domingo, fevereiro 26, 2006

Feriado no Mercadão


Faço um certo charminho quando tenho que ficar em São Paulo num feriado ao invés de ir pro sítio, mas é só um “certo charminho” – minha avó e minhas tias dariam a isso outro nome, não tão educado. O fato é que é muito gostoso ficar nessa cidade num feriado prolongado, pois é quando a verdadeira e bonita São Paulo se mostra, realmente, por inteiro. Com alguns milhões de pessoas e carros a menos, a cidade respira e mostra suas infinitas faces e lugares dignos de serem conhecidos e frequentados. Nessa São Paulo despovoada de gentes e máquinas, as pessoas que sobram ficam mais tranqüilas – exceto dentro dos shoppings, sempre lotados – e o clima, não o do tempo, mas o do humor, se torna mais agradável a um estalar de dedos, da noite para o dia. O mesmo não se pode dizer dos paulistanos paradoxalmente parados nas muitas rodovias maravilhosas, de várias pistas, projetadas para altas velocidades, bem superiores às permitidas pelas placas e radares. O problema, porém, não chega a ser tão grave, afinal, no fim da estrada tem o pote de ouro da praia, do campo, das montanhas, da casa da mãe ou das tias.

Voltando para São Paulo, um dos lugares gostosos e atraentes da cidade é o Mercadão, o Mercado Municipal de São Paulo, no Glicério, ao lado do Parque Dom Pedro, que já foi um lindo parque e há décadas não passa de mero suporte físico para ônibus, automóveis, caminhões e metrô, rota de passagem dos caminhões que vêm do porto de Santos a caminho das Marginais e rota, também, para boa parte dos moradores da Zona Leste que vão para o Centro Velho (é importante esse adjetivo na frente do substantivo, pois São Paulo tem o Centro Novo, que já é muito velho, dando lugar ao “Centro” da Paulista, já destronado pelo “Centro” Berrini, a caminho de ser destronado pelo “Centro” Marginal Sul, bem pertinho dele; nesse ritmo, em alguns anos o “Centro” do momento já estará perto de Curitiba).

Projetado por Ramos de Azevedo e construído entre
1926 e 1933, o Mercadão foi considerado, com seu enorme pé direito e vitrais importados da Alemanha, muito sofisticado, à época, para a finalidade a que se destinava, que era, basicamente, dar aos pequenos comerciantes de gêneros alimentícios um bom local para se estabelecerem, e onde a população que crescia rapidamente pudesse fazer suas compras com mais conforto. O local foi bem escolhido, pois além de central, estava na margem esquerda do Rio Tamanduateí, pelo qual canoas e barcos traziam parte da produção para abastecer os comerciantes. Atualmente, o mercado tem pouco mais de três centenas de boxes onde são comercializados peixes, carnes, frutas, laticínios, especiarias – ah, especiarias, palavra que a gente leu incontáveis vezes nos livros de história – penduradas em saquinhos, algumas custando o preço do ouro, que mesmo barato hoje, ainda é caro o bastante para fazer olhos se arregalarem e expressões de espanto saírem de bocas de donas e donos inconformados. Às vezes é melhor não perguntar pelo preço do grama da trufa, mesmo que a negra, mais em conta. A Rosa comprou baunilha. Uma pesquisa básica em alguns boxes foi o bastante para achar a mesma porção, ou melhor, o mesmo “graveto”, custando entre dezoito e nove reais. Sem diferença aparente, é bom frisar. O Mercadão é o local certo para quem ama bacalhau. Minha visão fica, digamos, enternecida e minha boca cheia d’água só de ver as portentosas peças de filés. Não há como resistir a essa visão e algum pedaço de um daqueles filés tem que seguir o caminho do nosso forno, ao encontro das nossas batatas, azeitonas e pimentões. Ah, sim, azeitonas e azeites, outro capítulo especial e rico em variedades, cores, origens e preços.

Num dos boxes tidos como sofisticados, matriz de um empório famoso pela qualidade de seus produtos, a maioria importados (mas onde se encontra, também, as melhores cachaças vindas das Geraes) e com lojas em reluzentes shoppings, encontro um de seus proprietários, trabalhando duro como sempre desde as primeiríssimas horas da manhã. Nosso conhecimento se deu unicamente através das compras esparsas feitas no decorrer de muitos anos, sempre com alguns minutos de prosa agradável e informativa. Seguindo suas indicações, saímos de lá com algumas garrafas de honestos vinhos italianos e um honestíssimo, saboroso e barato Porto. De quebra, um filão de pão italiano há pouco saído do forno da padaria no Bixiga. Nada como as amizades...



Parei numa charutaria e fiquei por ali alguns minutos. O espaço pequeno, apertado, quase todo tomado por rolos de fumo vindo de diversas partes do Brasil. E todos os outros ingredientes comuns a uma charutaria. Essa pequena loja não tem cheiro, tem aroma. Como cheira bem uma charutaria! Coisa danada de estranha, na verdade. Porém, se pensarmos bem, o que realmente cheira muito mal e, principalmente, faz muito mal à saúde de fumantes e agregados, é o cigarro moderno, cheio de teretetês químicos e venenosos. Não me parece que os velhos fumos em corda façam tanto mal assim. E se considerarmos o tempo necessário à feitura de um único cigarro de palha, aí então não tem jeito, dificilmente um sujeito consegue fumar mais de meia dúzia por dia. Parece menos nocivo que o outro, né? (Só espero não ter escrito nenhuma grande besteira.) Pra não curtir todo aquele perfume de graça, comprei duas pilhas alcalinas para a minha câmera. Acho que fui justo com o dono da charutaria nessa troca.



O mercado é rico em frios, em embutidos. Muitos vêm da Espanha, Portugal e Itália, mas a maioria, assim como os queijos, é daqui mesmo, dessa fértil e pródiga Terra de Vera Cruz. Não passam todos de pedaços cheirosos de tentação, cada um pior que o outro. Esse pior aí detrás é o equivalente tristemente irônico de melhor. E por que tristemente? Porque, nós, humanos modernos e bem informados, sabemos das taxas inflacionadas de colesterol que esses acepipes contêm. Sem falar em gorduras desse e daquele tipo e outras coisinhas mais, como pimenta-do-reino. Felizes eram nossos ancestrais que disso tudo nada sabiam, mas comiam bem e de monte, tudo na banha de porco – tem lá no mercado, também – e trabalhavam duramente, provavelmente queimando nesse trabalho os colesteróis e gorduras mono e polissaturadas da vida. E por falar em banha de porco, embutidos e lindas peças de toicinho, um dos boxes, muito bem montado, por sinal, chama-se “O Porco Feliz”. Não consigo imaginar um porco feliz por estar ali, transformado em linguiças e salsichas, toicinhos, banha, defumados, logo, esse nome não deve passar de uma licença poética.

Pouco depois de chegar, em conveniente jejum matinal, fomos comer o famoso pastel de bacalhau do Mercadão. Bom prato, sem dúvida, e enorme, e super-recheado. Um pastel sozinho é uma refeição e tanto. Mas a fama do pastel não lhe fez muito bem. A massa continua ótima, gostosa, como um bom pastel paulista deve ser, mas o recheio exagerado tornou necessário o uso de bacalhau sem a mesma qualidade dos que eram utilizados no pastel antes de ficar famoso e virar atração turística. Assim mesmo não estava ruim, e comi com satisfação, acompanhado de café com leite e depois um suco de uva feito com polpa de uvas escuras. Nada mais saudável, exceto uma boa taça de um bom tinto.

Nesse verão, o bom é chegar bem cedo, por volta de seis da manhã, como fizemos. O trânsito é fácil, a viagem é rápida, sempre tem lugar no estacionamento do próprio mercado e, o melhor de tudo, quando a gente vai embora o sol está alto, mas ainda não começou a queimar e o dia está todo pela frente. Um dia inteiro para nada mais fazer na megalópole cheia de coisas para fazer e já abastecidos de coisas gostosas para comer. Que delícia!


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quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Castanheiras




Logo na primeira vez que vi uma castanheira na floresta não precisei que me dissessem que ela era ela, eu já sabia. E nem precisaria de fotos para dizer que aquela árvore majestosa, erguendo-se acima das demais era uma castanheira. Desde então, procuro por elas em todas as áreas de floresta por onde passo. E lá estão elas, no Pará, no Amazonas, no Mato Grosso, em Rondônia. Às vezes dou sorte e vejo os ouriços ainda presos às árvores lá no alto, a 12, 15, até 20 metros de altura. Acreditem, é metro que não acaba mais numa árvore.

Aqui pelo sudeste e pelo sul temos, também, algumas árvores majestosas, principalmente duas delas, o jequitibá-rosa, abundante justamente na região de São Paulo onde fica o sítio, e as velhas araucárias do planalto paranaense, nos arredores de Guarapuava. Os jequitibás são poucos, sempre, mas com as araucárias é diferente, elas ocupam grandes áreas, imensas, todas elas, tendo por baixo a vegetação comum da mata, árvores com 4, 5, até 8 metros de altura que, sozinhas, em campo aberto ou num capãozinho de mato, fariam até bela figura, mas ali, na sombra das araucárias ficam pequenas, menores ainda, simples figurinhas de adorno.

