos domingos precisa ser feito no horário certo, que é o começo da manhã, quando a “zelite” que aqui vive fica na cama e não vai pras ruas, um carro atrás do outro. Isso é bom porque quase não tem carro passando perto da gente, quase não tem barulho de motores, quase não se vê vivalma por essas ruas.

Nas manhãs de sábado cruzamos com muita gente a serviço do trabalho. São domésticas, jardineiros, pintores, pedreiros, cozinheiras, babás, todo um universo que se encaminha para as belas casas dos inúmeros condomínios da Fazendinha. A rotina nos faz conhecidos de algumas dessas pessoas e bons-dias são trocados. Com outras, o bom dia trocado não nasce do conhecimento e sim da educação, apenas e tão somente. Confesso que é um pouco estranho. Há muito tempo deixei de ser educado desse jeito, desejando um bom dia ou boa tarde ou boa noite para um perfeito desconhecido. Em que pese meu espanto, pessoas bem educadas e gentis ainda mantêm esse hábito. Curiosamente, e não vai aqui um juízo de valor, essa gentileza é mais presente entre as pessoas do “povo” do que entre as pessoas da “zelite”. E é quase uma excluvisividade de gente com mais de quarenta. Que me lembre, nunca recebi cumprimento do povo com menos de trinta, tanto do “povo” como da “zelite”.

Timidamente, ando cumprimentando desconhecidos e desconhecidas. Seco, muitas vezes opto por um curto aceno com a cabeça. Meu pai e meu avô eram diferentes, eram pessoas mais civilizadas e afáveis. Em algum momento ao longo da minha evolução para coisa alguma perdi essa afabilidade. Não me incomodo muito, verdade seja dita, pois me reconheço na maioria dos outros, sou apenas mais um. Só me diferencio quando minha boca esboça um sorriso e um bom dia descompromissado ganha os ares em busca de ouvidos desconhecidos.

Curiosamente, talvez seja minha modesta contribuição, tal e qual, embora muito menos, à do artista que pintou os postes e coloriu ainda mais a rua.

A troco apenas do prazer em pintar e, quem sabe, do prazer em saber que outras pessoas estão tendo prazer ao ver sua obra. Acho que é o que se pode chamar de civilização.

Bom dia, poste.

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sábado, novembro 11, 2006

Mais do mesmo de sempre...



Um dos motivos pelos quais não queria a permanência disso tudo que está aí, era para evitar a aceleração do assassinato do Velho Chico, ou Rio São Francisco para os não chegados. Para minha dupla tristeza, não só tudo isso que está aí continuará, como também a transposição do Rio São Francisco está retornando à linha de frente dos objetivos governamentais.

As obras do projeto faraônico, que o presidente pretende que seja a sua grande obra, seguem paralisadas, ou melhor, sequer foram iniciadas apesar de tentativa canhestra e ilegal feita nesse sentido, devido a uma série de ações judiciais que contestam a licitação do projeto, num total de 3,3 bilhões de reais, ou seja, nada menos que um e meio bilhão de dólares. O número de irregularidades e ilícitos diversos é enorme, a começar por RIMAs mal e porcamente feitos, ausência de reuniões com comunidades atingidas, etc, etc. Impressiona quem vê de fora que, mesmo ícones pétreos do partido do presidente ao longo de sua história, como o “ouvir as pessoas atingidas” e o “respeito ao ambiente”, são sistematicamente sabotados, sistematicamente jogados no lixo.

E agora, na euforia do novo mandato, o governo decidiu, meio na surdina, dividir a super-licitação em um monte de pequenas e médias licitações. Se a sociedade não reagir com rapidez, em poucas semanas fatos irreversíveis estarão criados, a partir dos quais torna-se menos difícil o prosseguimento da obra faraônica.

Pelo andar da carruagem terei de desenterrar os velhos posts a respeito, reler tudo, reescrever, ser mais um a tentar mostrar a inutilidade (pensando em termos amplos) que será essa obra, os riscos imensos para o Rio São Francisco e para a economia de todo o Nordeste, em boa parte ancorada na oferta de energia feita pelas usinas do Velho Chico.

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domingo, novembro 05, 2006

Digressões dominicais

“Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo.

Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a idéia de uma chávena de café – trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim – resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu atual.”

Esse trecho foi extraído do livro “Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas”, de Fernando Pessoa, com organização, introdução e notas de António Quadros, editado por Publicações Europa-América, Lisboa.

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Num aniversário há muito passado e esquecido, ganhei esse livro de presente. Tenho boa recordação de quem presenteou-o, um bom amigo, acompanhado de sua mulher com quem tive pouco contato, pois nosso conhecimento foi todo construído nas horas de trabalho. Quer dizer, se é que o livro foi dado pela pessoa que imagino. Como disse, foi num aniversário há muito passado e esquecido.

Hoje, procurando por um livro que senti vontade de reler – “Libro de Manuel”, Julio Cortazar – deparei com esse Pessoa. Separei-o. Mais tarde, saboreando esse primeiro dia de horário de verão, comecei a leitura pelo “Diário” e deparei com essa pequena pérola datada de 1914, ou seja, apenas seis anos antes de Dame Agatha Christie publicar “The Mysterious Affair at Styles”, seu primeiro e um de seus melhores livros com o genial Hercule Poirot. Creio que Pessoa deve ter gostado de Poirot tanto quanto gostou de Holmes, mesmo porque, sem dúvida, há pontos em comum entre ambos. Não encontrei outra menção sobre isso, mas Pessoa traduziu Poe e Shakespeare, gostava de policiais, então, certamente, deve ter tomado contato com as primeiras e excelentes obras de Agatha Christie, cujo número entre 1920 e 1935 – ano da morte de Pessoa já em seu final (dezembro) – chegou a trinta, entre elas as pequenas obras-primas “Murder on the Orient Express” e “The Murder of Roger Ackroyd”.