Tal e qual as árvores próximas de um jequitibá.

Tal e qual as muitas árvores amazônicas à sombra de uma castanheira.

Derrubar uma castanheira é crime previsto em lei, passível de punição. Ora, que desperdício de legislação! Qualquer um, por mais cretino que seja, sabe que derrubar uma árvore como aquela é crime, baita crime. Mas não adianta, derrubam-nas do mesmo jeito, e a lei nada faz, sequer cócegas nos homens que mandam derrubar as castanheiras.

Todavia, a lei dos homens tem lá seu poder, assusta um pouco e, às vezes, uma, duas, três castanheiras são deixadas em pé no meio da mata devastada. Lembram reis e rainhas num tabuleiro sujo de xadrez, reinando sobre o nada, todos em xeque-mate. Privada de sua corte submissa, as castanheiras não demora muito, sucumbem. Param de produzir seus ouriços pesados, cheios de castanhas. Pior ainda nos pastos e nas lavouras. Em meio ao verde intenso da soja, os troncos enegrecidos pelo fogo e, no alto, as copas sobreviventes olhando o verde das plantinhas miúdas, que depressa demais para uma castanheira mudam de cor, amadurecem e de repente somem nas entranhas de grandes máquinas. Sobrevivem pouco tempo também essas, mesmo que em meio aos pastos, rodeadas pelos bois brancos procurando capim entre o paliteiro de troncos queimados e largados por ali mesmo.

Apesar de tantos pesares, as castanheiras estão lá, por boa parte da floresta amazônica, onde o solo é firme e água, mesmo, só a das chuvas, nunca a das inundações. As publicações alarmistas dizem que elas estão em extinção. Não, não, longe disso, felizmente. Mas estão sofrendo as castanheiras da Amazônia. E ver seu sofrimento nos enche de dó, pena, raiva e, pensando bem, um pouco de medo.



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quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Uma boa notícia



A Rosa chegou da cidade e a primeira coisa que fez foi me estender um dos jornais de Santa Rita do Passa Quatro, no caso um exemplar do Santarritense. Logo na capa, em manchete total, a prisão da quadrilha que vinha nos atormentando a todos nos últimos anos. E, tão bom quanto a notícia, as fotos dos sete presos. Bem no meio da fileira de fotos, o Rafael. Confesso que para minha tristeza. Numa das pontas, o sucateiro que há apenas duas semanas tinha passado por aqui e recolhido nosso lixo aproveitável.

Que alívio!

Mas vamos por partes.

A situação nos últimos dias estava meio assustadora. Os bandidos tinham invadido um sítio vizinho e, não satisfeitos com o roubo, bateram e judiaram muito do Sávio, caseiro do sítio e com quem converso ocasionalmente. Ele é irmão do Zé Augusto, grande figura, mora em outro sítio próximo, e que deu uma mão pra gente em diversas oportunidades. E cujo café, confesso, sou ocasional filador. Os vagabundos entraram no sítio, renderam o Sávio, amarraram-no e desceram o porrete, ao ponto de quebrar-lhe alguns dentes e uma costela (ou duas).

O Sávio reconheceu as vozes dos vagabundos. E delatou-os para a polícia, um por um. Diligências foram armadas, campanas realizadas e em poucos dias, os sete foram presos duma só vez. Mesmo assim, ficaram três de fora, mas é questão de tempo para que ocupem uma horrível cela em alguma cadeia da região e depois num presídio.

Essa turma era de todos conhecida, mas a polícia nunca conseguiu um flagrante e nunca houve uma denúncia consistente e com a qualidade da denúncia feita pelo Sávio, que permitisse a prisão dos bandidos. E investigação... Bom, vamos & venhamos, essa história de investigação cientifica e coisa e tal, só acontece mesmo em grandes crimes. E mesmo assim... Verdade seja dita, um sobrinho dele, investigador em um município próximo, empenhou-se e foi a fundo na história, colaborando com a polícia de Santa Rita do Passa Quatro (ou vice-versa, tanto faz).

Dessa vez tudo deu certo. Nas casas de vários dos acusados foram encontrados objetos roubados. E, ao que parece, alguns passarinhos já cantaram. Ótimo! O histórico de roubos é grande, eu fui apenas uma das muitas e muitas vítimas. O velhinho que tomou um tiro no peito meses atrás, quando roubaram a fiação de cobre do transformador elétrico em seu sítio é outra das vítimas. Escapou da morte por muito pouco, depois de alguns dias numa UTI. Mas as seqüelas do tiro continuam com ele. Certamente vão abreviar o tempo que ainda tem de vida, além de deixar esse tempo pior, mais sofrido, mais dolorido, mais doloroso.

Essa quadrilha é a mesma, também, que rouba gado, tanto para repassar em pé, como para carnear, como fizeram com a Giselle, a novilha Jersey prenha de 6 meses, tirada do curral e carneada na beira do asfalto, onde agora fica a casa do Esrael e da Maria.

E agora, o Rafael. É um rapaz novo, boa pinta, do tipo que as meninas suspiram. Tem uma bela moto, grande, não uma simples “125” como são as motos em sua maior parte. Mas não é muito dado ao trabalho, o que pode ser um problema numa região agrícola e pecuária, onde o trabalho é duro, pesado e contínuo. Apesar de alguns alertas – olha, esse rapaz aí, o Rafael, sei não, parece que não é boa gente – contratei-o em algumas oportunidades, até porque, por incrível que pareça, há carência de mão-de-obra na região, sistematicamente. Trabalho não falta, mas falta quem queira fazê-lo, dá pra entender? Pois é, diante disso, o jeito é contratar quem está disponível e não quem é desejável. Dessa forma, lá ficou o Rafael por uns tempos. Mas, desde cedo revelou-se meio saidinho e meio curioso demais. Ao encontrá-lo numa tarde de domingo pegando frutas com a namorada e sua família, sem nos avisar, achei que era o bastante e não empreguei-o mais. Não pelas frutas, pois toneladas se perdem no chão, mas pelo à vontade indevido e excessivo.

Nos últimos tempos, tanto o Miro como o César chamavam-no regularmente para ajudar nas granjas. Tanto foi que, num baita susto, a polícia chegou na casa do César e da Rose procurando pela figura. Informados que ele estava trabalhando no Miro, foram para lá e ficaram à espera por dois dias. Finalmente, ele apareceu e foi capturado. O Miro ficou muito desgostoso com tudo isso, e eu nem consigo imaginar o quanto. Deve ser muito duro ter a polícia de tocaia em casa esperando por um bandido. Um cara que compartilhou da vida da família, da casa, da comida, da confiança. Uma pena.

Na manhã de segunda-feira, enquanto ia fazendo fogo no fogão a lenha, graveto por graveto, galho por galho, interrompi o prazer do amanhecer do dia para pensar no rapaz, que, provavelmente, estava acordando na cela naquele momento.

Deve ser muito triste acordar numa cela, deixar para trás a bênção do sono e quiçá dos sonhos, abrir os olhos e deparar com a realidade triste, amontoada, fedida, apertada e assustadora de uma prisão. E saber que o dia inteiro e muitos outros mais serão passados ali, do mesmo jeito.

Horas mais tarde, na delegacia, perdi qualquer resquício de pena. Fui até lá para tentar reconhecer algum dos objetos roubados, porém em vão. Na conversa com os policiais, falaram assim do Rafael:

- Ah, esse é frio, viu? O rapaz é frio mesmo, um dos piores.

Ser qualificado como “frio” pelos policiais é sinônimo de bandido mesmo, consciente do que fez e nada arrependido. É, também, o tipo de sujeito que não costuma se dar mal na prisão.

Pena? Nenhuma.



Um p.s. que também é uma boa notícia


Dias atrás, o Scarpa, pai do Ismael, pegou seu dinheirinho do mês no banco, fez umas compras e foi caminhando pro ponto do ônibus em Santa Rita do Passa Quatro. Aí, caiu um baita toró e ele, cheio de sacolas, abrigou-se numa casa em obras. Passada a chuva, saiu correndo para não perder o ônibus pro sítio – ele mora num dos sítios vizinhos, com os quais o meu faz divisa de cerca.

Ao chegar em casa deu conta que tinha perdido a carteira com os documentos e todo o sagrado dinheirinho, quase quinhentos “conto”.

Bateu o desespero. Voltou, procurou, procurou e nada. Foi pras rádios e pôs um anúncio. Foi pra polícia e quis fazer um B.O., mas não fizeram, não havia porque.

Dois dias depois, esperanças já perdidas, apareceu um rapaz no sítio. Um pedreiro, pessoa simples. Devolveu-lhe a carteira e os documentos e todo o dinheiro.

Replay:

“...todo o dinheiro.”

Para localizá-lo, foi até uma das rádios e conseguiu o endereço aproximado do sítio.

Depois de muita insistência do Scarpa, aceitou uma nota de vinte reais, até pra pagar a gasolina pra chegar até ali.

É, nem tudo está perdido, né?


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sexta-feira, fevereiro 17, 2006

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O navio está ancorado em frente à Itacoatiara, aguardando a saída de outro do Terminal Graneleiro.

Em poucos dias seus grandes porões receberão mais de cinqüenta mil toneladas de soja, que serão transportadas para a Europa ou para a Ásia.

Mesmo com todo seu tamanho, aqui, tal como no mar, é apenas um minúsculo ponto em meio ao Rio-Mar e à vasta planície que começa a ser tomada pelas águas da cheia.
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quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Programa Espacial Brasileiro... (Como?)



“Brasil vai lançar foguete,
Cuba também vai lançar,
Quero ver se Cuba lança,
Quero ver Cuba lançar...”

Essa marchinha carnavalesca, tida como chula por alguns, é minha primeira lembrança do programa espacial brasileiro. Não deveria ser e nunca foi, até há poucos dias, quando S.Excia., o presidente lulla da Silva decidiu que nosso astronauta tinha de ir pro espaço no decorrer desse Ano da Graça de 2006. O fato desse desejo extemporâneo de nosso máximo mandatário e as eleições presidenciais ocorrerem no mesmo ano, com o vôo algumas semanas antes do dia da eleição, não passa de mera, fortuita e muito feliz coincidência. Da mesma forma é também coincidência, porém não feliz, essa minha associação de idéias e lembranças, entre o programa e a marchinha.

Ao contrário do que foi previsto originalmente e para o qual foi treinado nosso bravo cosmonauta, o vôo será feito numa nave russa, e será pago, imaginem! Nada menos que dez milhões de dólares, uma verdadeira pechincha, considerando que essa mesma nave já levou alguns milionários para o espaço em troca de módicos 20 milhões na mesma moeda.

Portanto, depois do desenvolvimento dos VLS – Veículos Lançadores de Satélites – e da construção da Base de Alcântara, passos sérios e conseqüentes no programa, assim como foi, também, o treinamento do astronauta na NASA, visando uma missão espacial mais séria e menos turística/eleitoreira, ficamos reduzidos a isso: um cosmonauta turista, como qualquer dono de armarinho metido a besta, e uma base com pouco uso, negada aos americanos em nome da segurança nacional e por causa dos protestos de onguis diversas de Alcântara, todas muito representativas da vontade soberana do soberano e rico povo maranhense. Ter o pior IDH do Brasil é intriga de oposicionistas histéricos e persistentes do nobre e realizador clã Sarney. Além disso, a presença de muitos americanos e seus muitos dólares só faria estimular a prostituição e os vícios na bela, rica, pura e virginal Alcântara e adjacências.

Vamos gastar dez milhões de dólares para um brasileiro fazer turismo. Será que não dava para fazer essa viagem usando as milhas adquiridas pelo presidente lulla da Silva em suas infindáveis viagens por terras d’África, Oriente Médio e Latino América? Ah, é verdade, esqueci o pequeno detalhe de que o presidente viaja em avião próprio, não dá direito à aquisição de milhas. Que pena. Avião que, não custa lembrar, custou a bagatela de cinqüenta e seis milhões de dólares e mais 13 milhões, igualmente de dólares, gastos na modelagem especial e nos equipamentos de comunicação e outras coisas sumamente importantes nos deslocamentos de um presidente de uma república com interesses tão vastos e diversificados por todo o planeta. A esses valores, deve-se acrescentar recentíssima reforma efetuada no FAB 01, que ganhou um belo bar.

Como? Um belo bar?

Sim, estimada leitora, estimado leitor, um belo bar.

Mas o ministro Furlan não disse ainda esses dias que o presidente já estava há quarenta dias sem colocar álcool na boca? E falou dando à informação a entonação correta de admiração e incredulidade, deixando claro, portanto, tratar-se isso de um verdadeiro recorde. Voltando, então, ao raciocínio original desse parágrafo, para que um bar? Será que a abstinência presidencial já terminou? E quanto terá custado essa singela reforma a bordo do FAB 01?

Ah, não sabemos, o valor não foi divulgado, né? Aliás, além do valor não ter sido divulgado, a reforma tampouco o foi, e muito menos foi transformada esfuziante, linda e rósea propaganda dos muitos feitos governamentais, ao contrário dos buracos nos asfaltos recobertos com pixe e já descobertos em velozes quinze dias.

Pois bem, mas juntando o preço do avião e suas reformas e equipamentos especiais, e mais a passagem do nosso cosmonauta, temos a bagatela de oitenta milhões de dólares. Curiosamente, universidades e centros de pesquisa andam à mingua e com atividades paralisadas ou semi, justamente por falta de dinheiro para se manterem minimamente operacionais. Nada dessa magnitude, imaginem, muito pelo contrário. Precisam de dinheiro pouco, pequeno, bagatela, meia dúzia de caraminguás. E mesmo assim, nem isso conseguem. É o que dá colocar no poder um partido de ricos e perdulários, gente que não consegue pensar pequeno, no mesmo tamanho e importância do país, mas que insiste e segue só com grandes números, grandes jogadas, daquelas que exigem contas em bancos estrangeiros. Em mais de um, é claro.

E assim vamos seguindo em frente, não sei bem para onde, mas para algum lugar. Enquanto isso, China e Índia explodem e crescem alucinadamente. E a Argentina, pasmem! – voltou a crescer 10% num ano! Que chocante, é um fenômeno! Por aqui, na linda e rica Terra de Vera Cruz, nós outros, senhores da razão e da soberba, “crescemos” ridículos dois e pouco por cento. Nada, absolutamente nada, crescimento zero tal como o programa menina-dos-olhos do presidente lulla da Silva, aquele tal do Fome Zero, alguém lembra?

Porém, tudo mais vai bem, obrigado, e em breve, direto do cosmos, nosso bravíssimo cosmonauta entabulará agradável e muito útil conversação com lulla da Silva.

(Eu já falei que, por mera coincidência, algumas semanas depois desse colóquio, transmitido ao vivo e a cores para todo o Brasil, em rede nacional, teremos a eleição presidencial? Ah... Já falei? Então, tá.)

(Ficou meio confuso entre astronauta e cosmonauta? Simples: o astronauta é americano, o cosmonauta é soviético, digo, russo. Herança da Guerra Fria.)

(Cantemos!)

“Brasil vai lançar foguete,
Cuba também vai lançar,
Quero ver se Cuba lança,
Quero ver Cuba lançar...”


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De volta ao Macaúbas



Parece incrível, mas um mês se passou desde que estive no sítio pela última vez antes de viajar. Ou quase um mês, não há necessidade de matemática para isso. Uma coisa é certa: é tempo demais.

De maneira geral, diria até que tive sorte. As chuvas pesadas mantiveram distância, as vacas e as bezerras vão bem, obrigado, nada de mais sério, aparentemente, andou acontecendo.

Voltar ao sítio depois de uma ausência prolongada gera expectativa e uma certa tensão provocada pela expectativa de achar coisas por fazer ou mal feitas. Chama-se a isso sofrimento por antecipação. Costumo ser bom nesse quesito desnecessário e nada saudável. Acho que todo mundo sofre disso em maior ou menor grau.


Logo à chegada reparo que há dois buracos pequenos em fase de expansão no asfalto até então impecável. Nossa excelente estrada vicinal, um modelo de qualidade, não resistiu e, finalmente, começa a dar mostras da passagem dos seus oito anos e milhares de veículos durante todo esse tempo. Naturalmente que a expansão das lavouras de cana, com o tráfego constante das carretas super-carregadas, contribuiu em muito para isso. O que eu duvido muito é que as usinas contribuam com impostos extras para bancar o conserto da estrada.

Voltar é bom... Conforme o carro vai ganhando terreno, vou olhando uma coisa e outra e deixo de olhar outras. O pasto novo pegou bem e está lindo, aleluia! Claro, há as marcas da água, os sulcos da erosão em seu meio, o que vai demandar trabalho para correção. Muito trabalho braçal e supervisão.

Supervisão? Hummm... Vai ser difícil corrigir.

Um sítio é um mundo todo particular, é um mundo cheio de vidas, muitas vidas. Cada vaca, cada bezerro e bezerra, as novilhas, os touros... Espanto-me com o Minuto, cada dia mais bonito, já é um touro jovem em grande forma.

“Nossa, como cresceu esse menino, já é um homenzinho!”

Corujice, pura corujice, é o que me toma. Só tenho que cuidar de não esquecer La Fontaine (ou Esopo?): quem o feio ama, bonito lhe parece.

Esse sentimento se estende às bezerras e às novilhas. A Graciosa e a Estrela estão lindas e saudáveis. As “meninas” – Rikinha, Mimosa, Luna e Milu – também estão cada dia mais bonitas. Chego à conclusão que preciso mudar o nome da Mimosa, afinal, ela nada tem de mimosa, muito pelo contrário. Ela tem muito de sua mãe, a Atrevida, uma das melhores combinações de nome e personalidade do sítio. Como ela é toda preta, é forte e grande, é metida, é fuçadora, não respeita cerca quando quer alguma coisa, em seu último cio varou duas cercas e juntou-se, adolescente ainda, aos touros (não, ainda não sei se disso resultou algo... saberei em mais alguns dias), pensei em chama-la de Grace. Nada a ver com a Kelly e tudo a ver com a Jones, até porque, meio sem querer, li uma nota dizendo que ela tinha ocupado, sem mais essa e nem aquela, o lugar reservado ao Rodrigo Santoro num desfile em Nova York. É a própria Mimosa, ou melhor, a Mimosa é a própria Grace... Jones. Mas estou pensando a respeito ainda.