Minhas estantes e armários guardam algumas centenas de livros policiais. A maioria meros passatempos de viagens e noites tranqüilas. Alguns, preciosos pelo enredo, criatividade, estilo, elegância. Sou conservador, gosto de heróis definidos, não faço gosto por narrativas com profundezas psicológicas, até porque elas envolvem mergulhar na psique de criminosos e como leio para me divertir, passo batido quando esse é o foco do livro. Tampouco me agradam os detetives macambúzios e solitários que viraram moda com americanos. Não jogo no time dos que gostam do noir, do chiaro-scuro e acham tudo isso apaixonante. Como disse, sou conservador e meio pobre nos meus gostos. Paciência. Além da velha dama inglesa e do Dr. Doyle, gosto de Rex Stout, gosto de outra dama inglesa, notável e, felizmente, viva e produtiva, Lady Phillys Dorothy James e mais um bando enorme.

John Dunning é um dos novos de que mais gosto, principalmente quando o livro tem como personagem o livreiro e ex-policial Cliff Janeway. Recentemente foi lançado entre nós “A Promessa do Livreiro” que, além de uma boa história com os ingredientes básicos e clássicos, ainda por cima trata da vida e obra de Sir Richard Burton, o explorador inglês que passou o século XIX andando por Ceca e Meca – foi o primeiro ocidental a visitar Meca, disfarçado.

E aqui, nesse começo de tarde dominical, abro um parênteses: por que Ceca e Meca e não ceca e meca, simplesmente?

Porque essa expressão “andar por ceca e meca” teve origem, provavelmente, na peregrinação que muçulmanos faziam entre a mesquita de Ceca, em Cordova, a maior em terras ocidentais, e a cidade sagrada de Meca. Como queria referir-me a Richard Burton, usei a expressão pelo seu mais provável significado original, associando-o à ida de Burton – não podemos chama-la de peregrinação – até Meca.

Bom, por hoje é só, até porque meu caminhãozinho já foi longe demais com carga demais. Não dá pra tanto.

Bom domingo.

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“Travessuras da Menina Má”


Ricardo deixou o Peru e foi para Paris, seu velho e mais forte sonho. No Peru ficaram a infância e a adolescência, com suas lembranças a cada dia mais gostosas e perfeitas para a maioria de nós, mas não para ele, com uma exceção. Ficaram as histórias e pequenas aventuras, os namoricos, as amizades primeiras que deveriam ser, também, as últimas, o que neném sempre acontece, a sensação de estranhamento numa terra que não sente como sua, em meio a pessoas que são as suas, mas com as quais tem pouca identidade.

Em Paris ele constrói sua vida e encontra uma figura perdida de seu passado, que se faz cada vez mais presente e ativa em sua vida, ano a ano, modismo após modismo, crise depois de crise, no mundo, na França, na Inglaterra, no Peru.

Tal como na vida real, as mudanças fazem o pano de fundo para o cotidiano, interferindo nele sem que percebamos, na maioria das vezes. De Paris, Ricardo tem uma visão acurada do Peru e - por que não? - de toda a América Latina. Mas o leitor ou leitora a quien no le gusta la politica y sus personajes não ficará aborrecido, pois essa visão é como o café-da-manhã, almoco e janta em nossas vidas, um pano de fundo ao qual vez ou outra prestamos atencão, e cuja presença aceitamos com naturalidade. E não tema a leitora ou leitor que gosta de romance em suas leituras, pois esse ingrediente não falta em "Menina Má".

Aos amantes do panfletismo ideológico o livro deixará a desejar, felizmente.

E, finalmente, aos que gostam de boa literatura, sobretudo aos que gostam daqueles livros aos quais nos grudamos e não conseguimos desgrudar até virar a última página e deparar com a sobrecapa, eis uma indicação segura. Na reta final, só consegui desligar o abajur e dormir depois de deparar com a sobrecapa. E isso madrugada alta, felizmente num começo de fim de semana. Mas como um bom pinot noir, seu gosto ficou em minha memória, e sua riqueza permite combinar diferentes sabores e aromas. Minha primeira leitura de “Travessuras da Menina Má” é pobre e incompleta, bem sei. Com o tempo farei novas leituras, descobrirei aromas e sabores ainda não revelados para o meu paladar pobre, que ficou preso a dois gostos, um dos quais relatei – a visão política sobre Latino América. O outro deixarei quieto, por ora.

Meu exemplar já viajou, tão logo terminei sua leitura. Minha filha, de quem ganhei-o como presente de aniversário, levou-o embora. Espero que goste dele tanto quanto eu gostei.

"Travessuras da Menina Má" é o mais recente livro de Mario Vargas Llosa, um dos meus escritores preferidos desde sempre. Tive a sorte de conhece-lo nos distantes anos 70, logo em seu comeco, lendo no original aquele que foi seu livro mais importante durante muito tempo e transformou-o em escritor de renome, "La Ciudad y los Perros".

Não gosto apenas de seus livros, gosto, também, de sua atuacão na vida como escritor e como político, onde chegou a candidato à presidência, sendo derrotado pelo "Chino", o Alberto Fujimori de triste lembranca. Que pena, Peru.

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