A galinhada segue sua vida ciscante, os galos – agora em menor número – continuam sua rotina, as angolas também vão bem, agora com mais três pequenininhas, devidamente apadrinhadas por uma das galinhas comuns. Elas ainda não sabem que são cocás, vão descobrir isso daqui a algumas semanas. não precisarão de analista para resolver a crise de identidade, até porque, me parece, não há crise de identidade para elas.

A cachorrada vai bem. A cachorra que apareceu outro dia e ficou por lá... continua por lá. Não lhe deram nome ainda, mas ela é muito simpática. E a Panda, a cachorra do Esrael e da Maria, pariu de domingo para segunda. Nada menos que sete filhotes. O Rael diz que já tem lar pra todos os filhotes. Acho bom. Ah, sim, naturalmente ela pariu em casa, ou melhor, na varanda da cozinha, embaixo do tanque, devidamente abrigada.

E os gatos vão muito bem. O macho, que batizei de Frederico Octavio – ou simplesmente Fred – deve se considerar meio cachorro. De novo foi atrás de mim para vários cantos, menos até a porteira, para onde fui sozinho. Talvez porque chovesse e todos, cachorros inclusive, acharam que era burrice caminhar até a porteira só para fechá-la. Acho que esse povo de quatro patas não me tem em alta conta, não.

E o Brioso segue gordo e bonito. Gordo, mas não muito. Sua carga de trabalho caiu muito agora, pois o leite só é levado aos sábados e domingos quando eu não estou lá.

Pois é, e nem falei das maritacas, do timburi do jardim – que vai merecer um capítulo especial – e de um monte de outras coisas. Um sítio é um mundo à parte, mas acho que já disse isso e estou me repetindo. Mas, que diabos, o sítio é mesmo um mundo inteiro, cheio de vidas e cheio de satisfações e aborrecimentos, problemas e soluções!

Como é difícil deixar tudo isso para trás e voltar para São Paulo...


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segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Graciosa mais graciosa...

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... ou será só corujice minha?











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Fim de tarde com chuva chegando

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Fim de tarde de domingo com promessa de chuva no horizonte.

Chuva que veio com vento de tempestade, violento, assustador.

Veio forte, mas durou pouco. Felizmente sem estragos.

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sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Impressões de viagem – IV – Reflexões do mormaço



Tarde de domingo em Sapezal. Em qualquer lugar domingo tem cara de domingo. Talvez não seja assim no mundo islâmico, mas como não conheço nenhum país islâmico, sigo acreditando que o domingo tem uma cara própria, toda dele, inconfundível. Aqui também é assim, não há diferença. Pasmaceira.

A chuva negaceia, ameaça chegar, finge que vem, mas não chega. Para manter a ilusão, manda para nós alguns pingos grossos e esparsos, que caem e mancham o asfalto. O ar continua parado, as manchas úmidas desaparecem assim que se formam e o mormaço domina.

Mormaço... Palavra chata e feia, uma palavra em que a forma e o som correspondem plenamente ao conteúdo, ao significado. O mormaço amolece, mas não relaxa, pelo contrário, tensiona, irrita, coisa mais contraditória essa, um amolecimento tenso.

Seria melhor estar trabalhando agora, fazendo qualquer coisa, menos ficar parado, fazendo nada, vendo se o tempo passa, mas o bandido do tempo, quando a gente olha para ele e anseia por sua passagem, queda-se estático, imóvel, inamovível. O tempo, quando quer, sabe ser chato.

A opção para essa tarde besta era mergulhar nas águas gostosas do Papagaio, mas o trabalho da manhã entrou pela hora do almoço, a hora do almoço entrou pela tarde, a chuva ameaçou, ameaçou, ameaçou, e tanto fez sem nada fazer que acabou por nos deixar parados e prostrados no hotel.

As águas do Papagaio são frias e cristalinas, águas do cerrado, que cortam a chapada antiga desde tempos imemoriais, correndo sobre um planalto que é testemunha do começo do mundo.

Caminhando sobre a areia e os seixos, os pés são visíveis. Se ficamos parados, os peixes vêm e vão ao nosso redor. Pequenas piabinhas, ou lambaris, para quem é do sudeste, mais atrevidas, chegam a beliscar as pernas. Enxergar os pés depois de tanta chuva como tivemos nos últimos dias é um sinal muito bom. Significa agricultura bem feita e solo conservado, sem escorrer para os riachos e para os rios.

Em alguns poços e remansos, à sombra de árvores com frutinhos desconhecidos, grandes pacus nadam pachorrentos. Dizem que era nesses lugares que os parecis, habitantes originais de todo esse cerrado, pescavam-nos com arco e flecha. Esse tempo já passou. Os pacus de hoje não são tão grandes como os pacus de outrora, e os parecis de hoje talvez já não saibam fazer nada com arco e flecha, preferem vara, linha e anzol, de preferência a bordo de um barco com possante motor de popa. Periodicamente eles vêm à cidade, em comitiva. Mais gasolina, é o pedido sempre repetido.

Dez reais é preço do pedágio para usar a estrada que corta a reserva e encurta a distância para Cuiabá em mais de duzentos quilômetros. Dez reais em cada sentido. A estrada tem perto de cento e quarenta quilômetros, toda em terra, mas por pouco tempo, pois em questão de meses as duas pontas estarão asfaltadas. O miolo, porém, em toda a extensão que corta a reserva permanecerá em terra, com pouco mais de noventa quilômetros. Essa reserva é imensa, a aldeia fica perdida nessa imensidão. Algumas pessoas disseram-me que o pedágio agora é flexível, pode-se pagar com e sem recibo. Com recibo é “dez real”, e sem recibo é só “cinco real”, ou “cincão”. Uma das pessoas disse-me, também, que preferir pagar com recibo tem como contrapartida, às vezes, caras muito feias e até alguma argumentação da bobagem que é gastar mais do que o necessário.

Não ficarei espantado se um dos próximos presidentes dessa república sair do meio dos parecis. Afinal, já temos um indígena na Bolívia, por sinal não muito distante daqui.

Enquanto tão edificantes pensamentos ocupam meu cérebro semi-entorpecido, o tempo se aproveita da minha distração e passa, finalmente. A tarde avança e o tempo, agora o outro, muda com a chegada da chuva. Quem sabe essa será uma noite boa para dormir? Aleluia!

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quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Impressões de viagem – III – Impressões e algumas histórias

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Emas em lavoura nova, novinha, de algodão, em Sapezal


Campo Novo do Parecis está no paralelo 14. Isso nada quer dizer, bem sei, mas como é uma informação que seus habitantes acharam interessante, reproduzo-a aqui, também a troco de nada. Nem serve pra encher lingüiça porque o texto está só começando.

Em Campo Novo, fico de converseio com o funcionário de uma empresa de comercialização de arroz e milho. O rapaz é de Nobres, município que vem crescendo aceleradamente, mais um como tantos outros. Na verdade, ele nasceu e sua família vive num pequeno vilarejo pertencente ao município, e bem distante da sede. Há cerca de três anos, pegou um dinheirinho de uma indenização trabalhista e comprou uns lotes de terra no vilarejo. Coisa pouca e barata, menos de mil reais cada lote. Comprou e deixou por lá, pedindo para o pai fazer uma cerquinha mambembe, só para dizer “isso aqui tem dono”. Menos de dois anos depois, surgiu o anúncio que no município vizinho seria construída uma usina de açúcar, agora já em construção. Foi o que bastou: cada terreninho pulou para quatro mil reais, assim, de repente, não mais que de repente. E os preços continuam sua escalada a ponto dele acreditar que quando a usina for inaugurada poderá vender cada um por uns dez mil reais, pelo menos. Já está se sentindo meio rico.

Um outro rapaz funcionário se aproxima, entra na conversa. Antes de ser transferido para cá, estava trabalhando em um município mais ao norte, já na área de floresta mesmo, onde a soja começa a tomar conta das pastagens abertas há anos e já degradadas. Esse é um processo interessante para todos, já que deixar a terra para voltar a ser floresta é inviável, tanto econômica como ecologicamente. Quando o vilarejo emancipou-se e virou município, o novo prefeito deu lotes para várias pessoas, sempre com o compromisso, registrado no papelório, de construir no terreno em menos de um ano ou dois, não recordo direito. O feliz proprietário comprou umas madeiras e alguns acessórios básicos e baratos, gastando em tudo seiscentos reais, e construiu uma pequena casinha no terreno. Pronta a construção, feita por ele mesmo e alguns amigos, ficou preocupado por vê-la solitária e sem uso. Calhou de encontrar com um amigo da sua cidade de origem procurando emprego, com mulher e filho a tiracolo. Ofereceu a pequena casa para o amigo morar, de graça mesmo, até ele se ajeitar. Dois meses depois o amigo procurou-o e perguntou se ele queria vender o lote. Querer não queria, mas também não tinha porque ficar com ele. Vendeu, por oitocentos reais. Surpreso, dias depois ficou sabendo que o amigo já vendera o terreno por dois mil reais. E agora, a mesma casinha, de madeira, mambembe, com alguns pequenos acréscimos, já está valendo por volta de dez mil reais. Tudo isso ocorreu nos últimos cinco anos.

Pode-se chamar a isso de especulação imobiliária. Pode-se chamar a isso de sinal de desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem especulação, e só há especulação onde há desenvolvimento, onde as pessoas acreditam que amanhã será melhor que hoje.

Dona Maria Aparecida, ou Dona Cida, faz um café bem... hummmmm... bom, um café bem meia-boca. Paciência. Mas é simpática, educada e atenciosa. Dona Cida é faxineira e cumpre com satisfação a tarefa fazer café no escritório de uma empresa que comercializa grãos em Rondônia. Só não aprendeu a pôr o mate na cuia e apertar direitinho, mas isso requer treino desde os tempos da mamadeira. Ganha por volta de um salário e meio e trabalha 6 horas por dia. Há dois anos, apenas, trabalhava, quando podia, ajudando o marido em bicos diversos, na maioria trabalhos pesados, carregando terra de poços, tijolos, entulhos. E nada ganhava, a bem dizer. Agora o marido trabalha e ganha quase dois salários numa outra empresa, em outro armazém. Trabalho braçal, basicamente, mas paciência, tal como ela é um trabalhador não-qualificado, semi-analfabeto ou analfabeto funcional. Com toda essa renda, melhoraram a casinha. Compraram geladeira, fogão e televisão. Vão comprar dvd player, pois as crianças gostam (e devem exigir; na seqüência, serão os novos clientes dos piratas de dvds). A grande e mais recente compra, a que mais felicidade trouxe para todos, foi a... antena parabólica.

Como há antenas parabólicas por esses sertões! Impressiona a quantidade e impressiona a dispersão, estão presentes em todas as casas e casebres, praticamente. A parabólica segue sendo o grande objeto de desejo. Depois dela, a moto, depois da moto o carrinho. Há muitos anos venho acompanhando essa evolução das parabólicas por toda parte. A família inteira passa batida pelo Jornal Nacional, até por causa do horário com uma ou duas horas a menos que Brasília e, todos juntos, do bebê de colo à avó que mora junto, assistem à novela das oito. Deve ser interessante observar como se comporta a família quando há cenas, digamos, mais picantes na tela. Ou quando é mulher com mulher e, mais recentemente, homem com homem. Estará a novela das oito influenciando a moral e os costumes sertanejos? (Um sorriso se planta em minha boca enquanto escrevo esse parágrafo, mas, sei lá, será mesmo caso de sorrir?) (E é nesse terreno meio pantanoso, meio confuso, que prosperam os pastores das inúmeras seitas nos inúmeros templos, pregando pela moral e pelos bons costumes.)

Na maioria dos municípios novos, os prefeitos foram inteligentes e bem intencionados, dando lotes ou vendendo-os a preços irrisórios, mas sempre com a condição de construir uma moradia ou loja rapidamente, nada de comprar e guardar para especular. Graças a essa medida, os núcleos urbanos são todos urbanizados de fato, não há buracos vazios, uma casa ou loja seguindo-se à outra. Com o crescimento e a expansão do núcleo urbano, é claro, começam a surgir lotes vazios. E preços cheios.

Muita gente veio do Paraná, do Rio Grande do Sul, de Minas, de São Paulo. E, curiosamente, boa parte das crianças desses migrantes não são rondonienses ou mato-grossenses. São paranaenses ou gaúchos ou paulistas, pelo simples motivo das mulheres voltarem para a casa dos pais para darem à luz. Logo depois, com 30 ou 40 dias de idade, a criança faz a sua primeira de muitas viagens de até três mil quilômetros e volta para a terra onde foi concebida e onde irá viver doravante.

Os migrantes a que me refiro são os formadores da classe media desse novo sertão. São produtores rurais, e proprietários ou empregados das empresas ligadas à soja, ou são comerciantes. Gente simples na totalidade, com quem pode-se conversar por muito tempo. Ou melhor, poderíamos conversar, pois o tempo é sempre curto e não sobra para conversas, por mais agradáveis que sejam. A soja e a natureza têm seus ritmos e tempos, e cabe aos homens adaptarem-se e trabalharem de acordo com eles. Não há prorrogação. Nos grandes centros urbanos têm-se uma imagem estereotipada dessas pessoas. E ruim, uma imagem muito ruim. Nada mais distante da realidade, mas depois de anos e anos de pregações negativas é muito difícil mudar o imaginário urbano a respeito. Fico sempre pensando que bom mesmo seria fazer os brasileiros conhecerem esse outro país que também é Brasil, mas nem parece.

Andando por essas regiões são muitas as histórias, nem todas felizes. Curiosamente, olho esse povo nas ruas e fazendas, olho os campos de soja que se perdem de vista, olho as florestas e cerrados remanescentes e sinto que há mais ligação disso tudo com a China que explode do outro lado do mundo do que propriamente com Brasília, por exemplo. Mas isso deve ser coisa da minha cabeça, avariada pelo calorão úmido. Onde já se viu imaginar que esse Brasil espantoso que cresce e se desenvolve vai perder sua ligação umbilical com Brasília? É o calor, é o calor...



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quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Impressões de viagem – II – Brasileiros e superações




A traquitana tomou impulso, começou a correr pela pista de terra, levantando alguma poeira, o pára-quedas inflado atrás, comendo mais e mais pedaços da pista... Bateu um pé-de-vento lateral e o pára-quedas inclinou-se, a traquitana desviou do curso, entrou sobre alguns pés de soja na beirada e voltou pra pista, reequilibrando-se um pouco aos trancos e barrancos. Quando já dávamos como certa mais uma abortagem da decolagem, voilá! – ela deixou o chão e, lentamente, começou a ganhar altura, levando o piloto e meu cinegrafista com a câmera Betacam.

O nome da traquitana é giroplano e o Gilmar é mais que seu piloto, ele é, também, seu idealizador e construtor. Sua paixão por esse equipamento começou em 1982, em Assis, no interior de São Paulo, quando viu a fotografia de um dos primeiros equipamentos desse tipo numa edição da National Geographic. A partir de então, aquilo nunca mais saiu de sua cabeça. A revista ele tem até hoje, meio desgastada pelo manuseio constante e, principalmente, por ficar segura pelos dedos por longos períodos em que ele simplesmente olhava para a fotografia, destrinchando todos os segredos possíveis, imaginando como reproduzir aquele aparelho no interior paulista, numa época em que internet era algo ainda sequer pensado.

Entre a fotografia e o vôo que acompanho agora, passaram-se mais de vinte anos e muitos modelos e protótipos, com erros e acertos. Houve perdas em sua vida, não só patrimoniais como sentimentais, mas o sonho de voar persistiu.

O giroplano passa uma sensação muito grande de insegurança, mas seu piloto, em contrapartida, passa uma grande sensação de segurança. Há muito tempo ele deixou de ser um curioso autodidata para ser um especialista e conhecedor de técnicas de vôo, não só no giroplano, mas também em ultraleves e outros aparelhos. E é esse conhecimento, sem dúvida, aliado ao gosto e cuidados pela segurança, que nos dá tranqüilidade para voar.

Morando em Tangará da Serra, interior do Mato Grosso, a cerca de uma centena de quilômetros de onde estamos, ele frequentemente é procurado para ensinar as técnicas de vôo, fazer exibições, construir giroplanos, ou realizar levantamento cartográfico de propriedades rurais e ainda para fotografar fazendas e casas. É a primeira vez que ele leva a bordo um cinegrafista, e assustou-se com o tamanho e o peso da nossa câmera. Como o cinegrafista, ao contrário do diretor, é leve, mesmo com os mais de dez quilos da câmera ele ainda fica dentro do limite de peso para o passageiro.

Enquanto eles sobrevoam a fazenda gigante, suas instalações e o cerrado original ao redor, penso que fiquei mais admirado com o autor dessa proeza do que com o aparelho em si. Proeza, sim, pois ele chegou até aqui sem apoio algum de fora. Trabalhando com sua própria inteligência e recursos - grande uma e parcos outros. Ele bem poderia ser protagonista de um daqueles programas de tevê americanos, onde o gênio e iniciativa de um sujeito perdido em lugares como Duluth, Grand Rapids, Warrensburg, é destacado, mostrado, elogiado e exportado para o resto do planeta. Não precisaria ir tão longe, mas seria bom que o Brasil conhecesse gente como o Gilmar.


Minhas surpresas, porém, não ficariam só nesse piloto-inventor. Outras viriam.


Em Porto Velho conhecemos o Enoch (ou Enoque?) e voamos com ele em seu ultraleve. Cabe um parêntesis aqui: normalmente voamos em helicópteros sem a porta ou com a câmera fixada numa dispositivo externo e controlada remotamente. Como o custo dessa brincadeira é meio alto, o mais comum é voarmos sem a porta, mesmo. Tal como fizemos, também, em Itacoatiara, a bordo de um Cessna 210. Esses vôos têm lá seus desconfortos, têm lá seus riscos, é claro, mas têm, também, um bocado de emoção (na maioria das vezes não desejada) e prazer. Fora de São Paulo, porém, o custo de um helicóptero é proibitivo. E gravar de avião é complicado devido à instabilidade. Então, para contornar essas dificuldades, nessa viagem gravamos do giroplano, de um ultraleve e também de um avião. O melhor resultado, sem dúvida, foi obtido com o ultraleve, mas nada se compara, ainda, ao helicóptero.

Assim como o Gilmar, o Enoch é outro batalhador e autodidata. Taxista, teve que fazer sacrifícios mil para aprender a voar e, depois, ter seu próprio aparelho. Já não precisa cortar Porto Velho de um lado para o outro a bordo de um táxi para ganhar a vida, pois o trabalho com o ultraleve e as aulas cobrem suas despesas. Mas tem que trabalhar duro e muito, para sustentar a si próprio, a família e o ultraleve, é claro.

E é de seu ultraleve, num vôo tranqüilo e gostoso, que sobrevoamos Porto Velho, cruzando a cidade de um extremo ao outro até o curso do Rio Madeira. Lá embaixo, o enorme comboio de 15 barcaças, transportando trinta mil toneladas de soja, começa a se mover, lentamente a princípio, Rio Madeira abaixo no rumo do Rio-Mar e do porto de Itacoatiara, de onde essa soja da Chapada dos Parecis vai para o mundo.


Alguns dias antes desse vôo, em Ariquemes, interior de Rondônia, vi uma cena que me chamou a atenção na hora e pedi para o Zé Carlos parar o carro: ao nosso lado passou uma geringonça esquisita, um veículo com uma carenagem lembrando a frente das velhas carreteras que corriam em Interlagos, com um homem e um garoto sentados, confortavelmente, num banco alto dentro da geringonça. Num primeiro momento pensamos qual seria a força motriz daquele veículo, mas ao se aproximarem do nosso carro vimos que a força motriz eram as pedaladas, pois a geringonça era uma estrutura montada sobre duas bicicletas, com direito até a um volante ao invés do guidão convencional.

Os compromissos de viagem, o horário, a agenda, essas coisas todas que nos permitem ganhar a vida, impediram-nos de ficar por ali e papear mais a vontade com os ocupantes da geringonça, mas vimos e ouvimos o bastante para entender. O garoto era o dono do veículo e com ele fazia passeios na cidade, cobrando dois reais cada um. O homem ao seu lado, manobrando satisfeito o volante, era um cliente. E cliente satisfeito, pois era todo sorrisos, passeando orgulhoso pelas ruas de Ariquemes. Mesmo sem maiores conversas, mesmo sem conhecer a história por trás daquela geringonça – nem ficamos sabendo se ela tinha nome próprio – vimos e ouvimos o bastante para descobrir ali, no interior da Amazônia, mais um exemplo da criatividade e dos esforços de que esse povo é capaz.

Também poderia falar aqui do Rodrigo, que nos levou de Manaus para Itacoatiara em seu Cessna 210 Centurion. Sobre ele e esse avião já falei um pouco, mas não custa repetir. Com 55 anos de idade e 36 de pilotagem sobre a Amazônia, Rodrigo é um cara com muitas histórias e estórias, vividas de garimpos a missões religiosas onde se faz necessária a presença de um tradutor instantâneo – algo, talvez, como aquele negócio que o povo da Startrek usava para falar com povos de outros planetas e naves – e passando por campos de mineração e fazendas onde o capim era plantado sobre as cinzas das árvores, tão logo deixavam de fumegar e esfriavam. Experiência, ali, era coisa que não faltava, pois o Centurion contava com bem vividos 39 anos de vida, todos sobre as águas e florestas amazônicas, ao lado do piloto que já tivera 29 malárias. Experiência de sobra.

E fiquei pensando com meus botões enquanto cruzávamos Rondônia em busca do próximo compromisso, em quantos programas de tevê, em quantos filmes, em quantas histórias poderíamos fazer e escrever só com esses brasileiros que se superam e superam os obstáculos de um país que não reconhece seu próprio valor e o valor de seu povo.


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segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Gaiola no Madeira

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A gaiola deixa o porto de passageiros em Porto Velho.

Tarde de sábado, muita gente voltando pra casa.



Lentamente, ela cruza a frente do empurrador, acompanhada pelo radar e pelo olhar do comandante.

Nessas horas, ao contrário das noites sem luar ou dos muitos dias e noites com chuva, o radar é quase um enfeite.

Ela vai subir o Madeira, alcançando pequenas vilas e comunidades à beira-rio.

Buscando, sempre, o lado mais limpo do rio, procurando fugir dos troncos e galhos traiçoeiros que descem o Madeira.

Navegando rio acima, não se pode ter muita exigência com o tempo. A primeira chegada, o primeiro destino, só será avistado quando nascer o próximo dia.


Enquanto isso, é ajeitar as coisas, armar a rede, cuidar da vida.

Duvido que alguém esteja vendo algo assim tão banal...

Como esse por-de-sol sobre as águas do Madeira.


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domingo, fevereiro 05, 2006

Falando de futebol no sertão



Uma pausa gostosa no meio da manhã. Um cafezinho para uns, um mate para mim. Não sei porque, mas nunca corri atrás de uma cuia e bomba para ter meu mate em São Paulo, mas, viajando, não abro mão de saborear um amargo sempre que posso, como agora.

Estamos em Campo Novo dos Parecis. A avenida principal tem o nome do “seu” Olacir. Nada mais justo e merecido, e ainda é muito pouco, pois ele está na origem da transformação e desenvolvimento de toda essa região. Daqui até Cuiabá são 400 km de estrada, todos asfaltados, felizmente. Esse município tem 6 vezes o tamanho do município de São Paulo, com quase dez mil quilômetros quadrados de área. A linda e imponente Cachoeira Utiariti, ao lado da aldeia Parecis do mesmo nome, fica em seu território. Parte da área do município é ocupada pelas reservas indígenas, existindo 3 aldeamentos com cerca de meio milhar de habitantes.

E aqui, nesse cenário, três homens adultos estão conversando sobre o que realmente conta e tem valor na conversa de três homens adultos: futebol.

Zé Carlos, nosso motorista, é mato-grossense de Rondonópolis e torcedor do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro. O Vitor, agrônomo, trabalha na empresa para a qual estamos gravando, o Grupo André Maggi, aqui na região. Mas é do Paraná, veio pra cá há muitos anos e aqui criou suas raízes e cria sua família. Eu sou o terceiro participante, paulistano com pretensões a ser um sertanejo.

O Zé chama nossa atenção, cria um suspense, puxa a carteira do bolso da calça e, orgulhoso, mostra-nos o ingresso do jogo do seu mui amado União de Rondonópolis contra o seu querido e idolatrado Vasco da Gama. É do jogo válido pela Copa do Brasil e o ingresso já mostra sinais dos muitos manuseios.

Mais que depressa o Vitor saca sua carteira e, de lá, o ingresso plastificado do jogo do São Paulo contra o Paysandu, de Belém, que ele assistiu no Morumbi pelo Campeonato Brasileiro de 2005. Mesmo plastificado, nota-se que esse ingresso já viu muitas mãos durante sua existência pós-jogo.

Não fico atrás, é claro. Corro até o carro, pego meus documentos e... Nada! Na véspera da viagem guardei, cuidadosamente, meu ingresso do jogo final da Libertadores de América, quando nos tornamos Tri-campeões continentais. Fico chateado e sinto-me diminuído. Coisa de criança, claro. Coisa de homem, naturalmente.

E aproveitamos toda a pausa para falar de futebol, dos jogos que vimos, dos times que admiramos. O Vitor foi a São Paulo para assistir ao GP de Formula 1. Na véspera da corrida trocou o passeio por mais um shopping pelo jogo no estádio do seu time do coração. Ficou emocionado por conhecer o Morumbi, e já está louco de vontade para voltar. E, nesse ano, conforme for o desempenho do time na Libertadores, já há um grupo de torcedores são-paulinos em Campo Novo dos Parecis planejando uma viagem para São Paulo só para ver um jogo do time pela Libertadores, mais que nossa paixão, nossa obsessão.

E assim foi nossa pausa, uns tomando café, eu mateando e todos falando de futebol. Afinal, como escreveu certa feita Nelson Rodrigues (creio eu), futebol não é uma questão de vida ou morte. É mais importante que isso.


P.s. : tão logo voltou para casa, o Zé mandou plastificar seu ingresso, afinal trata-se de seu documento mais importante e querido.


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Impressões de Viagem – I – Sob a luz do cerrado


A primeira luz do dia no cerrado me ilude. Distante, a meio caminho do horizonte, as águas de um grande lago, com jeito de mar, brilham sob a luz difusa e suave da manhã que nasce. Tal como veio, a ilusão depressa se desfaz, e o que vislumbrei como água é o manto compacto de neblina que cobre uma baixada, escondendo uma vereda e seus muitos buritis no meio do sertão.

No vasto cerrado, ilusão e realidade se confundem, se misturam, e no meio do dia, com o sol alto e causticante e sua luz dura e invasiva, a força brutal da paisagem empurra a gente de volta para a ilusão e o devaneio, ansiando por uma tarde de chuva miúda e fresca. Vã ilusão passageira, sem força para resistir e trazer conforto. Vence a realidade, e a gente mergulha de volta no calor e na poeira que gruda no corpo suado.

Mas não agora, nesse momento gostoso, onde o importante é gozar o restinho de madrugada às costas e admirar o nascimento do novo dia bem à frente. Ainda estou no fuso horário de São Paulo, com uma hora a menos. Por isso, e mais o gosto pelo amanhecer, sou o primeiro a ver a cara do novo dia. A casa-sede dessa fazenda imensa está fechada. Sento-me na varanda e fico quieto. A passarinhada toda já acordou e começa a sua lida diária, cantando, gritando, piando.

Diante de tanta vastidão e beleza, ainda mais colorida pelos tons cambiantes dessa luz, tudo que consigo é me repetir, bobamente, pensando em como é imenso e bonito esse sertão.

Mais alguns minutos e algumas centenas de pessoas começarão seu dia de trabalho. A colheita da soja está em sua primeira semana, parte das máquinas ainda está em revisão. Atrás das colheitadeiras já entram os tratores com as plantadeiras. O milho vai suceder a soja em parte da área. Outra parte será semeada com milheto, um capim que tem por finalidade manter o solo coberto e protegido até o plantio da próxima safra, em 8 ou 9 meses.

É difícil descrever o dia-a-dia numa fazenda como essa. Sua administração é muito mais difícil e complexa do que a da maioria dos mais de seis mil municípios brasileiros. Dezenas e dezenas de carretas circulam por aqui no auge da safra. O consumo de combustível é gigantesco, e a logística para manter os depósitos abastecidos requer trabalho e inteligência. A vila é uma cidade, embora muito diferente das cidades do resto do país. Ruas largas, bem conservadas e sinalizadas, casas boas, de vários tamanhos. Jardins, árvores, crianças brincando no meio das ruas, correndo atrás de bola, como bons brasileiros, ou empinando suas pipas, como tantas outras em todo o mundo.

Na área “industrial”, uma imensa bateria de 39 grandes silos metálicos domina a paisagem. Nas proximidades, galpões e armazéns, prédios administrativos, usina de força. Ao redor, soja e cerrado.

A sede está distante alguns quilômetros do complexo operacional, mas foi construída num local de onde se avista a vila e os silos. Ao seu redor permaneceu o cerrado, como um testemunho de como era tudo há 30 anos e como ficou depois que o homem entrou e transformou a paisagem. Ao contrário do que sinto em muitos outros lugares, aqui essa transformação não me entristece ou aborrece. Gosto dela. Isso tudo garante a boa sobrevivência de alguns milhares de pessoas. É um resultado positivo na luta entre o homem e o ambiente, o ambiente está mudado, mas não destruído.

Essa viagem foi diferente das anteriores em muitos pontos. Em parte porque voltei a muitos locais já conhecidos. Em parte porque conheci mais pessoas, algumas delas com histórias incríveis. Em parte porque o preço da soja está muito baixo. Apesar disso, porém, por onde quer que tenhamos andado as pessoas trabalhavam, as cidades continuavam crescendo. O ar que se respira é puro, livre da poluição do descrédito, da desilusão, da depressão. Pensando bem, talvez essa viagem não seja nada diferente das anteriores.


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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Matadouro Municipal, casa de cultura

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O Grupo André Maggi, através da Fundação André Maggi, recebeu esse velho prédio, construído em 1919, em comodato, com a aprovação da prefeitura, da Câmara e de entidades ligadas à cultura em Itacoatiara.



Caindo aos pedaços, desmanchando-se lentamente para cumprir a velha máxima: do pó vieste e ao pó voltarás, era abrigo de marginais.

Agora, um bocado de gente trabalha na recuperação do prédio, respeitando sua arquitetura e características originais.

Só não será seguida sua velha e triste função, servir de local para o abate de bois.

É interessante notar que suas janelas - e o jeitão como um todo - guardam semelhanças com a Casa da Borracha.

Também interessantes e bonitos são os detalhes das grades de proteção, ou mais de embelezamento, na verdade, nas janelas.

Não demora muito, o velho Matadouro será um Centro de Cultura.

Como será, o que fará, o que terá e mostrará eu não sei, é cedo ainda.

De pronto assim, já é bom demais saber da sua recuperação.

Mais pra frente o povo de Itacoatiara vai decidir o que fazer e mostrar em suas dependências.



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A Casa da Borracha - I



Visões dumas andanças - II


A Casa da Borracha


Pouco sei sobre ela. Difícil sobrar tempo pra parar e perguntar e ouvir as histórias dos muitos lugares por onde passo. Mas é imponente a danada. E mesmo decaída é bonita. Bem cuidada, deve ser um espetáculo. Já a vi com as águas do Amazonas praticamente lambendo seu assoalho. Talvez tenham lambido mesmo, e até encoberto seu piso. Afinal, naquele momento a cheia não tinha atingido seu ponto máximo e muita água ainda ia descer os rios amazônicos e engrossar aquele mundão de água.





É imponente, né?

Bom, agora imaginem que aqui na frente dela o Rio Amazonas é estreito, tem só coisa de 5 km de largura... E 100 metros de profundidade. Imaginaram? É, eu sei que é difícil. Mesmo assim, tentem imaginar esse rio subindo, subindo, subindo, até suas águas cobrirem esse capinzal... Tem uns bons “par” de metros aí, não é coisa pouca, não. Pois é, isso é Brasil. Isso é Amazônia. Isso é parte de Itacoatiara, na margem esquerda do Amazonas, a 280 km de estrada de Manaus, ou 12 horas de barco.


A zoom da lente distorce, aproxima e diminui a largura do Amazonas. Mesmo assim, dá pra gente ter uma idéia, né? E as águas da cheia sobem praticamente tudo isso ainda, ou até mais, num ano mais molhado.


Dá dó ver a Casa com um poste na frente, fios elétricos poluindo sua fachada. Pior ainda, aparelhos meio mambembes de ar condicionado. E um bocadinho de lixo jogado pela rua em frente suas portas. Não, fala sério, ninguém merece, muito menos uma casa como essa.

Nove portas francesas, oito balcões e mais não sei de arquitetura pra ficar falando, mas basta ver a foto com atenção para sentir, mais do que ver, sua grandiosidade e sua história. No início do século passado, os seringueiros encostavam suas canoas e desciam as bolas de borracha, frutos do trabalho insalubre e pesado no meio da floresta. Mas, pior ainda, seringueiros fazendo isso era coisa rara. O mais comum era que os regatões, os donos dos barcos-armazéns que subiam e desciam rios e igarapés, encostassem e descarregassem muitas bolotas. Era o trabalho dos seringueiros trocado por mantimentos e utensílios caríssimos. Uma velha história triste de exploração e miséria numa ponta, e riqueza em outra. Disseram-me que tem algumas pessoas morando na Casa. E que ela pertence a um morador da cidade. Não sou muito chegado às intervenções governamentais, não, mas acho que esse seria um bom caso de compra e transformação, depois de uma boa reforma, seguindo o desenho antigo.

Recuperada, pintada, transformada num museu e num centro de venda de artesanato regional, estou certo que os turistas que sobem o Amazonas em busca de Manaus nos grandes transatlânticos cheios de americanos, canadenses, europeus, japoneses e até brasileiros, teriam de parar ali, na sua frente, descer as lanchas e nelas os turistas, para que entrassem e conhecessem um pouco da história econômica do Brasil e do mundo. Ela é fruto da mesma explosão de crescimento e riqueza que transformou Manaus, durante alguns anos, numa das cidades mais ricas do mundo, deixando como herança muitas estórias e o maravilhoso Teatro Amazonas.

E os turistas, de quebra, comprariam um monte de coisas, deixando algum dinheiro na cidade e ajudando a população a perceber que tem mais a ganhar preservando do que cortando madeira pra fazer móveis além-mar, ou jogando o lixo no meio da rua, na frente da Casa da Borracha.


3 de março de 2004.

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A Casa da Borracha II

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Sou fascinado por essa casa, sua arquitetura, sua localização e as muitas histórias que ela, certamente, abriga. Já escrevi um pouco a respeito anteriormente (ver observação final) e fiquei nisso.

Não colhi mais informações, nunca entrei na casa, até porque ela é habitada.

Acho que ela daria um espetacular centro de cultura e artesanato, localizada ali, bem na beirada do Amazonas, vendo e sendo vista por quem navega pelo Rio-Mar.

Aproveitei essa viagem e fiz algumas fotos. Infelizmente, a inexistência de uma boa zoom e a falta de um equipamento mais veloz na leitura e focagem, não contribuiu em nada para melhorar as fotos. Sorry.

(Vou republicar o post "Casa da Borracha", pois descobri que não postei-o aqui, no Um Olhar Crônico; para quem já leu, minhas desculpas.)


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quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Que bicho é esse?

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Será o monstro de Loch Ness?

Será uma gigantesca sucuri?

Será, talvez, uma canoa vicking?

O que será tão estranho ser navegando nas águas do Madeira, bem no meio do terminal graneleiro?

Ora, é apenas um tronco com um formato meio besta. Mais um tronco descendo o Madeira, fazendo turismo em meio aos barcos.


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130 km de terra

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Esse trecho entre os armazéns de grãos de Brasnorte - distantes 80 km da cidade - e a cidade de Sapezal, tem 130 km em terra. Em sua maior parte corta áreas brutas de cerrado. Nas extremidades, fazendas bem montadas, a soja dividindo os horizontes com o cerrado.

Demoramos pouco mais de 4 horas para atravessá-lo, e isso porque estávamos numa Hilux SW 4x4 com um motorista experiente nessas manhas e terras.



Atoleiros ainda presentes, embora não tivesse chovido nas últimas 24 horas, ajudaram a aumentar o tempo da travessia. Esse da foto nem atoleiro é, só uma poçã d'água já no fim. Os brabos, mesmo, acabei não fotografando, coisa de "iniciante".


E o pior de tudo: trechos cegos,

ao cruzarmos com carretas vazias e velozes indo buscar soja.


Felizmente, foram poucas, pois dá medo essa cegueira total, mesmo em baixa velocidade.

O jeito é confiar que nenhum carreteiro tentará ultrapassar o outro.

Fé em Deus e pé na tábua, como se dizia outrora.



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quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Para falar com o mundo

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Ao descer em Itacoatiara estranhei a presença de um caminhão de mudanças da Granero. E o pequeno saguão, ou sala, do pequeno aeroporto estava tomado por vários grupos de grandes caixotes e pilhas de baterias, iguais às dos carros na forma, mas bem maiores. Fechando o quadro, orelhões embrulhados em plástico espalhados pelo chão.

Orelhões?

Orelhões, sim.

Pouco depois, enquanto nosso avião fazia o primeiro sobrevôo, comecei a conversar com o pessoal que estava por ali, acompanhando os grandes pacotes e fiquei sabendo que se tratavam de estações de comunicações destinadas a pequenas comunidades do interior. Perdidas no meio da floresta.

Cada grupamento de caixas era a carga certa para um avião Bandeirante, fretado pela empresa de telefonia para o transporte das estações. A viagem dos equipamentos começou em São Paulo e Campinas, de caminhão. Seguiram até Porto Velho, onde as carretas, sem os cavalos-mecânicos, foram embarcadas em barcaças e desceram o Madeira e o Amazonas até Itacoatiara, onde foram desembarcadas. O caminhão da Granero saiu de Manaus e foi até lá apenas para transportar os equipamentos, em segurança, do porto até o aeroporto. O Bandeirante foi fretado para transportá-los até as cidades mais próximas das pequenas comunidades, de onde seguirão de barco – todos eles – para seus destinos finais. Para caber tudo no Bandeirantes, as antenas vão despidas de toda e qualquer proteção, e mesmo assim entram no limite. Os grandes armários são abertos e, uma vez embarcados, recebem as baterias que vão alimentar os equipamentos. Já seguem, portanto, montados. E, finalmente, embarcam os painéis solares, que por sua vez vão alimentar as baterias que vão alimentar os equipamentos. Os orelhões já estão com os aparelhos telefônicos. É chegar, instalar o poste, ligar o cabo e falar.

- Mas não seria mais fácil vocês desembarcarem tudo isso em Manaus mesmo? As distâncias para a maioria das cidades não seria menor?

- Ah, seria, seria bem melhor pra gente trabalhar e bem menor pra companhia pagar, a distância, né? As horas de vôo.

- Sim, sim, eu entendi. Mas, então, por que não foi tudo pra Manaus?

- Porque a gente tem prazo pra entregar, instalar e pôr pra funcionar, né? E em Manaus os fiscais estão demorando vinte dias pra liberar cada carga que chega.

- Vinte dias?

- É... Então, pra companhia fica mais barato gastar mais em tudo e trazer pra cá, né?

- Claro, claro, tem lógica.

Sim, tem muita lógica. Lógica tupiniquim.


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Uma BR no sertão





Acredite, estimada leitora, estimado leitor, essa é a foto de uma portentosa rodovia federal.

Acredite, essa BR corta grandes extensões de nosso interior.

Acredite, leitora, acredite, leitor, nos mapas ela aparece, geralmente - quando aparece - como asfaltada.

É desse mesmo jeito, com infindáveis atoleiros e buracos que não serão "inaugurados", que ela finalmente encontra o asfalto, algumas centenas de quilômetros depois.


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Céu e soja pelo Mato Grosso




O Mato Grosso para mim é vastidão de terra e de céu.













Na terra, cobrindo o solo, a soja é soberana.











E, sobre ela, sempre um céu ainda mais vasto que toda a terra.





"Mundo, mundo, vasto mundo,
Mais vasto é o meu coração."



Perdido em meio a tanta vastidão, duvido do poeta.

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Voando sobre a Amazônia




Parece que a negociação para conseguir um avião por um preço bom foi meio difícil, mas finalmente chegou-se a um acordo e tivemos nosso avião para nos levar de Manaus para Itacoatiara e, lá, sobrevoar a cidade e a região sem a porta direita, para que pudéssemos gravar e fotografar.

No Aeroclube conheci Rodrigo, o piloto. Fui com a cara dele desde logo. Gosto de voar com quem já traz no rosto a experiência de muitas horas de vôo, como era o caso dele: 55 anos de vida, 36 de pilotagem e 29 malárias nas costas. Esse é outro ponto importante: piloto bom e experiente nas coisas e manhas amazônicas, ele voou pelos garimpos da vida e não só por eles. Suas muitas malárias são um bom testemunho disso. Voar para os garimpos implicou em enfrentar as mais diferentes condições de tempo, descer nas pistas mais improváveis e delas subir. Pequenos detalhes que nos dão confiança ao embarcar.

Se nosso piloto era experiente, o avião o era um pouco mais: tinha 39 anos de vida, nada menos. Em vários pontos essa idade se manifestava de forma, digamos, inequívoca. Mas eram pontos não muito importantes. Nos itens que realmente contavam, como o motor, as asas e as pequenas abas móveis que, na verdade, fazem o avião subir e descer, tudo parecia em ordem, rodando direitinho com um barulho pra lá de saudável. Era um avião que podia se virar sozinho por aquela Amazônia toda. E foi com essa dupla experiente que decolamos do aeroclube de Manaus, com o tempo fechado e nuvens baixas. Curiosamente, o binômio piloto/avião deixou-me absolutamente tranqüilo. Aliás, essa é uma coisa curiosa: estar num avião pequeno, sentado ao lado do piloto – sempre “sobra” para mim o assento ao lado do piloto – me deixa absolutamente tranqüilo nas decolagens e aterrisagens, ao contrário do que ocorre nos grandes jatos, nos quais fico sempre temeroso nas decolagens. Vai entender...

De Manaus a Itacoatiara são quase 300 km de distância, num vôo fácil e até gostoso, sem pulos e sobressaltos, todo ele tendo o Rio Amazonas no visual, à nossa direita. A cheia ainda está longe de seu auge, que deverá ocorrer só em março, mas a quantidade de água por essa terra é fantástica! É muita água, apagando a memória triste dos lagos secos e dos rios estreitos e rasos que víamos há pouco mais de sessenta dias.

Voar pela Amazônia é muito mais tranqüilo hoje, graças ao SIVAM. O Centro Manaus nos acompanha minuto a minuto, sabe exatamente onde estamos. Os aviões têm transponders que garantem sua localização precisa. Quando fiz meus primeiros vôos pela região, mesmo essa rota arroz com feijão era de meter medo. Qualquer coisa errada e babau, adeus, sumia-se no meio da mata fechada.

No trecho Porto Velho/Manaus conheci um técnico de um dos organismos que nasceram sob as asas do SIVAM. Ele é da Polícia Federal, engenheiro, especialista em cartografia e georeferenciamento, lotado em Porto Velho. Perguntei sobre a Lei do Abate, se havia resultado em algo benéfico e, segundo ele, os vôos clandestinos caíram em mais da metade. Os traficantes passaram a optar pelo transporte fluvial e terrestre das drogas, aumentando as chances de interceptação. Que ele saiba, houve apenas um caso de intervenção dos Tucanos da FAB, obrigando um aparelho a se identificar sob pena de ser abatido. A identificação foi feita e o avião pousou num aeroporto próximo, sob vigilância, onde foi revistado. Não são apenas os aviões de carreira que voam, o tempo também se dá a esse luxo e, portanto, já está na hora dos equipamentos originais do sistema serem trocados ou receberem upgrades. Mais uma medida importante e necessária que provavelmente só irá ocorrer daqui a alguns anos, quando a aparelhagem estiver moribunda.





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